O Imaginário na clínica do sinthoma

por Jésus Santiago

O imaginário no Seminário 23, O sinthoma, é definido como uma das três consistências do nó borromeano, e não apenas como imaginação, tampouco como o gosto pelas imagens e muito menos por sua redução à imagem especular. Ainda que todas essas versões possam estar presentes na apreensão lacaniana do sinthoma em James Joyce, chama a atenção que, ao defini-lo como tendo uma consistência própria, o imaginário seja reduzido ao corpo. A respeito desta equivalência entre o corpo e o imaginário, Lacan afirma, nos Estados Unidos, que, “do corpo, a experiência da análise apreende o que nele há de mais imaginário”, ou seja, que “um corpo se reproduz por uma forma”[1]. Completa ainda: “nós o apreendemos sempre como uma forma”, e como vamos ver mais adiante, essa “forma se manifesta no fato de que este corpo se reproduz, subsiste e funciona sozinho”[2].

É sabido que, ao longo de seu ensino, o corpo é tratado via função da imagem que, apesar de suas variações e distinções, aparece sempre como uma forma ou modelo integrado ao corpo. [VER: Fig.1]

 

IMAGINÁRIO CORPO ENQUANTO FORMA

 

Isso se confirma com o Estádio do Espelho, em que a imagem especular se constitui como a forma do corpo próprio, imagem concebida como o primeiro objeto de investimento libidinal e, portanto, como campo apto a produzir uma identificação, tornando possível ao infans obter, pela primeira vez, um reconhecimento de si.

 

A função inercial da imagem especular

Evidentemente que não se trata da última identificação, porém, resulta dela o chamado gozo jubilitário, ou seja, o gozo que se faz com sua imagem do corpo e que nele contém um embrião de seu Eu (moi). Essa ancoragem do Eu (moi) na imagem do corpo tem sua fonte na pressuposição de que a libido assume um valor imaginário, pois o gozo enquanto júbilo com a imagem do corpo não procede diretamente do simbólico. Em suma, o gozo jubilatório não provém do sujeito propriamente dito, está relacionado com a experiência do se ver e é dela que emerge o Eu (moi) como instância narcísica e imaginária.

 

SE VER (CORPO) EU (INSTÂNCIA IMAGINÁRIA)

 

Essa experiência do se ver é também aquela que preside a relação imaginária ao Outro no seio da qual predomina a rivalidade, a agressividade e o ódio. Ao permanecer fixado nesse gozo intra-imaginário – gozo do júbilo – por meio do qual o sujeito apenas vê no Outro seu duplo imaginário, seu alter ego, seu rival, isso conduz a

um desconhecimento do ser, da falta-a-ser e do desejo. Se o Estádio do Espelho é qualificado como uma identificação, no sentido pleno que a psicanálise confere a esse termo, é a força da assunção jubilitória da imagem do corpo que promove essa primeira metamorfose no ser de gozo da criança[3].

Ao reconhecer que a imagem especular desempenha um papel fundamental nessa transformação do ser do infans, deve-se levar em conta que a função da imagem já é concebida, nesse início de seu ensino, segundo sua falta de autonomia e, por consequência, sua dependência ao que o próprio Lacan designa como a “matriz simbólica”[4]. Algum depois do Estádio do Espelho, essa dependência do imaginário ao simbólico se aprofunda e torna-se, no interior de seu ensino, mais presente e sistemática. Isso quer dizer que não se capta a importância da função inercial e estagnante própria das fixações imaginárias, sem considerar o quanto as tais manifestações se vêem submetidas às determinações do simbólico. Enquanto reduzido à imagem especular, o imaginário assume, em boa parte do ensino de Lacan, o valor de uma resistência desfavorável ao avanço da experiência da análise. Com a clínica do sinthoma, ter-se-á um outro uso do imaginário, que se destaca, por exemplo, na Conversação, Parlamento de Montpelier, pois este evento é uma prova a mais do quanto o último ensino de Lacan devolve toda a dignidade clínica ao imaginário. Tal dignidade adquire seu ápice com a perspectiva tardia do enodamento borromeano de RSI, visto que, a partir daí, o chamado novo imaginário passa a ser um fator que favorece a experiência analítica.

