ÚLTIMO SEMINÁRIO PREPARATÓRIO: Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?

Seminário preparatório
24.10.2024
CONCLUSÃO

Textos

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Totem e tabu não é mais um mito que nos permite ler o que acontece nos dias de hoje nas relações entre o falasser e o gozo. Essa relação cada vez mais escapa de uma submissão à lei, que é consequência do pacto firmado entre os filhos após o assassinato do Pai, e que estabelece a permanência do lugar paterno como vazio. Em Totem e tabu verificamos que num só tempo há uma renúncia ao gozo, “todos castrados”, e um consentimento de que o desejo sexual seja regulado pela lei. Sob essa lógica, a lei opera pela via da interdição, mas também franqueia o acesso ao gozo, aquele que ela estabelece como “normal”.

Como nos mostra o relatório referente ao Eixo 3 da 27a Jornada da EBP-MG, redigido por Simone Souto, a norma, com o declínio da função paterna, ao se apresentar ao modo da lei simbólica, altera a relação do falasser com o gozo: se, antes, imperava o universal “todos castrados”, com a norma se tem o imperativo “todos têm direito ao gozo”. a norma toma a voz do imperativo do supereu – Goza!. “Todos devem gozar” e, como o gozo que se obtém nunca é o gozo esperado, o falasser fica preso a essa repetição de gozo que não cessa de se escrever.

 

  1. O gozo é o limite

Em “O aturdito”,[1] Lacan observa que o supereu empurra o sujeito a um gozo para além do falo, fazendo-o girar em torno da aspiração por um gozo absoluto, imperativo. Esse imperativo sempre fracassa, pois, para o falasser, o gozo é aparelhado na linguagem e, o que subjaz sob esse imperativo é o impossível da relação sexual. Por essa razão, o supereu é correlato da castração. A castração se efetiva não mais pela via da lei paterna, mas pela hiância aberta entre o gozo que se obtém e o gozo que se espera. O gozo que se obtém está submetido a um limite, porque o furo da não relação sexual está estabelecido para o neurótico, embora ele nada queira saber sobre isso.

 

Sabemos da importância que Freud concede ao pai na relação do sujeito com o gozo. Em O avesso da psicanálise, Lacan ressalta que Freud, em um determinado momento, elege o complexo de Édipo em detrimento da escuta de suas analisantes histéricas, que podiam levá-lo bem mais longe, para além do complexo de Édipo, como Miller nomeia o conjunto de capítulos que apresenta essa observação lacaniana.[2] O curioso é que, em 1905,[3] encontramos uma passagem em Freud que de algum modo aproxima essa discussão sobre a castração não estar vinculada ao pai, mas a um processo interno. Ao discutir as inibições sexuais, observa que, no período de latência se constroem as forças psíquicas que vão funcionar como barreiras para restringir o curso da pulsão sexual no caminho de sua satisfação. O que chama a atenção é que Freud não atribui apenas à educação a responsabilidade da construção dessas barreiras, pois isso “pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxílio da educação”.[4] Para ele, a construção dessas barreiras é organicamente determinada e fixada pela hereditariedade. Embora não saibamos a que exatamente ele está se referindo com as palavras “organicamente” e “hereditariedade”, podemos interpretar essa passagem como a indicação de que o impedimento de uma pulsão se satisfazer livremente não está condicionado nem a um agente externo, nem a uma ameaça externa. Ou seja, há algo no próprio funcionamento psíquico que impulsiona a construção de barreiras e detém o fluxo pulsional em direção à satisfação. Logo, há uma perda da satisfação pulsional que não se vincula à clássica e hoje tão questionada interdição paterna.

Atualmente, como também nos mostrou Simone Souto no relatório já citado, sob a norma inclusiva do gozo, os neuróticos estão cada vez mais enredados em seus loopings de gozo e culpados por não gozarem como deveriam, esperando que, a cada volta, possam alcançar o gozo que conviria à relação sexual, caso ela existisse. A experiência analítica que se orientava pela primazia do simbólico já não é suficiente para lidar com esses sujeitos enredados na prevalência do gozo, pois o simbólico fracassa no acesso ao real. O real não fala, e, portanto, não é possível simbolizá-lo; trata-se, então, de acedê-lo pela imagem – como nos diz Miller: um novo visual para imaginar o real. É justamente o que Lacan propõe em seu ultimíssimo ensino: o imaginário como a via pela qual se pode vislumbrar o real.

Quando é o próprio gozo que engendra a castração, estabelecendo um limite, mesmo que o sujeito se recuse em consentir com o furo da não relação sexual e com a inexistência do gozo absoluto, como podemos, então, reconhecer o funcionamento neurótico, se não é mais o recalque que está no cerne da defesa frente à exigência pulsional?

Encontramos em cada relatório apresentado nos Seminários Preparatórios elementos para elaborarmos uma resposta para essa questão, além de um trabalho clínico exaustivo sobre essa temática. Não será meu objetivo retomar o caminho já percorrido, mas me servir dele para relançar uma ou, talvez, algumas questões que possam continuar nos inquietando até 27ª Jornada da EBP-MG.

No Seminário O sinthoma,[5] Lacan nos apresenta um outro modo de abordar a subjetividade do falasser. Não há mais a primazia entre os registros Simbólico, Imaginário e Real e sim uma relação de equivalência. Importa saber a relação que cada um tem com o outro e como eles se enodam. Pensar a clínica a partir do enodamento entre R, S e I, as falhas que acontecem nessa amarração e as reparações possíveis para mantê-los juntos a partir do acréscimo da quarta rodinha de barbante, o sinthoma, independente da estrutura clínica em jogo, é sair da lógica do gozo como resto de uma operação simbólica para tomá-lo como acontecimento de corpo, e tomar a constituição do sinthoma como iteração do gozo advindo do impacto do significante, S1 sozinho, no corpo. No sinthoma, há iteração do S1 sozinho, ou seja, ele não é definido como o retorno do recalcado.

Maria José Gontijo apresenta a importância do tema da 27ª Jornada, …e as neuroses continuam existindo, “em um mundo cada vez mais tomado pelas psicoses”,[6] lançando o desafio de cingirmos os referentes teórico-clínicos que nos orientem na diferenciação entre neurose e psicose e qual seria o estatuto da interpretação analítica.

 

  1. O fantasma, o objeto a e a inibição

No ultimíssimo ensino de Lacan, localizado por Miller nos Seminários 24 e 25, encontramos uma nova definição da neurose, sem recorrer ao Nome-do-Pai ou ao falo. Na lição “O real não fala”,[7] Miller retoma o esquema, apresentado no capítulo VIII do Seminário 20, que define os lugares de R, S e I a partir de três vetores orientados no sentido horário. Nesse esquema, também trabalhado no relatório do Eixo 1 redigido por Ana Lydia Santiago, o imaginário se dirige ao simbólico, I→S, e nessa imaginarização do simbólico se situa o fantasma; o simbólico se dirige ao real, S→R, e nesse caminho Lacan situa o objeto a. No referido capítulo, Lacan faz o movimento de estabelecer uma disjunção entre o real e o simbólico. Ao acrescentar o semblante no caminho do simbólico para o real, ele indica a inadequação do objeto a na abordagem do real, porque diz respeito ao efeito de sentido: “o simbólico, ao se dirigir para o real, nos demonstra a verdadeira natureza do objeto a”,[8] sua natureza de semblante de ser. E, por fim, o real se dirige para o imaginário, R→I, é a imaginarização do real. No Seminário 25, Lacan situa a inibição nesse vetor.

