Seminário preparatório08.08.2024EIXO 2:

Luz e cenário – Comentário sobre o relatório A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário (Eixo 2)

por Henri Kaufmanner

Como assinala Lilany Pacheco no relatório A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário[1], Miller postergou sua abordagem do ultimíssimo ensino de Lacan por prever que este teria efeitos desestruturantes. Nesse seu ultimíssimo ensino, Lacan convidaria os psicanalistas à invenção de sua prática convocando todos a produzir um saber novo. Não seria, portanto, inapropriado dizer, a partir do que Miller[2] nos transmite que, no ultimíssimo ensino de Lacan, trata-se também de uma esfoliação da psicanálise.

Resgato a citação de Bernardo Micherif[3] quando nos fala do cenário em jogo no fantasma. Um cenário implica sempre uma imagem, um olhar e nosso lugar em relação a ele.  É no cenário  que me encontrei diante do relatório que nos apresentou Lilany Pacheco e ao qual faço, aqui,  meus comentários.

Parece-me importante percorrer um caminho que nos permita interrogar  sobre o que há de novo no assim chamado novo imaginário. Sigamos pelo viés desestruturante.

Escolho dois momentos em que Lacan retoma o fantasma a partir do texto de Freud “Bate-se uma Criança”.[4]

O primeiro momento se dá no Seminário 5, As formações do inconsciente[5]. Ali, Lacan articula a dimensão simbólica do fantasma. Lembremos que este se apresenta em três tempos, com três frases. Entre a primeira frase, “Uma criança que odeio é batida pelo pai” e a terceira, em que uma criança é batida por um adulto, há uma mudança no cenário. No primeiro tempo, podemos destacar a dimensão imaginária e o ódio em cena. A passagem para a segunda frase, aquela que jamais existiu, inclui a criança no cenário. Em decorrência de um atravessamento imaginário, a criança que olha é, agora, aquela que é batida. No terceiro tempo, contudo, o que entra em jogo são os participantes da cena, de maneira inespecífica: a criança e o adulto não são identificados claramente. A conclusão de Lacan nesse momento privilegia o valor coletivo da cena, a amarração simbólica e a entrada no laço social. A criança aí se inclui a partir do Outro da linguagem e seu universo simbólico.

No seminário A lógica do fantasma, diferentemente, Lacan[6] considera que o fantasma não passa de um arranjo de significantes e que não haveria nada mais que engendrasse o sujeito além de uma frase – engendramento este que, como vimos, já está assinalado no Seminário 5. Lacan dá um passo a mais. De maneira bem pontual, Lacan  assinala que “Bate-se uma criança” trata-se exclusivamente de uma articulação significante que quase vela o impossível de eliminar: o olhar[7]. A criança gozaria no lugar do olhar que observa a cena do bater. Haveria, portanto, no olhar, o elemento fundamental, esse impossível de eliminar, mais além desse arranjo simbólico coletivo, arranjo este ordenado pelo amor ao pai. A presença paterna no primeiro tempo do fantasma, opera a estrutura que se constroi ao final como um laço simbólico. Assim teríamos o matema do fantasma (S/<>a). Entretanto, assinalemos que, tomada pelo olhar, o fantasma compõe a cena que a criança observa.

Arriscaria dizer que, no Seminário 14, Lacan aponta para algo além da estrutura. Para sustentar essa afirmação, retomarei suas elaborações sobre a esquize entre o olho e o olhar no Seminário 11[8]. A figura abaixo permite-nos perceber um pouco da dimensão desestruturante
presente nessa elaboração lacaniana[9]:

O Estádio de Espelho, o Esquema Ótico, aqueles com os quais nos acostumamos e que nos ajudaram a pensar a relações entre o simbólico, imaginário e o corpo, principalmente no primeiro ensino de Lacan, são construções que se sustentam-se no campo geométrico. Embora um sujeito, no ponto geometral, perceba a imagem refletida de um objeto, tal como é desenvolvido seja nos Estádio do Espelho, seja no Esquema Ótico, essa percepção não é impossível de ser alcançada por um cego. Isso se deve ao fato de que as relações entre o sujeito, o objeto e sua imagem são geometricamente determinadas. Podem ser intuídas.

Quando Lacan está tratando da esquize entre o olho e o olhar, ele inova ao afirmar que o olhar está na luz, no ponto luminoso, algo que vem do mundo, fora do campo dos reflexos e do Outro. Não se trata aí de uma representação.

O que é luz olha para o sujeito, captura-o, e algo no fundo do olho se pinta. Algo que não é uma relação construída e, aqui, encontramos a distinção fundamental feita por Lacan em relação às suas elaborações referidas ao campo geometral. Trata-se do que está elidido na relação geométrica: na verdade, é aí que o sujeito é apreendido, convocado a todo instante. Com isso, a paisagem se apresenta bem diferente de uma perspectiva, trata-se de um quadro.