 

O corpo nos é estranho…

O nó borromeano, com seus três aros de barbantes, homogeniza os três registros e desfaz qualquer tipo de hierarquia entre eles que, antes de tudo, se expressa pela derrocada do império das determinações simbólicas, alçando assim, no horizonte da prática lacaniana, a fecundidade clínica da consistência dos três registros RSI. Considera-se, com isso, que “a essência do nó borromeano” é essa homogeneização que traz também como consequência uma hiância entre esses três registros, uma vez que se apresentam como radicalmente separados e dotados de uma autonomia própria[5]. Se faz necessário insistir, portanto, que afirmar o caráter homogêneo das três consistências borromeanas implica admitir uma hiância, uma separação fundamental entre elas.

 

 

Uma das consequências da adoção da perspectiva borromeana, em que prevalece a consistência de RSI como horizonte da clínica lacaniana, é a subversão do imaginário, antes reduzido à imagem especular, e agora passa a ter como marco essencial sua equivalência com o corpo[6].

Antes mesmo dessa mutação de paradigma própria da perspectiva borromeana, e ainda no bojo do enfoque inédito da angústia, nos anos 60, o corpo que se recebe e que se carrega consigo é problematizado por intermédio do Unheimlich infamiliar – fenômeno concebido para além da produção da imagem especular. Como atesta a experiência da angústia, a recepção do corpo pelo sujeito excede ao que se institui como imagem produzida pelo espelho, uma vez que a imagem do corpo que se acredita ser se faz por meio de uma pertubação da imagem que, no caso do infamiliar, se verifica de modo flagrante. Cabe inclusive perguntar se sob o ponto de vista dessa perturbação da imagem do corpo, com toda a conotação de perplexidade que a envolve, o evento corporal da inquientante estranheza pode ser considerado como um fenômento elementar?

No entanto, a tese de que a imagem integra o corpo sofre uma mudança substancial com a teoria dos nós borromeanos, pois o seu ponto de partida é, como se disse antes, tomar o corpo como uma consistência que funciona sozinha e sem a menor informação desse funcionamento para o próprio sujeito da linguagem. Tudo o que Lacan formula sobre o corpo a partir da clínica do sinthoma busca constituí-lo como consistência isolada e separada dos dois outros registros: Simbólico e Real. Diante disso, sua argumentação gravita em torno da formulação freudiana de que o inconsciente apoia-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo e, portanto, o corpo nos é estranho[7].

 

O homem tem o corpo, não o é…

Tanto é que quando Lacan redige sua Conferência “Joyce, o sintoma”, a estranheza é o acento que se retém quando afirma que o homem tem um corpo que ele não o é …[8]. É nítido que tal formulação do corpo aponta para uma disjunção entre o corpo e o ser. Essa disjunção é fundamental porque, segundo Miller, a concepção do corpo que a antecede, aquela que se faz presente no Seminário 20, Mais ainda, é de que “o ser é um corpo, que o corpo é a primeira abordagem do ser”[9]. Isso se exemplifica pela demonstração de que o corpo do monge é o hábito, ou seja: o hábito é mais do que um invólucro, o hábito constitui-se no próprio índice de que o corpo do monge se confunde com o seu próprio modo de gozo. O hábito é a “forma separada de todo formalismo”[10], na medida em que o hábito é homogêneo, ao objeto causa de desejo do monge.

Ao contrário disso, se a perspectiva borromeana introduz o ter, o faz para desunir o ser e o corpo, de tal maneira que essa doutrina desfaz o que Lacan chamava de sua hipótese de que o corpo afetado pelo inconsciente estruturado como linguagem equivale ao mistério do corpo falante[11]. A perspectiva borromeana desune o corpo e o simbólico, de modo tal que essa disjunção torna-se o grande problema da clínica do sinthoma e não apenas um mistério.