Frente à hiância que se apresenta, na neurose, entre imaginário e real, há uma dificuldade em se utilizar uma imagem para se ter uma ideia do real. Essa dificuldade é da ordem de uma inibição. Lacan, portanto, situa a inibição como uma defesa que impede o neurótico de imaginar o real.

 

  1. A inibição de Freud a Lacan

Em Freud, a inibição se refere a uma detenção do movimento, é o impedimento do exercício de uma função para evitar o desencadeamento da angústia. Ela consiste numa solução mais eficiente para a angústia, podendo, em alguns casos, evitar um conflito com o Isso. Freud apresenta, como exemplos, a inibição em tocar piano, ou escrever, ou andar, e “isso ocorre porque os órgãos físicos postos em ação – os dedos ou as pernas – se tornam erotizados de forma muito acentuada”.[9] Também existem inibições que servem à autopunição, em que o eu inibe a realização de atividades no campo profissional que trariam lucro e sucesso. Essas inibições evitam um conflito com o supereu.

Há estados de depressão que podem decorrer de uma inibição generalizada, quando o eu tem que lidar com uma tarefa psíquica particularmente difícil. Como exemplo, um neurótico obsessivo que era dominado por uma fadiga paralisante, que durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente deveria tê-lo enfurecido.

Lacan se serve das elaborações freudianas em “Inibição, Sintoma e Angústia” em dois momentos de seu ensino. Um deles se encontra no Seminário A angústia,[10] em que ele dispõe essa tríade freudiana em três planos, orientados pelos vetores da dificuldade e do movimento. A inibição ocupa o lugar em que há zero dificuldade e zero movimento. Diametralmente oposto a ela se encontra a angústia, sinalizando que seu lugar está determinado pelo alto grau de dificuldade e de movimento.

Outro momento é no Seminário RSI, logo nas primeiras lições, em que Lacan articula inibição, sintoma e angústia com os registros real, simbólico e imaginário, respectivamente:

[…] no que diz respeito à Angústia, Inibição, Sintoma, que distribuí em três planos

Inibição

Sintoma

Angústia

para poder, justamente, demonstrar, o que é sensível, desde aquela época, a saber, que esses três termos, Inibição, Sintoma e Angústia são heterogêneos entre si como os meus termos Real, Simbólico e Imaginário. (tradução nossa)[11]

No Seminário RSI, Lacan procura demonstrar que o nó borromeano, ou seja, a amarração entre os três registros, é o que constitui a subjetividade, a estrutura do ser falante, sem se valer do mito do Édipo, embora, em algumas passagens, tente articular o mito edipiano com os registros. Seu interesse pelo modo como Freud aborda a constituição do funcionamento psíquico em torno da inibição, do sintoma e da angústia se dá por reconhecer que, no texto em que esses termos aparecem no título, Freud pensa a estrutura neurótica sem colocar o mito de Édipo como central. Para Freud, a angústia é o elemento central das neuroses, e a inibição, por sua capacidade de antecipar-se ao seu surgimento, detendo o movimento, revela-se como a defesa mais eficiente contra ela. O sintoma, por sua vez, é uma resposta ao desencadeamento da angústia.

O primeiro ponto a ser destacado quanto à inibição é o fato de que ela própria resolve o que não pode ser satisfeito no corpo, ou seja, a satisfação é posta fora de ação pela detenção do movimento. Já o sintoma, enquanto retorno do recalcado, é definido como “um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente”,[12] e demonstra que a defesa do recalque falha. A presença do sintoma no eu é sempre a de um corpo estranho, de algo que não lhe pertence.

Quando Lacan, em seu ultimíssimo ensino, define a neurose a partir da inibição – inibição em produzir um visual sobre o real, porque entre o real e o imaginário não existe continuidade, e sim hiância –, ele segue a orientação freudiana de que na inibição há uma eficácia, pois há uma detenção do movimento. Isso vai na mesma direção da seguinte afirmação de Miller: “é certo que o que ele chama angústia é o que conota a passagem da realidade ao real, a travessia da realidade no sentido do real e que, com isso, é correlativa de uma falha do significante”.[13] O que estanca esse movimento, o que o detém, com a finalidade em evitar a angústia, é a inibição. A inibição, portanto, é uma defesa frente ao real.

 

  1. Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?

Sabemos que, na neurose, a hiância entre I e R não se desfaz. E quanto à inibição? É possível transpô-la? Transpor a inibição comporta consentir com o “não há relação sexual”? Ou o que acontece não seria da ordem de uma transposição, e sim de uma supressão, da Unterdrückung, tal como sugere Lacan em relação ao tropeço de memória de Freud, o esquecimento da palavra Signorelli? No caso, a “palavra Signor, Herr, passa por baixo – o senhor absoluto, a morte, para dizer tudo, desaparece ali”.[14] Isso quer dizer que o Signor é mantido no circuito sem poder entrar nele por algum tempo. Podemos pensar que a inibição pode ser suprimida, mas ela se mantém, sem interferir no processo em que se produz um visual para aceder o real? A inibição fica fora do circuito apenas por um tempo?

Durante a discussão do primeiro relatório, Jésus Santiago perguntou se o sonho poderia ser um visual proposto pelo imaginário para se ter uma ideia do real. No relatório do Eixo 3, Simone Souto propõe o sonho como uma via para apresentar esse visual, porque apresenta uma imagem “para enfrentar o silêncio do real”.[15] Traz como exemplo o sonho de Freud da Injeção de Irma.

Ao analisar seu sonho, Freud aponta para o momento em que surge uma imagem aterradora e angustiante, que é a imagem do fundo da garganta de Irma. Lacan reconhece nessa imagem a revelação do real. Freud não desperta e seu sonho vai mais adiante, conduzindo-o a uma outra imagem, que é a fórmula da trimetilamina. Nesse sonho, surge um visual para se aceder ao real, de dois modos diferentes. Num primeiro momento, só a imagem aterradora; como Freud vai além e não acorda, para continuar sonhando, chega a uma segunda imagem, a fórmula da trimetilamina, que não conduz ao sentido, mas a uma sequência de letras, que Lacan aborda como sendo o real cifrado em letras. O percurso desse sonho poderia ser reduzido do seguinte modo: da imagem aterradora – um visual do real – que causa angústia, à imagem de um real cifrado em letras. É possível dizer que a fórmula da trimetilamina, esse segundo visual, foi a solução encontrada por Freud ao horror ao feminino? Embora em suas elaborações o enigma do feminino persista com a questão O que quer uma mulher?, ele não alcança teoricamente o triunfo alcançado em seu sonho: o feminino fora do sentido.

Se, nesse sonho, uma imagem se produz capaz de revelar o real que não fala, o que aconteceu com a inibição? Ela foi suprimida por um tempo, permitindo que esse visual que revela o real passasse por baixo?

Eu lanço a hipótese de que, ao menos nos sonhos, quando eles produzem um visual que acessa o real, a Unterdrückung, a supressão da inibição, é sempre contingente. A inibição em imaginar o real, nesses casos, não é abolida. A inibição sofre a ação da Unterdrückung. Esse visual que surge no sonho não significa necessariamente que o sonhador vislumbre o furo da não relação sexual e extraia disso todas as consequências. Produzir, conforme indica o relatório do Eixo 3 escrito por Simone Souto, uma outra “fixão do real” só é possível através da experiência analítica, em que o analista interpreta com o corte de sentido, fazendo surgir uma significação vazia.