O sujeito ali se faz olhar, colocando-se na cena, pintando um quadro em seus olhos, sendo que, nesse quadro, ele se inclui, coloca-se como aquele que olha. Percebemos assim que, na cena do fantasma de “Bate-se uma criança”, esse olhar ineliminável é possível a partir do anteparo, condição da cena imaginada. Portanto, mais do que um quadro, o fantasma é também um anteparo que permite ao sujeito se incluir na zona de sombra criada diante da luminosidade. Como diria Lacan no seminário 11, a realidade é marginal:

“O correlato do quadro, a situar no mesmo lugar que ele, quer dizer, do lado de fora, é o ponto do olhar. Quanto ao que, de um ao outro faz mediação, o que está entre os dois, é algo de natureza diversa da do espaço geometral, algo que representa um papel exatamente inverso, que opera, não por ser atravessável, mas ao contrário, por ser opaco – é o anteparo, o écran.”[10]

O ser humano se demarca assim na estrutura imaginária constituída a partir da disjunção do olho e do olhar. Mas ele consegue jogar com a máscara, como algo que aponta para um mais além do olhar. O homem faz do anteparo sua mediação, diria Lacan. O sujeito se torna ele mesmo esse olhar, na medida em que se acomoda a ele um ponto do ser evanescente, onde se confunde com seu próprio desfalecimento. Lacan afirma que, de todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer sua dependência no campo do desejo, o olhar é o mais inapreensível, e, portanto, o mais desconhecido. Daí, a facilidade do sujeito em escamotear a presença desse objeto, através da ilusão produzida no espelho.

Esse olhar que se encontra ali de modo algum é um olhar visto, mas um olhar imaginado no campo do Outro. O olhar propriamente dito, jamais se dá a ver. Como produzir esse tipo de escamoteamento sem o recurso do espelho? Encontraremos mais uma referência ao que está em jogo nessa elaboração ao nos ocuparmos dos comentários de Lacan sobre a anamorfose presente no quadro “Os embaixadores” de Hölbein[11].

Diante de toda a ostentação daquela obra, representada pelos embaixadores e tudo aquilo que lembra a vaidade das artes e das ciências, o segredo do quadro é mostrar que, ao nos afastarmos um pouco dele, podemos perceber que o objeto enigmático reflete o nosso próprio nada. Podemos nos perguntar como seria a anamorfose em nosso tempo, um tempo em que os embaixadores ostentam os mais ambicionados gadgets, objetos da tecnologia que permeiam as ofertas de consumo de nosso tempo.

O olhar se apresenta sempre no espaço da luz, em um jogo da luz com a opacidade, e o sujeito, se de alguma forma está no quadro, é como anteparo que ele se apresenta, aquilo que Lacan vai chamar de mancha. Essas questões permitem-nos perceber  que, ao se colocar no mundo, esse onivoyeur anterior a nós mesmo exige uma opacidade que funcione como anteparo, e que franqueie a construção de um quadro. Isso se mostra fora da estrutura, como o corpo é algo imaginado. O imaginário é o corpo. Como fazer mancha no mundo dominado pela luminosidade do espetáculo? Como se enlaçar a um corpo quando o pai não mais surpreende, é esvaziado pela ciência, ou quando os objetos de consumo que prometem o gozo acabam por tamponar a divisão do sujeito? Joyce com sua escrita do ego já apontava um caminho.

As condições da contemporaneidade não colocam mais necessariamente em jogo a dimensão especular, o narcisismo. Encontramo-nos muitas vezes diante de pacientes invadidos de gozo, sem o recurso do fantasma, sem uma cena onde se incluir. Isso nos permite pensar nos avatares da psicose, bem como nas multiplicidades dos problemas das doenças da mentalidade, nos impasses em ter um corpo, num mundo onde a luminosidade das ofertas contemporâneas do consumo nos ofusca a todos. Não por acaso, como aponta Miller, o ultimíssimo Lacan nos convida a inventar um saber novo para a psicanálise. Quem sabe os toros nos ajudem?

REFERÊNCIAS

 

Freud, S. (1976). Uma criança é espancada. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. v. 17 (Trabalho original publicado em 1919).

Lacan, J. (2024). O seminário, livro 14: a lógica do fantasma.  Zahar (Trabalho original publicado em 1966-1967)

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1963-1964)

Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1957–1958).

Miller, J.-A. (2014). El ultimíssimo Lacan. Paidós.

Micherif, B. Eixos de trabalho. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: Eixos de Trabalho – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

Pacheco, L. A tela do fantasma e a esfoliação do imaginario. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

NOTAS

 

[1]Pacheco, L. A tela do fantasma e a esfoliação do imaginario. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

[2] Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan (2006-2007).  Buenos Aires: Paidós. 2014

[3] Micheriff, B. Eixos de trabalho. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: Eixos de Trabalho – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

[4] Freud, S. (1976). Uma criança é espancada. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das            Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. v. 17 (Trabalho original          publicado em1919).

[5] Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1957–1958).

[6] Lacan, J. O seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2024. (Trabalho original publicado em 2023)

[7] Id. p.351

[8] Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1963-1964)

[9] Id.p.93

[10] Ibid. p.98

[11] Ibid. p.91

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