 

 

Com efeito, a nomeação do falasser (parlêtre) como um substituto do sujeito do inconsciente está para além do mistério do corpo falante. O falasser nada tem a ver com o “cântico aristotélico” sobre o ser que se apresenta dependente do corpo[12]. O falasser (parlêtre) não depende de um corpo, não recebe o seu ser do corpo que ele seria, ele o recebe da palavra, isto é, do simbólico. O falasser tem um corpo, não o é, por isso, pode deixá-lo cair, como veremos mais adiante no episódio da surra relatado por Joyce em “O retrato de um artista quando jovem”.

 

Da cadeia significante à cadeia borromeana

Assim, para o falasser, uma vez que o simbólico, segundo a perspectiva borromeana, se apresenta como separado do real e do imaginário, ele deixa de ser uma instância, ou seja, uma ordem estruturada pelo significante. Antes disto, ao definir o simbólico enquanto ordem ou estrutura é, no fundo, dizer que a tendência do significante é fazer cadeia. Isso se deduz da própria doutrina estruturalista de que o significante apenas existe ao se associar a outro significante e, assim, concebe-se o significante por sua condição de produzir cadeia. Se de um lado, a invenção do nó borromeano já denota um eclipse do simbólico, uma desvalorização da palavra, de outro, sua implicação maior é por em questão o princípio de que todo significante faz cadeia com outro significante.

A imagem do enodamento borromeano fascina e cativa porque, com desvanecimento do simbólico, emerge a ideia de uma nova ordem cuja característica marcante é a de um espaço conectivo composto por pelo menos três aros ou rodas de barbantes concebidas como peças avulsas. O pressuposto motivador da clínica do sinthoma é colocar em suspensão a ideia de que um significante faz cadeia com outro significante no intuito de postular o princípio de que os três aros ou rodas de barbante RSI são consistências tomadas como peças soltas e avulsas.

O que enfim surpreende o próprio Lacan é que ele vai tomar “o nó como o que suporta cada consistência e que, por isso, não se pode jamais deduzir esse nó de uma cadeia” do tipo cadeia simbólica[13]. Com o enodamento borromeano, propõe-se uma outra modalidade de cadeia – cadeia borromeana –, que exige uma outra linguagem, a saber: a da amarração e a do encontro entre, pelo menos, três rodas de barbante e três furos. Sem entrar em maiores aprofundamentos, é suficiente dizer que, sem os furos, não seria pensável que algo pudesse enodar as rodas de barbante. Logo, nesse espaço conectivo a três, em que as consistências se enlaçam e se enodam, não existe nenhuma chance de constituírem uma cadeia simbólica nos moldes da articulação S1-S2.

Em vez de fazer cadeia no simbólico, o significante enquanto unidade da consistência própria do simbólico passa, nese caso, a fazer nó. Por isso Lacan inventa o termo de cadeinó [chaînoued], porque, no âmbito da cadeia borromeana, o significante deixa de ser o fonema, como era no caso da linguística, e, como nó, ele produz furo. Ao passar da cadeia significante para a cadeia borromeana, o furo passa a ser inerente ao simbólico, assim como, a consistência corporal torna-se o imaginário e a ex-sistência própria do real é o que se acrescenta às duas outras consistências. Enquanto ex-sistência, o real como terceira roda de barbante é o que mantém unidos o imaginário e o simbólico. Assim, a postulação desse espaço de conectividade das três consistências, concebidas como independentes umas das outras, é vista como a referência basal da prática lacaniana em que prevalece a orientação de ir mais longe do que a decifração do inconsciente. Salienta-se, ainda, que ao dar a mão a Joyce, a prática lacaniana dá um lugar primordial à consistência do corpo, portanto, ao imaginário como peça avulsa em substituição à operação interpretativa por meio do simbólico.