Trago um sonho extraído do testemunho de passe de Jésus Santiago, no qual é possível extrair um visual do real a partir do equívoco homofônico entre duas línguas diferentes.  O sonho é o seguinte:

Estou numa comemoração na Escola, aproximo-me de um de meus colegas que participava do grupo de discussão sobre o tema de um relatório e digo-lhe que encontrei a fórmula para a solução do problema do masculino. Convido-o para ir até a biblioteca e, no instante de mostrar-lhe minha descoberta, vejo folhas em branco, onde está escrito apenas o título: “fórmula Q”. Fico desapontado: onde teria escrito a solução, deparo-me com o vazio.[16]

Ao relatar esse sonho na língua francesa, o que fica é a fonação “formule cul”. Essa palavra, cuja significação é vazia, é uma imagem que captura o gozo traumático do sujeito. Embora não seja um sonho de final de análise, é a demonstração de que o final já estava em perspectiva.

Até o momento, arrisco dizer que, através dos sonhos, é possível suprimir a inibição de se imaginar o real e, com isso, produzir uma imagem que dê certa ideia do real. Nos sonhos, isso acontece de modo contingente, o real cessa de não se escrever, ao menos naquele momento. Outra via para que se possa aceder ao real pelo imaginário é a experiência analítica orientada pela interpretação como corte, que esvazia o sentido, cuja visada é o gozo do sinthoma.

O que acontece com a inibição que se aloja na hiância entre imaginário e real, dificultando ao neurótico imaginar o real numa experiência analítica? Haveria outra possibilidade, para o neurótico, de aceder ao real pela via de um novo visual, apesar da inibição? A esfoliação do imaginário, que acarreta a redução do fantasma, é capaz de vencer a inibição e permitir ao neurótico aceder ao real pela via da imagem? Foram essas questões que me surgiram ao ler o relatório do Eixo 2, escrito por Lilany Pacheco. Esse relatório formula a seguinte hipótese, partindo do lugar de primazia do corpo no ultimíssimo Lacan:

esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes no que retornam como algo tangenciável como gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real, e não mais a tela de proteção.[17]

Lacan, ao formular que o fantasma não é apenas tela para o real, mas também funciona como janela para o real, propõe duas funções para ele. Uma delas seria a de proteção, de anteparo, mantendo o falasser a uma boa distância do real – aqui a inibição em imaginar o real se apresenta. A outra, como janela para o real, seria de abertura ao real. O fantasma, nessa função de janela para o real, seria ele próprio um visual do real?

Por um bom tempo, as análises eram conduzidas para a construção do fantasma reduzindo-o a uma frase axiomática, tal como “Bate-se numa criança”. A travessia do fantasma, ou seja, sua redução a uma frase axiomática, possibilitar-nos-ia ter acesso ao real. Lacan, no entanto, observou que sempre há restos que não foram modificados pela travessia do fantasma. São esses restos que iteram no sinthoma.

Sérgio de Mattos, em seu texto “O que se passa no que não anda na neurose”, apresentado recentemente na Conferência dos Analistas da Escola, nos dá uma orientação do que acontece quando, ao esfoliar o imaginário, reduz-se o fantasma a uma frase axiomática, permitindo ao sujeito, com isso, cingir o objeto a que está em jogo. O longo trajeto de análise e os cortes do analista permitiram-lhe uma transformação em sua relação com o fantasma fundamental como programa de gozo. Ou seja, já não estava tão submetido ao enquadre fantasmático. Foi um período da análise em que houve “o enfraquecimento da tela defensiva do fantasma e ao mesmo tempo totalmente tragado pelo gozo do apagamento”, gozo de seu sinthoma. Nesse momento, sonha estar caminhando em um deserto, quando tropeça em um toco. O trabalho analítico lhe possibilita encontrar uma solução pragmática para essa imagem do sonho em que o toco marca uma orientação: “tocar adiante”. Por outro lado, o (t)oco lhe remete ao nada que se conecta à imagem do deserto. Sem o enquadre fantasmático, ao cingir o nada através do sonho pôde desvelar a “situação de devastação que vivia como um radical apagamento”. Com isso, é levado à lembrança infantil de um acontecimento de corpo, permitindo-lhe discernir o objeto a em jogo em seu fantasma: o objeto nada. A análise continua, ultrapassa o deserto, e “transforma o nada em um lugar que situa um vazio”. Isso se verifica em um sonho em que há, entre outras coisas, “uma moldura que envolve um vazio de azul maravilhoso” e uma outra moldura que contém no seu interior uma mandíbula de osso, representando a morte; mas a vida também se faz presente alí através da imagem da trepadeira florida, que se enrosca na moldura da morte. Esse sonho produz o visual em que o nada se transforma em vazio vivificante. Com esse testemunho, observamos a passagem do fantasma como tela para o real, e, portanto, em sua função de defesa, de anteparo para o real, para o fantasma enquanto janela para o real. Essa passagem só é possível quando há esfoliação do imaginário.

É possível dizer que a redução do fantasma em uma frase axiomática – uma frase, portanto, sem sentido – é um visual, uma vez que ele se apresenta como janela para o real?  Essas duas molduras que aparecem no sonho – uma que envolve um vazio de azul maravilhoso e a outra em que a mandíbula de osso, que representa a morte, se entrelaça à vida pela presença da trepadeira florida – seriam a exemplificação de que houve uma Unterdrückung da inibição e, com isso, a produção de um visual para se ter uma ideia do real que não fala?

Após esse percurso, lanço minha hipótese: da mesma forma que a hiância entre o imaginário e o real, na neurose, não se desfaz, o mesmo aconteceria com a inibição. Ou seja, não há transposição, tampouco desaparecimento da inibição em imaginar o real. Acredito que há Unterdrückung da inibição, e ao ser suprimida, uma imagem passa por baixo revelando o real através dela para o falasser.

Notas do autor:

 

[1] LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972).

[2] LACAN, J. O mestre castrado. In: O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).

[3] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1969. (Trabalho original publicado em 1905).

[4] Idem, ibidem, p. 181.

[5] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).

[6] GONTIJO, M. J. Argumento. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Argumento, eixos e citações. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/argumento/. Acesso em: 01 out. 2024.

[7] MILLER, J.-A. O real não fala. In: El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Stéphane Verley. Buenos Aires: Paidós, 2013.

[8] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

[9] FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926). p. 110.  

[10] LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final de Angelina Harari e preparação de texto de André Telles; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63). p. 22.

[11] LACAN, J. Le Séminaire, livre XXII: R.S.I. Leçon du 17 décembre 1974. (Trabalho original publicado em 1974-75).

[12] FREUD, 1926/1996, p. 112

[13] MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário 10 da angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 43, p. 7-91, mai. 2005. p. 17.

[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979. (Trabalho original proferido em 1964). p. 31.

[15] SOUTO, S. Quanto tudo é normal, o que se analisa? In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/quando-tudo-e-normal-o-que-se-analisa-eixo-3/. Acesso em: 01 out. 2024.

[16] SANTIAGO, J. O nome, o oco e a fonação. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 67, p. 89-96, 2013. p. 93.

[17] PACHECO, L. A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-tela-do-fantasma-e-a-esfoliacao-do-imaginario/. Acesso em: 01 out. 2024.

