Seminário preparatório13.06.2024EIXO 1:

Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem ?

O que está em jogo, hoje, na repetição neurótica do gozo?

Comentário a partir do texto de Ana Lydia Santiago sobre o Eixo 1 da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG)

por Sérgio de Castro (EBP/AMP)

Gostaria inicialmente de agradecer pelo convite que me foi feito pelos Coordenadores da 27ª Jornada da EBP-MG, Maria José Gontijo Salum e Bernardo Micherif, para estar aqui hoje, juntamente com Ana Lydia Santiago, a fim de tentarmos lançar mais luzes sobre o tema da Jornada.

Ao final do texto de Jacques Alain Miller “Efeito do retorno à psicose ordinária”[1], que já se tornou um pequeno clássico para nós, na seção dedicada às perguntas ao público, Miller falará do Nome-do-Pai como um sol: “Na neurose o Nome-do-Pai está em seu lugar. O Nome-do-Pai tem seu lugar ao sol e o sol é uma representação do Nome-do-Pai”[2]. Ainda que afirmando esse aspecto luminoso do Nome-do-Pai, o que, parece-me, podemos tomar como uma bela metáfora não só do Freud, mas também do Lacan tocado e situando a psicanálise no “debate das luzes”[3], será o próprio Miller, em tal texto, que nos indicará, parece-me, perspectivas mais sombrias. Porque a pergunta que acredito podermos depreender dali, mesmo que Miller não a tenha formulado explicitamente é: será que a luminosidade característica da forte incidência do simbólico sobre o imaginário já não estava, naquele momento, em questão? Afinal, o diagnóstico estrutural neurose-psicose, com a nitidez possível numa clínica estrutural iluminada pela demarcação propiciada pelo Nome-do-Pai em posição solar se mostrava, naquele momento, mais difícil de ser feito, levando Miller a formular a noção de “psicose ordinária”. Ou seja, as elaborações desenvolvidas então por Miller sobre a psicose ordinária já não nos colocariam uma questão sobre as neuroses e sua demarcação nítida a partir da localização simbólico-solar do Nome-do-Pai?

Parece que a partir daí podemos nos aproximar de nosso tema: na lição XIV de O ultimíssimo Lacan, Miller recorrerá a outra metáfora, mas agora bem mais tênue, na medida em que sua própria força de substituição e recalcamento estará amortecida, e que será a da obscuridade. No ultimíssimo Lacan, a partir do Seminário 24, L’insu que sait de l’une-bévue…, segundo Miller, “toda a psicanálise ocorre na obscuridade […]”[4]. Pois se tratará de avançar então entre saberes, mas saberes que não falam, saberes mudos, uma vez que são saberes no real. Se, no simbólico, tais saberes serão sempre mentirosos, eles, no real, serão mudos.

Também toda a topologia dos nós convocada um pouco antes por Lacan tentará se movimentar na obscuridade. Daí a pergunta de Lacan, reproduzida por Miller: “como reconhecer um nó borromeano na obscuridade?”[5]. Pergunta, parece-me, que poderíamos refazer, seguindo esse cotejamento com o tema de hoje: como fazer, na obscuridade, um diagnóstico, seja ele de psicose seja de neurose?

Essa dificuldade com a questão diagnóstica que aparece aqui ligada àquela enfrentada por Lacan, a partir de seu último ensino, de como abordar o real sem ser pela via mentirosa do simbólico coloca novamente o imaginário em cena.  Ora, se o imaginário do estágio do espelho, que Miller chamará de “imaginário florido” (quer dizer, marcado por excessos e sinuosidades que, menos que esclarecerem, confundirão) exige recurso ao simbólico para avançar, é com o recurso aos nós que um imaginário “esvaziado” aparece. Esvaziado, já que na perspectiva da mostração, própria a tal recurso, evidencia-se o quanto um caráter metafórico não estará mais num primeiro plano. Será daí que certo tropismo de Lacan em direção ao imaginário deverá ser entendido. Não evidentemente o imaginário florido do estágio do espelho, mas esse imaginário magro e esvaziado que será o próprio corpo tomado, aqui, como a figura topológica do toro. O corpo humano concebido como um toro, com um vazio central e o vazio em torno do qual esse vazio central se destaca, parece ter sido o grande recurso lacaniano nessa reta final de seu ensino.

Aqui, o visual e o imaginário da figura topológica, desenhada por Lacan, indicarão esse tropismo ao imaginário que convocará o real. O recurso de aproximar a psicanálise da magia, evocado no ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller[6], parece-me poder ser esclarecido justamente a partir da hiância intransponível entre a Coisa, esse nome do real lacaniano, e o saber nele inscrito, não acessível ao simbólico.