 

A consistência do imaginário enquanto corpo é peça avulsa

A ênfase que Miller concede ao termo peça avulsa é para tornar evidente o que é uma consistência como “o que mantém junto”[14]. O corpo é o que melhor explicita o que é a consistência própria do imaginário, pois “nós o sentimos como pele retendo em seu saco um monte de órgãos[15]”. É somente pelo corpo concebido como um “monte de peças avulsas”[16] e pelo seu funcionamento autônomo que se pode ter acesso, em Joyce, tanto à separação entre o sintoma e o inconsciente, bem como o deixar cair [lâchage] do corpo. Não cansamos de repetir a expressão segundo a qual Joyce está “desabonado do inconsciente” para buscar dar conta dessa separação entre o inconsciente e o sintoma. É preciso entender as razões que levam o sinthoma a se apresentar, nesse caso, como solto e depreendido do inconsciente. Joyce nos dá a chave para captar essas razões na medida que sua própria obra evidencia o que vem a ser o núcleo do real do sintoma. É na medida que seu trabalho com a escrita encarna a operação lógica de redução do sentido que, tem como fonte o inconsciente, a ponto de fazê-lo com que não tenha mais sede[17]. Desse modo, estar desabonado do inconsciente é tornar sua própria história mera futilidade e, finalmente, é por essa via que se pode extrair e isolar o núcleo real do sintoma.

O sintoma em Joyce é – diz Lacan – “um sintoma que não lhes concerne em nada (…) na medida que não há nenhuma chance de que se assemelhe a algo do inconsciente de vocês”[18]. Notadamente no caso do sintoma neurótico, nem sempre é fácil não recorrer ao sentido para tratar e dar um destino ao seu impossível de suportar que se mostra articulado às defesas provenientes do inconsciente. Nesse caso, interpretar o inconsciente, fazê-lo existir, supõe levar em conta aquilo que resiste no sintoma, a saber, uma verdade, um significado à espera de ser promovido e liberado. Por outro lado, o sintoma com o qual lidamos na prática lacaniana, nos dias de hoje, se apresenta radicalmente separado do símbolo, um sintoma que não se cristaliza em um saber suscetível de ser lido e por isso destituído de algum endereçamento ao psicanalista. Estar desabonado do inconsciente quer dizer que o sintoma concerne o corpo que funciona sozinho, um corpo que se apresenta numa relação de disjunção com o ser, ou seja, como refratário às determinações simbólicas que envolvem o inconsciente.

Para esclarecer o valor clínico do imaginário enquanto peça avulsa, faz-se necessário recorrer ao fenômeno do qual James Joyce é testemunha por meio de seu personagem Stephen Dedalus, um fenômeno considerado raro por Lacan, porém, bastante decisivo com relação ao que promove a experiêcia analítica. Trata-se do episódio da surra recebida pelo personagem de O retrato do artista quando jovem. É inócuo reportar aos comentários da crítica literária universitária sobre a distinção entre o autor e o personagem, pois de onde o autor sustentaria esse fenômeno, senão dele próprio, considerando sua raridade, bem como não ser ele possível de ser produzido via imaginação. Lacan não se coloca na posição dos universitários que se dedicam ao comentário e à resolução do número imenso de enigmas que a obra joycena contém. A relação de Lacan com a obra de Joyce é eminentemente clínica, no sentido de que ela serve de apoio à prática analítica quando esta lida com o falasser desabonado do inconsciente, isto é, com situações em que o sintoma se mostra desatado, desvinculado do inconsciente. Vale dizer que o psicanalista, nesses casos, não encontra meios de operar por intermédio da decifração simbólica do inconsciente.