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ÚLTIMO SEMINÁRIO PREPARATÓRIO: Para ainda (não) concluir

Seminário preparatório
24.10.2024
CONCLUSÃO

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O tema de nossa Jornada, …e as neuroses continuam existindo, leva-nos a interrogar como as neuroses se apresentam no contemporâneo. Quais desafios o sofrimento dos neuróticos expõe, quando aparentemente tudo é normal? Que invenções e arranjos criam para lidar com o mal-estar generalizado? Quais as estratégias para recobrir a inexistência da relação sexual? E, também, quais as dificuldades que se colocam aos analistas no que se refere aos impasses, na transferência, à questão do diagnóstico, à condução do tratamento, à interpretação, uma vez que as normas fálicas e edípicas se distanciam, o Nome-do-Pai encontra-se evaporado e o romance familiar não tem a mesma consistência de outrora? Enfim, como “ler” as neuroses contemporâneas? O que mudou na clínica?

O convite feito por Maria José Gontijo e Bernardo Micherif, assim como a orientação da Comissão Científica, me instigaram a retomar, neste último encontro, como os seminários anteriores conversam entre si, de modo que pudéssemos extrair pontos que ficassem como vetores do percurso realizado ao longo do ano, bem como para a Jornada que se aproxima.

Assim, proponho, à luz de algumas pontuações clínicas que foram trabalhadas, localizar como se dá a prática analítica contemporânea. O desafio lançado por Bernardo[1] em seu argumento foi o de darmos um passo a mais, tendo como bússola o conceito de sinthoma desenvolvido no Seminário 23 e adentrar nas pistas dos Seminários 24 (L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre) e 25 (Le moment de conclure), ambos inéditos, nos quais Lacan recorre aos nós e aos toros, literalmente manejando-os, recorrendo pouco às palavras e privilegiando o fato de que “o Real não fala”,[2] que “o inconsciente tem a ver com o escrito”[3] e “de recorrer ao Imaginário para se ter uma ideia do Real”.[4]

Um ponto importante levantado nos relatórios foi de como, hoje, o Simbólico encontra-se “inadequado e rebaixado”.[5] Miller chega a falar de eclipse da ordem simbólica, e, com isso, contamos com o recurso do Real e do Imaginário com igual valor e peso na lógica do nó borromeano, desenvolvido no Seminário 23.

Temos o corpo enquanto imaginário, lugar onde o gozo se manifesta por excelência, através da ruminação obsessiva e dos devaneios da histérica. Tomando como referência o eixo de trabalho intitulado “Onde estão os neuróticos e de onde eles não saem”foi possível pinçar dois breves relatos de pacientes. Um obsessivo me diz: “Parece que sofro da Síndrome de Estocolmo, aquela em que a pessoa sequestrada gosta do sequestrador… Sou fascinado pelo próximo erro que vou cometer – fascinado, é essa a palavra que melhor encontro! Sou fascinado com o que pode acontecer de ruim, estou sempre esperando o pior. É como se eu gostasse disso! Fico cortando o meu barato; se vivo algo bom, só penso que vai acabar… Minha vida é um eterno domingo à tarde!”. A palavra fascinado alude ao termo “facínora”, atributo do supereu, evocado por Freud em seu texto “Arruinados pelo êxito”.[6] Esse recorte demonstra como o pensamento e a recriminação foram a via utilizada por esse falasser para não se haver com o enorme prazer que tinha com a pintura, da qual se privava, em detrimento dos cuidados com a família.

Em contrapartida, no discurso de uma mulher, conseguimos entrever a infindável justificativa quanto à sua solidão: “Os homens de BH são muito gays; na minha faixa etária é difícil encontrar alguém disponível, eles não se interessam e só querem as menininhas; ou, então, só aparece homem casado em minha vida e eu tenho sempre que ser a outra, nunca a oficial…”. O ponto de gozo desse sujeito está justamente em se colocar em uma procura infindável de um homem perfeito, exatamente para não o encontrar.

Enquanto analistas, estamos advertidos por Miller de que a “razão real de ser” de cada um é o gozo, como nos lembra Ana Lydia Santiago[7] em seu relatório. Temos, assim, o gozo em sua dimensão de repetição e até mesmo de iteração e reiteração: aquilo que retorna ao mesmo lugar, em uma espécie de ritornelo, o “não quero saber nada disso”.[8]

Um outro aspecto que podemos extrair dos relatórios é o lugar que ocupa a inibição nos três registros. Em seu Seminário 25, Lacan nos fornece uma pista:

um tecido, seu suporte, é o que eu chamei de o Imaginário. E o que é surpreendente é justamente isso, a saber, que o tecido, isso se imagina somente. […] É preciso dizer que o tecido não é fácil de imaginar, pois que aí isso se encontra somente no corte. Se eu falei de Simbólico, Imaginário e de Real, é bem porque o Real é tecido. Então como imaginar esse tecido? Pois bem, é precisamente aí que está a hiância entre o Imaginário e o Real. E o que há entre eles é a inibição… precisamente em imaginar.  Mas o que é essa inibição, pois que, também, temos dela aí um exemplo, não há nada mais difícil que imaginar o Real; e aí parece que giramos em círculo e que, nesse negócio de tecido, o Real é bem isso que nos escapa e é por isso que nós temos a inibição. É a hiância entre o Imaginário e o Real que faz nossa inibição[9].

Essa assertiva de Lacan nos conduz a outra indagação: o que ele queria dizer com “o Real é tecido”? Haveria um tecer em jogo na esfoliação do Imaginário para se aproximar do Real? O exemplo clínico trazido por Ana Lydia[10] no Seminário de Orientação Lacaniana, “A mulher-borboleta”,[11] extraído da Conversação Clínica ocorrida em Montpellier, ilustra a maneira da tessitura do Real. Resta-nos imaginar o Real quando não contamos com o Simbólico e, ainda, como “a inquietante estranheza (o infamiliar / Unheimlich) que provém do Imaginário” causa uma inibição, tal como descrito por Lacan no Seminário 23.[12]

Interessou à analista da paciente (Marie-Hélène Blancard) trabalhar o momento em que a imagem se destaca como algo de infamiliar, admitindo que essa imagem aponta para o real em jogo nos impasses de sua vida amorosa. Trata-se de uma atriz que estava fazendo um filme que se passa no campo, quando subitamente é capturada pela imagem de uma borboleta que pousa a seu lado. Tomada por extrema angústia, fica tão desconcertada que a cena que estava sendo filmada precisou ser interrompida – algo de uma estranheza a perturba, e a todos à sua volta. Tal cena a remete às lembranças da infância, ao olhar imóvel do avô inválido sobre ela, às brincadeiras com o filho do vizinho e ao pai deste, que a levava para passear em seu trator. Esse homem, em uma cena de abuso, provoca-lhe um prazer perturbador e, depois, muita vergonha. A analista da paciente afirma que essa mulher tinha certa inibição intelectual, não habitava o próprio corpo, vivia como uma borboleta, passando por cima dos acontecimentos da vida com “leveza”, como se nada a afetasse, ou como se nada estivesse acontecendo em uma posição de bela indiferença.