Essa impossibilidade de fazer a Coisa falar, se levarmos em conta tal referência,em sua conjunção com o que chamaremos também de sinthoma (pois este apontará justamente para algo de um saber inscrito no real), indicará, segundo Miller, a importância que o último escrito de Lacan nos Escritos adquirirá, a saber, “A ciência e a verdade”. Se o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência (sem implicar que a psicanálise deva ser tomada como tal, para apenas aludirmos a um debate presente atualmente entre nós), o falasser, por ser uma categoria que inclui o corpo, forma parte da natureza, quer dizer, da Coisa. Então, o paradigma da magia faria falar a natureza que não fala, exigindo a estafa do xamã, seu suar a camisa por ser, ele também, tanto natureza quanto cultura. A chamada imaginarização do real que tomará o corpo, mas o corpo do falasser, ganhará daqui elementos fundamentais.

Feita essa introdução, creio podermos dizer que, seja na histeria seja na neurose obsessiva, a partir do último e ultimíssimo ensino de Lacan, e em fina sintonia com nosso tempo, visto não se tratar de questões diletantes, somos compelidos a nos movimentar nas sombras, como o próprio título dessa mesa parece aludir. Se o sol da histérica era seu amor ao pai, quer dizer, o complexo de Édipo, o falo, a trama das identificações e, finalmente o simbólico, hoje precisamos nos orientar pelo que do gozo e do acontecimento de corpo estará envolvido ali. E o inconsciente, não mais entendido como discurso do Outro, mas tomado no esp de um laps[7] ou, se prestarmos atenção, no espaço de um lapso, como aprendemos a designar o inconsciente real. Na neurose obsessiva, parece que o declínio do pai não torna tal neurose propriamente inexistente: a captura pelo olhar, num mundo onde as imagens proliferam com uma autonomia inaudita, um superego de vocação interditora e repreensiva (como podemos perceber no caso do Homem dos Ratos, por exemplo) surgirá em sua pura forma de imperativo de gozo, na captura do falasser pela imagem, seja pela pornografia seja por jogos eletrônicos, como observa Bernardo Micherif na apresentação do Eixo I da 27ª Jornada da EBP-MG.

A partir dessas considerações, retomo o texto de Ana Lydia Santiago, que nos apresenta, de forma bastante interessante, não apenas onde as neuroses estariam hoje, mas também onde elas já estiveram através dessa relação da “falta da razão de ser” com a vontade de justificação. Proporia, visando aqui abrir o debate, destacar algumas das questões discutidas e trabalhadas no cartel preparatório a esse encontro.

Se partirmos da psicose ordinária e do sujeito que, nela, está fora do discurso, como pensarmos o neurótico no discurso hoje a partir do que Miller chamou de evaporação do pai? Vale dizer, se o discurso não se sustenta propriamente na metáfora, mas num deslizar metonímico que às vezes não parece encontrar, no próprio discurso, pontos de ancoragem, qual o estatuto do fantasma hoje? Ou, ainda, se o que vemos prevalecer é um “ato de palavra performativo” na afirmação tão em voga hoje do sou o que digo que sou, afirmação essa que descarta a divisão do sujeito pelo objeto-causa, como a presença do analista pode vir a encarnar um ponto de basta a esse puro deslizamento metonímico?

Uma segunda questão diria respeito aos acessos de desrealização das histéricas, mencionados por Ana Lydia. Tais acessos, que levariam as histéricas à montagem de um teatro que convocasse o Outro dada a sensação de não se sentirem suficientemente verdadeiras, não poderiam ser considerados hoje à luz (ou à sombra) da peça teatral de Hélène Cixous, intitulada Retrato de Dora e que merecerá o comentário de Lacan, após assistir a peça, de que “é realizada de um modo real”?[8]. Lacan prossegue esse comentário dizendo-nos que, nessa peça, “temos a histeria […] reduzida a um estado que eu poderia chamar de material”[9]. Será Laurent quem, comentando tal passagem de Lacan no Seminário 23, esclarecerá: “O sintoma histérico é por excelência um sintoma que fala, um sintoma endereçado. Ele é portador de um sentido. O [aspecto] material, daquela histeria referido por Lacan, no fundo, é o sintoma como tal separado do sentido”[10].

Esse “estado material da histeria”, essa estranha expressão que creio podermos aproximar da referência de Lacan na Conferência de Bruxelas, de fevereiro de 1977, quando ele falará da histeria freudiana como uma metafísica[11], nos permitiria perguntar se a dos dias atuais seria uma histeria sem metafísica, quer dizer, sem a transcendência que o Outro poderia ter-lhe proporcionado. Será então, e talvez, que possamos pensar numa histeria onde o sintoma não será “sintoma em segundo grau”[12], ou sintoma do sintoma de um outro, tal como pode-se constatar em Dora que, com sua tosse fazia sintoma do sintoma da impotência de seu pai que mantinha, com a Sra. K, apenas uma prática de sexo oral. É essa transcendente trama de sentido a ser decifrada por via simbólica que não se percebe mais na mostração da peça de Hélène Cixous. E, se não há metafísica, há o Um sozinho. A histeria, hoje, imersa em imagens, procedimentos estéticos, dietas intermináveis e, tantas vezes, repulsa a relações amorosas, tentando afirmar a identidade d’A mulher sem falhas ou equívocos, não teria no amor transferencial também a aposta na possibilidade de introduzir-se a um amor não-todo?