É o caso do extrato bastante conhecido em que Joyce testemunha que, durante a adolescência, foi espancado por não ceder a uma disputa acerca de coisas referentes a poetas, precisamente entre Tennysson e Byron. O colega que comandava toda a aventura era um tal de Heron, termo que não é indiferente, pois tal nome tem origem no hebraico “Aharon”, que significa “montanhês” ou “exaltado”. Esse Heron e seus cúmplices vão amarrá-lo em uma cerca de arame farpado e, em seguida, espancá-lo. Logo após o acontecimento, ainda naquela noite, “enquanto ia para a casa aos tropeções, pela Jones’s Road, sentia que alguma força estava livrando-o daquela raiva urdida com a mesma facilidade com que uma fruta se desfaz de sua casca mole e madura”[19]. Joyce se interroga acerca de sua reação marcada pela ausência de afeto e pelo fato de que não guardava nenhum rancor do colega que o tinha molestado. Seu questionamento aponta para o lado enigmático da experiência de distanciamento de seu próprio corpo. Para Lacan, é de se esperar uma tal reação por parte de Joyce, pois, diante desse grave acontecimento, somente ele seria capaz de metaforizar sua relação com o corpo ao afirmar “que todo o negócio se esvaiu como uma casca[20].

Quando confrontado com a situação do espancamento, não reage à altura do esperado e experimenta uma espécie de despreendimento e abandono de seu corpo e do afeto. Esse episódio permite a Lacan dizer que, em Joyce, “há alguma coisa que exige apenas sair, ser largada como uma casca”[21]. Joyce testemunha “um deixar cair a relação com o corpo próprio”[22], isto é, uma dissolução da imagem do corpo que promove um discreto fenômento de discordância. Desde então, essa manifestação do deixar-cair o corpo passou a ser captada como um sinal clínico do chamado fenômento de discordância descrito pelo psiquiatra Pierre Chaslin[23]. A clínica do sinthoma, por sua vez, apreende esse fenômeno sob o prisma da desconexão do elemento imaginário do enodamento borremeano do falasser. Lacan é bastante claro a esse respeito ao formular que, em Joyce, “a relação imaginária não acontece”[24] e, por isso, o falasser se constitui por meio da conexão direta do inconsciente com o real, sem a mediação do imaginário.

Se, nesse caso, a relação imaginária se mostra ausente, como se efetua a formação da imagem do corpo que, como se viu antes, é o que alimenta e dá sustentação às funções do eu? Se não há relação imaginária, supõe-se também que não há a imagem do corpo sobre a qual se edificam as funções do eu. É preciso, neste ponto, especificar a função do que Lacan denomina, no contexto do Seminário 23, O sinthoma –, como Ego, e aquela do eu (moi). Antes desse Seminário, as duas noções – o eu (moi) e o Ego – são sinônimas. Como se sabe, o eu (moi) tem sua nascimento no narcisismo infantil e corresponde à instância que permite ao indivíduo se defender contra a realidade psíquica e as pulsões. Trata-se de uma função que se extrai da segunda tópica freudiana.

 

Imaginário como o Ego corretor do lapsus do nó

É o que se disse antes acerca da ancoragem imaginária dessa instância do eu (moi) e que se confirma nesta frase: “Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem [25]. Diante disso, Lacan encaminha a sua elaboração no sentido de distinguir o eu (moi) daquilo que, nestas circunstâncias, considera-se como sua invenção, a saber, o Ego: “o fato de não haver interesse por essa imagem naquela ocasião [a da surra] não é o que assinala que o Ego tem nele [Joyce] uma função particularíssima?”[26] Conclui-se, portanto, que o eu (moi) sustentado pela imagem do corpo equivale ao exercício de sua função no terreno da neurose, supondo que nela prevaleça a amarração com o nó de três. É o que propõe Jean-Claude Maleval: “Quando a função narcísica opera na presença do enodamento borremeano, o eu (moi) não se distingue do Ego”[27]. A distinção advém, portanto, com Lacan em casos da não-amarração borremeana de R, S e I. Em outros termos, em certas configurações – notadamente quando há um deixar cair do imaginário –, o Ego se define como a “ideia de si como um corpo”[28], e não como um eu (moi) que se suporta pela imagem do corpo.