Assim, a introdução no campo visual da borboleta irrompeu algo que refere ao trauma do gozo, à cena sexual e, ao mesmo tempo, ao significante borboleta, sua forma de viver. É como se a borboleta se afirmasse, diante da paciente, em sua imobilidade – aí está o ponto da angústia –, bem como o olhar parado de seu avô sobre ela, que a leva a fugir para a casa do vizinho. Toda essa moldura está sob o regime do olhar, não esquecendo o enquadramento da câmera, a imagem através do filme rodado, acompanhado de palavra alguma: “não há discurso”, afirma Miller na referida Conversação. Parece que o cinema não deixou de ser uma forma encontrada por ela para lidar com o objeto olhar. A borboleta que a olha parada remete a um traço do gozo desse sujeito, do qual não se desvencilha, e que, segundo sua analista, aparece igualmente na transferência (entre o ir e faltar nas sessões) e em sua relação com o parceiro amoroso (ao também se colocar como ausente na relação sexual, inibida frente ao sexual).

Isso nos interessa porque, tal como Ana Lydia esclarece, podemos tomar a emergência do fenômeno do infamiliar como o aparecimento, no campo visual, das marcas próprias do gozo feminino. Ela ainda lança a pergunta sobre como o infamiliar, através da imagem da borboleta, pôde favorecer a responsabilização desse falasser por seu modo de gozo. Acho que seria um ponto interessante para conversarmos!

Seguindo os passos de Bernardo Micherif em seu argumento sobre o eixo de trabalho “A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário”, podemos ainda pensar, com o exemplo clínico da “mulher-borboleta”, que temos no Unheimlich aquilo que o fantasma recobre, ou seja,

uma imagem do Real na qual certo modo de gozo se fixou e que os neuróticos tentam expulsar como um corpo estranho, intrusivo, um excesso que extrapola o enquadre fantasmático, desagrega a imagem do corpo próprio e não encontra seu devido lugar quando se fala.[13]

Sabemos que Freud colocou o fantasma como algo construído no percurso de uma análise, como um aforismo sobre o ser de cada analisante; podemos dizer que é certa montagem simbólica com representações imaginárias. Miller nos elucida, ao indagar:

O que é a fantasia? Numa primeira abordagem, diria que é essencialmente o que, para o sujeito, faz tela diante do Real. A travessia dessa tela é suposta lhe permitir ter acesso ao Real, ter uma entente com o Real, da qual o sujeito, até então, estava cerceado, era incapaz. Essa fantasia faz tela não apenas para o Real, mas também para o seu ser de sujeito, porquanto aquilo que precipita um sujeito para a análise é a busca desse ser, é a pergunta: quem sou eu? […] A fantasia, porém, não é apenas tela, tela do Real, ela também é, a um só tempo, janela sobre o Real.[14]

Nesse mesmo seminário, Miller afirma que havia uma segurança do sujeito proporcionada pela fantasia que fixava seu lugar no Real, como um anteparo. Porém, é preciso ir além, transpor o que se localizou como uma identificação ao objeto da fantasia. Em que pese uma análise permitir ultrapassar essa janela e até mesmo revelar algo de uma verdade, há sempre um resto ineliminável, há a repetição do gozo em sua vertente de iteração.

Assim, pensando na esfoliação necessária a ser feita em relação ao Imaginário, e ao corte operado para que o gozo do corpo dê lugar à frase do fantasma, tomemos um caso trabalhado no Eixo 2. Após a separação dos pais, a criança, em idade tenra, procura a mãe pela casa e se depara com a porta do quarto dela fechada. Escuta barulhos advindos dali. Depois, só o silêncio. Perplexo, o menino foge, mas, à distância, vê a porta se entreabrir e a mãe sair furtivamente do quarto de dormir, onde estava com o namorado, tentando não se fazer vista. Tal cena fixa a posição deste falasser, é uma cena que se repete ao longo de sua vida amorosa, uma vez que ele, extremamente ciumento nas relações, se coloca sempre como um terceiro excluído. Tratando-se de alguém que está em análise, foi possível fraturar essa cena quando, após um rompante em um bar, ele briga com a esposa ao acusá-la de estar sendo sedutora com um amigo próximo. Porém, após o rompimento com ela, algo se desmonta ao se recordar da cena infantil. Foi preciso esfoliar esse Imaginário, passar de um Real como impossível para um Real contingente. No consultório, o sujeito pôde se confrontar com a inexistência da relação sexual, algo impossível de eliminar, como bem sabemos. O objeto olhar estava também colocado, uma vez que esse falasser recorre à fotografia como seu modo de vida.

Para os neuróticos, aquilo do qual nunca se sai é o não querer saber da relação sexual que não existe. A esfoliação tem efeitos sobre o corpo. O tecido é o corpo; esfoliar esse “não quero saber” faz-se necessário! Aqui poderíamos perguntar: o que se passa no quarto de dormir? O neurótico não sabe o que se passa no quarto de dormir, “em que nada acontece, exceto que o ato sexual se apresenta como foraclusão propriamente dita, Verwerfung”.[15] O impossível de eliminar é a inexistência da relação sexual, aquilo do qual nunca se sai. O furo central é esse tentar velar a inexistência da relação sexual. Ainda com Lacan:

Da função do fantasma […] ao âmbito dito perverso, à sua função no registro neurótico, há exatamente, direi, a distância até o quarto de dormir.

[…] na fobia a coisa pode se passar no guarda-roupa, ou no corredor, na cozinha. Na histeria a coisa se passa no parlatório. […] Na obsessão, na latrina.

[…] Esse quarto de dormir é o que comumente se chama consultório do analista.[16]

De tal forma que poderíamos pensar com Lacan que a prática do analista é aquela que “deve dar conta de que haja cortes do discurso que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente.”[17]

Miller destaca que “se Lacan fala em ‘atravessamento do fantasma’, e não em ‘levantamento do fantasma’, é porque não se trata de forma alguma do seu desaparecimento. Trata-se de ter um vislumbre, logo no início, do que está por trás disso”.[18] Nesse sentido, o relatório de Lilany Pacheco[19] nos convida a pensar que

a ênfase dada pelo último ensino de Lacan à clínica do sinthoma e aos restos sintomáticos na solução do falasser, para o fim de uma análise, não dispensa a verificação das duas dimensões clínicas: o sintoma e o fantasma, desde o início de um tratamento.

Poderíamos pensar que tal localização se aproximaria do que antes chamávamos de localizar o nome de gozo, a marca de gozo de cada paciente?

Ainda com Miller: “O engraçado é que não há nada por trás do fantasma. O fim da análise consiste justamente em caminhar pelo lado do nada”[20]. Oscar Ventura[21] nos ensina, em um breve relato, o sonho que o levou ao Passe. Poderíamos tomar esse sonho como uma via para abordar o Real através da imagem?

No sonho, Oscar Ventura está em uma varanda e uma figura salta por cima dele, caindo no vazio e produzindo um ruído seco, fulminante e fugaz. Depois, há um silêncio; ele sai correndo escadas abaixo, angustiado, não sem a curiosidade de saber quem se atirou – quem havia caído? Tal angústia não lhe causa o despertar, ela habita dentro do sonho, e o acompanha, lado a lado, até a cena na qual, em círculo, pessoas impedem veladamente sua visão, até o grande final de seu sonho, quando indaga: “Quem é? E uma voz anônima lhe responde: É sueco”. Já acordado, surpreso, mas sem angústia alguma, ao decompor o significante sueco em su-eco (“seu eco”), uma grande gargalhada toma conta de seu corpo inteiro. Ele se recorda de que, na infância, quando se deparava com uma palavra sem o menor sentido, sem significação alguma, sendo pronunciada, tinha ataques de risos, ria tanto que ficava com o corpo leve, livre às contingências da vida… Aos poucos, ele vai se despertando, tendo o humor como companhia, largou o estranho sueco entre os lençóis do sonho, bem como o eco (ao qual o pensamento poderia querer dar algum sentido), e pôde constatar que, desde então, algo havia se desprendido, caído, o que o levou a outorgar um valor conclusivo a esse sonho.