Na neurose obsessiva, como também indica a apresentação do Eixo 1 da 27ª Jornada da EBP-MG, a partir do discurso da ciência e seus desdobramentos técnicos, vemos os sujeitos imersos nessa verdadeira profusão de objetos desejados e revestidos de valor fálico. Ora, se, com a evaporação do pai, distinguir um operador fálico que convoque o falo em seu valor simbólico certamente se tornou mais difícil, podemos dizer que, na atualidade, essa captura mais intensa do falo pela imagem o distanciou ainda mais da função de verificador da inexistência da relação sexual? Ou, ainda, como essa captura pela profusão de objetos imagéticos nos ajudaria a pensar a afirmação de Lacan de que neurose obsessiva é a que certamente ainda existe?

Para concluir, gostaria de retomar a questão do imaginário no último e no ultimíssimo ensino de Lacan, agora a partir do que Ana Lydia desenvolve ao final de seu texto sobre a hiância entre real e imaginário. Se é nessa hiância que se aloja a inibição que aprisiona o neurótico, teríamos também relançada a “função da imagem como ferramenta capaz de mostrar como se comportam as coisas na neurose em sua repetição de gozo”[13].  No Seminário 11, ao duplicar o mito de Édipo aproximando-o do mito de Hamlet, Lacan fará referência a uma topologia freudiana, onde a falha estrutural da cadeia significante remeteria à emergência do real encarnado pelo pecado do pai. Nessa aproximação de Hamlet com Édipo, Lacan se valerá do célebre sonho com o filho morto e queimado, apresentado por Freud no último capítulo de A interpretação de sonhos.

Tem-se ali um sonho de angústia, onde o pai, após permanecer por dias e noites ao lado do leito do filho moribundo, passa para um cômodo contíguo a fim de descansar um pouco. Horas depois, o pai acorda, ao sonhar com o filho, de pé, ao lado da cama em que dormia, a sussurrar-lhe: “Pai, não vês que estou queimando?”. Logo em seguida, o pai vê um clarão no quarto ao lado, já que uma vela, caída sobre o leito onde o filho jazia, queimava parte de suas roupas e um de seus braços. De imediato, Lacan dirá como esse sonho aponta para algo vindo de um “além” da cadeia de representações possíveis para aquele que o sonha, pois se a interpretação de Freud será a de que, ao sonhar com o filho ao seu lado, desvela o desejo paterno de que a vida do filho se prolongasse, uma obscura ambiguidade do pai surge quando consideramos o incêndio do corpo do filho. Lacan descreverá tal ambiguidade dizendo:

“Do que é que ele (filho) queima? – do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-pai, é aquilo que sustenta a estrutura do desejo com a lei – mas a herança do pai é […] seu pecado”[14].

Essa, segundo Lacan, voz imajada – que surge tanto para Hamlet através do fantasma do pai, quanto como tocha ardente no sonho do filho morto e queimado – vem para arrancar o sonhador de seu sonho. Essa visão atroz designaria um mais-além da cadeia significante que se presentificaria, nos diz Lacan, “pela perda imajada (imajeur) ao ponto mais cruel, do objeto[15].

A questão que lanço aqui, a partir dessa passagem do Seminário 11, é se teríamos através da imagem no sonho uma mostração da matriz, para cada sujeito, do que está em jogo em sua repetição de gozo.

[1] MILLER, J. O efeito de retorno à psicose ordinária. In: A psicose ordinária. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012, p. 399.

[2] Idem, p. 420

[3] LACAN, J. Contra capa dos Escritos. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

[4] MILLER, J.-A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires, Paidós, 2014, p. 234.

[5] Idem, p.230

[6] Ibidem, p.244

[7] LACAN, J. Prefácio a edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 567.

[8] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007, p.102 (Trabalho original proferido 1975-76).

[9] Idem, p. 102

[10] LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Site VI ENAPOL: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/

[11] LACAN, J. Considerações sobre a histeria. In: Opção Lacaniana, n. 50, São Paulo, 2007, p. 20.

[12] MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O Corpo Falante, São Paulo, Escola Brasielria de Psicanálise, 2016, p. 26.

[13] SANTIAGO, A.L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. (Disponível no site da 27ª Jornada da EBP-MG).

[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 41. (Trabalho original proferido 1964).

[15] Idem, p. 63.

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