É dever da clínica do sinthoma considerar que, para certos sujeitos, é preciso recorrer a outras montagens, distintas do nó de três RSI, como nos casos em que se visa preservar algum arranjo das partes do corpo entre elas, uma vez que o horizonte clínico é fazer existir um corpo. O Ego se constitui, por consequência, como um outro porta-voz do imaginário no sentido de que, enquanto peça avulsa, ele é o corpo e, não, uma imagem do corpo. Em Joyce, este Ego assume uma função radicalmente distinta da função narcíssica, pois é quem corrige a falha do nó graças à condição reparadora da escrita.

A especificidade da amarração se situa no plano da conexão existente entre o real e o simbólico – articulação do tipo olímpica que gera o laço inabitualmente estreito entre os dois registros, R e S, e que deixa o imaginário solto.

O que é marcante em Joyce é que, face à situação da surra, há um instante em que nada funciona, deixando-o sem resposta. No entanto, algum tempo depois, algo funciona, ou seja, Joyce testemunha não ter nenhum reconhecimento ou afeto de não importa quem ele tenha recebido essa surra.

Nesse momento, o que acontece com o corpo que funciona sozinho? Admite-se que se trata de um espaço não subjetivado, pois não é subjetivável. Um lapso de tempo é, portanto, necessário a Joyce para dar uma resposta que nos deixa supor entrever que há criação, invenção. Imediatamente após esse tempo, ele testemunha que, com relação ao acontecimento passado, ele não tem nada contra ninguém. Uma falha do afeto consciente a respeito do Outro surge no lugar do vazio. A invenção consiste, nesse caso, no acionamento de um Ego que tem relação com a “escritura da metaforização do corpo”[29], isto é, não mais com a imagem do corpo, com a ideia do corpo como imagem, que corresponderia ao eu (moi), mas com o “enquadramento formal traçado pela escritura”[30]. Com a tese do Ego como grampo, Lacan sugere que Joyce gera o sinthoma, “como alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos”, ainda que haja o lapso ou o erro na cadeia borromeana[31]. O Ego em condições de corrigir o erro “permite ao nó de três se manter como nó de três e conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto de constituir nó de três”, e é isso que se denomina sinthoma[32]. Assim, se a organização psíquica de Joyce confirma a chamada forclusão de fato do Nome-do-Pai, ela atesta também a presença de um conector para reparar o lapsus do nó.

 

Se virar com a imagem, se virar com o sinthoma

 

Em contraste com a expectativa de que um significante novo possa cernir o impossível de se nomear próprio do final de análise, o ultimíssimo ensino de Lacan destaca o valor da imagem como fator de mostração desse real impossível. Se o fundamental da experiência do final se circunscreve pela via do núcleo real do sintoma, se o real não fala, é mudo e, se o simbólico se desvanece, o acesso a esse núcleo real poderia acontecer por meio da imagem? Ainda que a resposta possa parecer óbvia, postula-se que tal formulação exija uma subversão do imaginário, pelo menos esse que se confunde com a função inercial da imagem, este que se supõe interceptar o dinamismo próprio dos deslocamentos simbólicos.

É diante do abandono da supremacia da ordem simbólica frente às duas outras que se institui o novo imaginário concebido como peça avulsa e que se apresenta como corpo. A homogeneidade entre o real, o simbólico e o imaginário radicaliza o fato de que o corpo se introduz na economia do gozo por meio da imagem. Em outras palavras, na clínica do sinthoma prevalece uma outra supremacia: a do corpo que, justamente, se tece por meio da imagem.

Face ao silêncio do real e da não operatividade da função significante, resta-nos o recurso do imaginário que agora se pode agregar a ele, o recurso do corpo que, segundo o ultimíssimo ensino, se constitui sob o modo do “tecido do inconsciente”[33]. Desde o momento que a unidade, ou melhor, a micro-unidade do significante é relegada a um segundo plano, é a geometria do tecido – com sua composição de fios, malhas, entrelaçamentos e furos – que aparece como a via para não deixar a experiência da análise cair na mera abstração ou elucubração.