Por que esse sonho foi conclusivo? 1) Porque, com ele, interrompeu-se uma inclinação quase obrigatória que ele se colocava: a de dar sempre significações a seus sonhos. Isso lhe causava efeitos no corpo, de fastio e de tédio, que o invadiam ao despertar, pois, depois de sonhar, tentava saber o que queria dizer o sonho sonhado. 2) Segundo ele, porque talvez os sonhos não tenham nenhum destino que se escreva além do corpo que os sonha, ou seja, talvez os sonhos sejam só sonhos, e talvez o despertar só tenha relação ao efeito que o sonho pode chegar a ter sobre o corpo, quer dizer, o que o faz rir escreve-se como acontecimento. Para Oscar, o que chamamos “acontecimento de corpo” é o índice mais preciso que anuncia a ausência de relação sexual, esse umbigo insondável. 3) Para ele, a vida não sonha, ela simplesmente palpita na borda de um furo, que se afasta de qualquer significação que se possa dar; tal “sonho só pode ser lido sob a égide de uma escrita que desloca o campo do ser ao campo da letra”[22]. E ainda, tal sonho perfura qualquer sentido através de um significante sem sentido que cai: sueco, su-eco (“seu eco”), que paralisa a metonímia infinita a que até então se entregara. Em suas palavras: “Então, nesse litoral, no qual uma letra, por minúscula que seja, tem o efeito de fazer ressoar no corpo uma satisfação, bizarra talvez, mas que converte o sujeito mais em um ‘encontrador’ de letras do que um escravo da metonímia”.[23]

Penso que, com esse sonho, um corte se operou. Temos o aspecto visual, o acesso à imagem de um corpo que cai, que angustia o falasser, mas não o leva a acordar, a cena de todos lhe impedindo de ver quem era, e a voz que ressoa trazendo um significante novo, sem o menor sentido. O despertar traz ressonâncias no corpo, o riso, sua leveza, o humor, a interrupção da interpretação metonímica de seus sonhos. Tal como um toro, uma figura de borracha branda e maleável que permite ser deformada, até mesmo cortada, mas que mantém sua propriedade, pode-se constatar que o falasser passou a “servir-se de seu modo de gozo de outro jeito”,[24] como Simone Souto trabalha em seu relatório. Segundo Lacan,[25] “O final de análise é quando se encontrou aquilo de que se é prisioneiro; […] basta que se veja aquilo de que se está prisioneiro. […] E o inconsciente é a face de Real daquilo em que se está enredado”.

Assim, espero ter levantado pontos a serem desdobrados ao longo da 27ª Jornada da Seção Minas. Ainda temos muito a avançar e a decifrar sobre o chamado “ultimíssimo ensino” de Lacan. Vê-se como Lacan continuou se esforçando por fazer valer não algo de uma “obra”, tampouco uma “teoria”, mas por manter-se fiel a seu ensino. Ele não se pensava como autor, mas permanecia como um ensinador, aquele que fala para alguns, que, em posição de aprendiz, se endereçam à psicanálise. Acompanhamos também o empenho de Miller na labuta de estabelecer, passar o que era audível ao legível e desenhado, para reencontrar o que Lacan quis dizer e não disse, traduzindo uma verdadeira arquitetura organizada como superfícies em torno de um vazio.[26]

Notas do autor:

 

[1] MICHERIF, B. Eixos de trabalho. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/. Acesso em: 01 out. 2024.

[2] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014. p. 235.

[3] Idem, ibidem, p. 236.

[4] Idem, ibidem, p. 258.

[5] Idem, ibidem, p. 192.

[6] FREUD, S. Arruinados pelo êxito. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIV, 2006. (Trabalho original publicado em 1916).

[7] SANTIAGO, A. L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/. Acesso em: 01 out. 2024.

[8] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73). p. 9.

[9] LACAN, J. Le séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Lição de 8 de maio de 1978. (Trabalho inédito).

[10] SANTIAGO, A. L. A mulher-borboleta: o infamiliar provém do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-mulher-borboleta/. Acesso em: 01 out. 2024.

[11] MILLER, J-A. Parlament de Montpellier. Conversação clínica em torno do Seminário 23. mai. 2011. (Trabalho inédito).

[12] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76). p. 47.

[13] MICHERIF, B. Eixo 2: A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Eixos de trabalho. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/#_ftn1. Acesso em: 01 out. 2024.

[14] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 03 de fevereiro de 2011. 2011. (Trabalho inédito).

[15] LACAN, J. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Theresinha N. Meirelles do Padro; versão final de Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2024. (Trabalho original proferido em 1966-67). p. 354.

[16] Idem, ibidem, p. 354.

[17] LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972). p. 479.

[18] MILLER, J.-A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Texto estabelecido por Silvia Elena Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2018. p. 16.

[19] PACHECO, L. A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-tela-do-fantasma-e-a-esfoliacao-do-imaginario/. Acesso em: 01 out. 2024.

[20] MILLER, 2018, p. 16.

[21] VENTURA, O. Sonhar depois do final. Scilicet: o sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2020. p. 205.

[22] Idem, ibidem, p. 206.

[23] Idem, ibidem.

[24] SOUTO, S. Quando tudo é normal, o que se analisa? In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/quando-tudo-e-normal-o-que-se-analisa-eixo-3/. Acesso em: 01 out. 2024.

[25] LACAN, J. Le séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Lição de 10 de janeiro de 1978. (Trabalho inédito).

[26] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Orientação lacaniana III, 13. Curso 2011-2012. (Trabalho inédito).

 

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Luz e cenário – Comentário sobre o relatório A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário (Eixo 2)

Seminário preparatório
08.08.2024
EIXO 2:

Textos

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Como assinala Lilany Pacheco no relatório A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário[1], Miller postergou sua abordagem do ultimíssimo ensino de Lacan por prever que este teria efeitos desestruturantes. Nesse seu ultimíssimo ensino, Lacan convidaria os psicanalistas à invenção de sua prática convocando todos a produzir um saber novo. Não seria, portanto, inapropriado dizer, a partir do que Miller[2] nos transmite que, no ultimíssimo ensino de Lacan, trata-se também de uma esfoliação da psicanálise.

Resgato a citação de Bernardo Micherif[3] quando nos fala do cenário em jogo no fantasma. Um cenário implica sempre uma imagem, um olhar e nosso lugar em relação a ele.  É no cenário  que me encontrei diante do relatório que nos apresentou Lilany Pacheco e ao qual faço, aqui,  meus comentários.

Parece-me importante percorrer um caminho que nos permita interrogar  sobre o que há de novo no assim chamado novo imaginário. Sigamos pelo viés desestruturante.

Escolho dois momentos em que Lacan retoma o fantasma a partir do texto de Freud “Bate-se uma Criança”.[4]

O primeiro momento se dá no Seminário 5, As formações do inconsciente[5]. Ali, Lacan articula a dimensão simbólica do fantasma. Lembremos que este se apresenta em três tempos, com três frases. Entre a primeira frase, “Uma criança que odeio é batida pelo pai” e a terceira, em que uma criança é batida por um adulto, há uma mudança no cenário. No primeiro tempo, podemos destacar a dimensão imaginária e o ódio em cena. A passagem para a segunda frase, aquela que jamais existiu, inclui a criança no cenário. Em decorrência de um atravessamento imaginário, a criança que olha é, agora, aquela que é batida. No terceiro tempo, contudo, o que entra em jogo são os participantes da cena, de maneira inespecífica: a criança e o adulto não são identificados claramente. A conclusão de Lacan nesse momento privilegia o valor coletivo da cena, a amarração simbólica e a entrada no laço social. A criança aí se inclui a partir do Outro da linguagem e seu universo simbólico.

No seminário A lógica do fantasma, diferentemente, Lacan[6] considera que o fantasma não passa de um arranjo de significantes e que não haveria nada mais que engendrasse o sujeito além de uma frase – engendramento este que, como vimos, já está assinalado no Seminário 5. Lacan dá um passo a mais. De maneira bem pontual, Lacan  assinala que “Bate-se uma criança” trata-se exclusivamente de uma articulação significante que quase vela o impossível de eliminar: o olhar[7]. A criança gozaria no lugar do olhar que observa a cena do bater. Haveria, portanto, no olhar, o elemento fundamental, esse impossível de eliminar, mais além desse arranjo simbólico coletivo, arranjo este ordenado pelo amor ao pai. A presença paterna no primeiro tempo do fantasma, opera a estrutura que se constroi ao final como um laço simbólico. Assim teríamos o matema do fantasma (S/<>a). Entretanto, assinalemos que, tomada pelo olhar, o fantasma compõe a cena que a criança observa.

Arriscaria dizer que, no Seminário 14, Lacan aponta para algo além da estrutura. Para sustentar essa afirmação, retomarei suas elaborações sobre a esquize entre o olho e o olhar no Seminário 11[8]. A figura abaixo permite-nos perceber um pouco da dimensão desestruturante
presente nessa elaboração lacaniana[9]:

O Estádio de Espelho, o Esquema Ótico, aqueles com os quais nos acostumamos e que nos ajudaram a pensar a relações entre o simbólico, imaginário e o corpo, principalmente no primeiro ensino de Lacan, são construções que se sustentam-se no campo geométrico. Embora um sujeito, no ponto geometral, perceba a imagem refletida de um objeto, tal como é desenvolvido seja nos Estádio do Espelho, seja no Esquema Ótico, essa percepção não é impossível de ser alcançada por um cego. Isso se deve ao fato de que as relações entre o sujeito, o objeto e sua imagem são geometricamente determinadas. Podem ser intuídas.

Quando Lacan está tratando da esquize entre o olho e o olhar, ele inova ao afirmar que o olhar está na luz, no ponto luminoso, algo que vem do mundo, fora do campo dos reflexos e do Outro. Não se trata aí de uma representação.

O que é luz olha para o sujeito, captura-o, e algo no fundo do olho se pinta. Algo que não é uma relação construída e, aqui, encontramos a distinção fundamental feita por Lacan em relação às suas elaborações referidas ao campo geometral. Trata-se do que está elidido na relação geométrica: na verdade, é aí que o sujeito é apreendido, convocado a todo instante. Com isso, a paisagem se apresenta bem diferente de uma perspectiva, trata-se de um quadro.

O sujeito ali se faz olhar, colocando-se na cena, pintando um quadro em seus olhos, sendo que, nesse quadro, ele se inclui, coloca-se como aquele que olha. Percebemos assim que, na cena do fantasma de “Bate-se uma criança”, esse olhar ineliminável é possível a partir do anteparo, condição da cena imaginada. Portanto, mais do que um quadro, o fantasma é também um anteparo que permite ao sujeito se incluir na zona de sombra criada diante da luminosidade. Como diria Lacan no seminário 11, a realidade é marginal:

“O correlato do quadro, a situar no mesmo lugar que ele, quer dizer, do lado de fora, é o ponto do olhar. Quanto ao que, de um ao outro faz mediação, o que está entre os dois, é algo de natureza diversa da do espaço geometral, algo que representa um papel exatamente inverso, que opera, não por ser atravessável, mas ao contrário, por ser opaco – é o anteparo, o écran.”[10]

O ser humano se demarca assim na estrutura imaginária constituída a partir da disjunção do olho e do olhar. Mas ele consegue jogar com a máscara, como algo que aponta para um mais além do olhar. O homem faz do anteparo sua mediação, diria Lacan. O sujeito se torna ele mesmo esse olhar, na medida em que se acomoda a ele um ponto do ser evanescente, onde se confunde com seu próprio desfalecimento. Lacan afirma que, de todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer sua dependência no campo do desejo, o olhar é o mais inapreensível, e, portanto, o mais desconhecido. Daí, a facilidade do sujeito em escamotear a presença desse objeto, através da ilusão produzida no espelho.

Esse olhar que se encontra ali de modo algum é um olhar visto, mas um olhar imaginado no campo do Outro. O olhar propriamente dito, jamais se dá a ver. Como produzir esse tipo de escamoteamento sem o recurso do espelho? Encontraremos mais uma referência ao que está em jogo nessa elaboração ao nos ocuparmos dos comentários de Lacan sobre a anamorfose presente no quadro “Os embaixadores” de Hölbein[11].

Diante de toda a ostentação daquela obra, representada pelos embaixadores e tudo aquilo que lembra a vaidade das artes e das ciências, o segredo do quadro é mostrar que, ao nos afastarmos um pouco dele, podemos perceber que o objeto enigmático reflete o nosso próprio nada. Podemos nos perguntar como seria a anamorfose em nosso tempo, um tempo em que os embaixadores ostentam os mais ambicionados gadgets, objetos da tecnologia que permeiam as ofertas de consumo de nosso tempo.

O olhar se apresenta sempre no espaço da luz, em um jogo da luz com a opacidade, e o sujeito, se de alguma forma está no quadro, é como anteparo que ele se apresenta, aquilo que Lacan vai chamar de mancha. Essas questões permitem-nos perceber  que, ao se colocar no mundo, esse onivoyeur anterior a nós mesmo exige uma opacidade que funcione como anteparo, e que franqueie a construção de um quadro. Isso se mostra fora da estrutura, como o corpo é algo imaginado. O imaginário é o corpo. Como fazer mancha no mundo dominado pela luminosidade do espetáculo? Como se enlaçar a um corpo quando o pai não mais surpreende, é esvaziado pela ciência, ou quando os objetos de consumo que prometem o gozo acabam por tamponar a divisão do sujeito? Joyce com sua escrita do ego já apontava um caminho.

As condições da contemporaneidade não colocam mais necessariamente em jogo a dimensão especular, o narcisismo. Encontramo-nos muitas vezes diante de pacientes invadidos de gozo, sem o recurso do fantasma, sem uma cena onde se incluir. Isso nos permite pensar nos avatares da psicose, bem como nas multiplicidades dos problemas das doenças da mentalidade, nos impasses em ter um corpo, num mundo onde a luminosidade das ofertas contemporâneas do consumo nos ofusca a todos. Não por acaso, como aponta Miller, o ultimíssimo Lacan nos convida a inventar um saber novo para a psicanálise. Quem sabe os toros nos ajudem?