Em primeiro lugar, é evidente que o gozo pulsional – definido pelo acordo entre o significante e o corpo – continua presente na gestação do tecido como um componente essencial, visto que ao expressar o acordo entre o significante e o corpo, ele se presentifica sob o modo da ressonância.

Em segundo lugar, deve-se levar em conta que se o peso do significante se desloca para a imagem, o que não quer dizer que o inconsciente esteja ausente na própria confecção do tecido. Trata-se, portanto, de privilegiar o inconsciente em suas manifestações disruptivas com relação à cadeia associativa, particularmente aquelas que subsistem como tropeços da ordem simbólica como tal: ato falho, chiste e, inclusive, sonho. Tomar como fundamental essa vertente de fenômenos que se caracterizam pela descontinuidade do inconsciente – ou seja, tais manifestações não fazem cadeia – levou Lacan a introduzir uma nova categoria que advém logo após a sua invenção do sinthoma. Assim, durante o livro 24 do Seminário, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre, propõe-se uma forma inédita de nomear esses fenômenos disruptivos basais do inconsciente por meio da tradução fonética do Unbewusst freudiano, pelo termo francês de une-bévue. Sérgio Laia nos sugere o uso, em português, para a tradução semântica de une-bévue, do termo inadvertência[34]. Enfim, se a operação analítica deixa de ter como móvel a decifração, tornou-se necessário “ir mais longe do que o inconsciente” estruturado como linguagem, em que o vetor deste para além é a produção do tecido do inconsciente. Ao visar o que Lacan denonima como tecido, a experiência da análise passa a operar tendo como referente a micro-unidade do inconsciente enquanto inadvertido e a macro-unidade do sinthoma[35].

Em terceiro lugar, destaca-se o que Miller concebe como o fato clínico maior que Lacan trabalha e põe em evidência no momento conclusivo de seu ensino, ou seja, o se que constitui como uma espécie de patema da clínica do sinthoma que é a inibição para imaginar o real[36]. O chamado fato clínico da inibição não aparece apenas em situações como a da ausência da relação imaginária, como vimos no episódio da surra em Joyce, mas, sim, à postulação de uma hiância entre o imaginário e o real. Importa salientar, como horizonte dessa clínica, o recurso inevitável do imaginário para “imaginar o real”[37]. Porém, é nesse ponto da hiância que a inibição incide e se encorpa. Ainda que articulada às imagens, a inibição se edifica como o principal fator de impedimento para a imaginarização do real.

 

INIBIÇÃO

IMAGINÁRIO // REAL

 

Por fim, cabe afinar ainda mais a tese de que o imaginário é o corpo se faz presente no final de análise? Evoca-se aqui o comentário que faz Éric Laurent sobre uma passagem do seminário L’insu que sait de l’une bévue, de que aquilo “que o homem sabe fazer com sua imagem corresponde de alguma forma (…) à maneira de como ele se vira com o sinthoma”[38]. Ao reconhecer a equação entre o ‘se virar com o sintoma’ e o ‘se virar com a imagem’, Lacan leva às últimas consequências sua contribuição de que, para imaginarizar o real, não se dispensa o recurso ao imaginário e que, de modo algum, se escapa da metáfora. O imaginário é o próprio alicerce do tecido do inconsciente e “o tecido isso se imagina somente (…) e tudo o que acontece para imaginar se extrai do próprio Imaginário”[39]. Tudo indica que, no tocante ao enodamento RSI, o final de análise concerne essa hiância entre o Imaginário e o Real na medida em que nela se ergue o muro da inbição.

Por fim, essa reabilitação do imaginário em detrimento do simbólico na clínica do sinthoma, aponta para a insuficiência de toda descrição ou representação autoficcional do real. O acréscimo a ser feito é o de que o sintoma se escreve como inibição, sobretudo quando se trata do homem e de sua fixação no parceiro objeto olhar, nada fácil de ser arrancável. Claro, isso não se escreve em uma escrita objetivável, pois o que está em questão é o tecido do inconsciente que se confecciona em torno da não-relação com o corpo do Outro. Se virar com o parceiro-sinthoma, quando se está diante da inexistência da relação sexual, é se virar com esse tecido que se aguenta por meio dos furos e restos do gozo. Dizer que o ser falante se vira com o parceiro sexual como se vira com a própria imagem é dizer que se vira com a imaginarização do que faz furo no real por meio do gozo pulsional.

Se o gozo do corpo do Outro inexiste, não se toma o narcisismo inerente à escolha amorosa como impedimento, na medida em que o próprio imaginário se coloca como prova do que se sabe fazer com o parceiro-sintoma. O papel do imaginário como tal assume um valor efetivamente decisivo e fundamental. Não se está mais na época do imaginário depreciado e subjugado pelo simbólico, pois o próprio imaginário fornece uma coordenada a mais, para viver em um mundo em que prevalece o império da imagem. Enfim, saber se virar com a imagem é saber se virar com aquilo que no corpo se goza, via sintoma, e é isso que permite o saber se virar com o parceiro-sinthoma.

 

Figura 1

O imaginário na clinica lacaniana

 

[1]LACAN, J. Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines, Scilicet, Seuil, Paris, 1976

, n. 6-7, p. 54.

[2]Idem, ibidem.

[3]LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 96-103. (Trabalho original proferido em 1949), p. 97.

[4]Idem, ibidem.

[5]MILLER, J.-A. Piezas sueltas (2004-05). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 57-58.

[6]LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76), p. 135.

[7] “A antiga noção de inconsciente, o Unerkannt, apoiava-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo. O inconsciente de Freud é justamente a relação que há entre um corpo que nos é estranho e alguma coisa que faz círculo, ou mesmo reta infinita […].”  (LACAN, 1975-76/2007, p. 145, grifo nosso).

[8]“Coisa em que ele não pensaria, supomos, se esse corpo que tem, ele verdadeiramente o fosse.” Cf.: LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975), p. 565.

[9] MILLER, 2013, p. 65.

[10] LACAN, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69), p. 93.

[11] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73), p. 178.

[12] LACAN, 1975/2003, p. 565.

[13] LACAN, 1975-76/2007, p. 61-62.

[14] Idem, p. 63.

[15] Idem, ibidem.

[16] MILLER, 2013, p.18.

[17] Idem, p. 21.

[18] LACAN, 1975-76/2007, p. 161.

[19] JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 78.

[20] LACAN, 1975-76/2007, p. 145.

[21]Idem, p. 146.

[22] Idem, ibidem.

[23] SAUVAGNAT, F. Du détail pictural ‘non significatif’ aux phenomènes elementaires discrets: un brève    parcours, 2015. Disponível em: https://www.amp-nls.org/fr/nls-messager/nls-minute-20/. Acesso em: 01 mai. 2024.

[24] LACAN, 1975-76/2007, p. 147.

[25] Idem, p. 146.

[26] Idem, ibidem.

[27] MALEVAL, J.-C. Élements pour une appréhension clinique de la psychose ordinaire, Paris: Navarin, 2003, p. 14.

[28] LACAN, 1975-76/2007, p. 146.

[29]LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, Contracapa, Rio de Janeiro, 2016, p. 131.

[30]MALEVAL, 2003, p. 14-15.

[31]LACAN, 1975-76/2007, p. 91.

[32]Idem, ibidem. (Grifo do autor).

[33]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.

[34]Ver a esse respeito: in: LAURENT, É., 2016, p. 66.

[35]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.

[36]MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan (2006-07). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 256.

[37]Idem, p.

 [38] LAURENT, É. Hablar con el propio síntoma, hablar con el propio cuerpo. 2013. Disponível em: https://elp.org.es/hablar-con-el-propio-sintoma/. Acesso em: 01 mai. 2024.

[39]Lacan, J.

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