REFERÊNCIAS

 

Freud, S. (1976). Uma criança é espancada. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. v. 17 (Trabalho original publicado em 1919).

Lacan, J. (2024). O seminário, livro 14: a lógica do fantasma.  Zahar (Trabalho original publicado em 1966-1967)

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1963-1964)

Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1957–1958).

Miller, J.-A. (2014). El ultimíssimo Lacan. Paidós.

Micherif, B. Eixos de trabalho. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: Eixos de Trabalho – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

Pacheco, L. A tela do fantasma e a esfoliação do imaginario. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

NOTAS

 

[1]Pacheco, L. A tela do fantasma e a esfoliação do imaginario. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

[2] Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan (2006-2007).  Buenos Aires: Paidós. 2014

[3] Micheriff, B. Eixos de trabalho. Texto de orientação da 27ª Jornada da EBP-MG. 2024. Disponível em: Eixos de Trabalho – 27ª Jornada EBP-MG (jornadaebpmg.com.br). Acesso em 17 set 2024.

[4] Freud, S. (1976). Uma criança é espancada. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das            Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. v. 17 (Trabalho original          publicado em1919).

[5] Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1957–1958).

[6] Lacan, J. O seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2024. (Trabalho original publicado em 2023)

[7] Id. p.351

[8] Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1963-1964)

[9] Id.p.93

[10] Ibid. p.98

[11] Ibid. p.91

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Quando tudo é normal, o que se analisa? (Eixo 3)

Seminário preparatório
12.09.2024
EIXO 3:

Textos

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Cartel: Bernardo Micheriff, Cristiana Pittella, Elisa Alvarenga, Fernando Casula, Maria Wilma Faria, Rodrigo Almeida, Simone Souto (mais-um)

“O sujeito normal é essencialmente alguém que se coloca na posição de não levar a sério grande parte de seu discurso interior”

(Lacan, 1955-1956/1985, p. 140)

O normal e o supereu

Podemos verificar, em nossos dias uma forte tendência de a norma substituir a lei ou, melhor dizendo, a norma passa a funcionar cada vez mais como se fosse lei. Com o declínio da interdição paterna e da lei edípica, assistimos a uma crescente normatização dos laços sociais e dos modos de vida. A norma, ao contrário da lei, não designa uma interdição universal, ou seja, já não contamos como antes com a articulação entre a lei e o pecado, entre a lei e sua transgressão, com uma prescrição unívoca que possa nos guiar quanto ao que é proibido ou permitido. Sendo assim, a norma não produz um “para todos”, ela visa o indivíduo, normatiza e, também, normaliza o direito individual de cada um ao gozo. Vivemos, portanto, em um tempo no qual todo gozo, ou quase todo, é considerado normal, isto é, dentro da norma. O que antes, com relação à lei, era considerado anormal tornou-se normal. Ser anormal, hoje, é normal.  Cada vez mais, cada um tem direito de gozar à sua maneira.

Como nos esclarece nosso saudoso Célio Garcia (2001, p. 13), evocando Canguilhem, “norma é a palavra latina para esquadro e normalis significa perpendicular, isto é, o instrumento usado para traçar ângulos retos”. No entanto, atualmente, mesmo que a norma continue “designando uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se distingue, …essa já não se encontra ligada à ideia de retidão; a sua referência não é o esquadro, mas a média” (Garcia, 2001, p. 13). Assim, a referência passa a ser a opinião comum ou mesmo o que convencionamos chamar de politicamente correto. Dessa forma, as normas, hoje em dia, se multiplicam recaindo, por exemplo, sobre a linguagem, sobre como devemos nos dirigir e falar com cada sujeito ou grupo de forma inclusiva, de tal maneira que ele não seja considerado ou designado, por seu gozo, como anormal. Logo, se, por um lado, a norma tornou-se o meio de produzir um direito social mais inclusivo, por outro, ela dá consistência a uma exigência de satisfação cada vez maior.

Nesse contexto, o empuxo ao gozo tornou-se um fator prevalente na clínica da neurose, na qual constatamos que a não interdição do gozo acaba por se transformar em um imperativo de gozo e, assim, o direito ao gozo se converte de maneira generalizada em um dever de gozar, em uma ordem, em uma lei insensata que comanda: goza! Estamos no reino do supereu. Afinal, como nos esclarece Lacan (1972-1973/1985, p. 11), “nada força ninguém a gozar, senão o supereu!”.  Na clínica da neurose, observamos que os pacientes se sentem culpados de não alcançarem esse gozo esperado, prometido, exigido: afinal, “se não há nada que me impeça de gozar por que não estou feliz, por que estou sofrendo, a culpa, então, é minha?”, “Qual é meu erro?”.  Logo, a culpa da não realização de um gozo que seria todo recai sobre o falasser: é uma culpa que não está ligada à interdição, mas à diferença entre o gozo obtido e o gozo esperado, culpa de não ser inteiramente satisfeito e feliz. Nas palavras de Lacan (1972-1973/1985, p. 75), “alguma coisa derrapa no que manifestadamente é visado” e, o que resta é um gozo experimentado sempre como inadequado, um gozo que não conviria à relação sexual… se ela existisse.

Portanto, conforme nos esclarece Lacan (1972-1973/1985, p. 11), é no supereu que encontramos “o ponto giratório”, o que faz o neurótico girar em círculos, dar voltas e mais voltas em torno desse limite do gozo e no qual ele se recusa a reconhecer o impossível, a não existência da relação sexual. Por conseguinte, podemos dizer que o supereu como ponto giratório é o que provoca o atordoamento e esse “efeito de náusea do qual Lacan fala” (Mouillac, 2016-2023, p. 157) e que se manifesta no tédio, na desorientação concernente ao desejo, na falta do que dizer e na desesperança tão presentes nas queixas dos neuróticos hoje.

Por isso, o supereu, com seu imperativo de gozo, é tomado por Lacan como um correlato da castração: ao ordenar algo impossível, ele aponta sempre no sentido de seu fracasso, isto é, para o furo da não relação sexual. Resulta daí um paradoxo no qual constatamos, por um lado, que a castração nunca foi tão evidente e, por outro, que ela nunca foi tão velada porque embora o furo, pela ausência do sentido edípico, torne-se cada vez mais visível no mundo contemporâneo, esse furo é sempre encoberto pela exigência do supereu, isto é, pelo empuxo em dar mais uma volta. Portanto, quando não nos é possível definir claramente a neurose pelo complexo de Édipo, o que nos autoriza a dizer que ainda se trata de uma neurose é, justamente, a presença da castração, não aquela ligada à castração paterna, mas aquela que provém do furo da não relação sexual.  Daí a importância de fazermos esse furo surgir em meio às voltas do gozo em torno do impossível.

Lacan (1972/2003, p. 469), em “O aturdito”, inventou um neologismo para nomear esse supereu que se satisfaz apenas pela metade sem jamais satisfazer-se: surmoitié (“supermeutade”). Trata-se do supereu feminino, articulado ao não-todo e que, portanto, não corresponde a uma consciência universal, à interdição do gozo encontrada do lado masculino. Bem ao contrário, tal supereu revela, reiteradamente, a inadequação do simbólico na abordagem do real e na apreensão do gozo.  Trata-se do supereu como empuxo ao gozo fora do falo, que tende à infinitização, fazendo apelo a um gozo impossível de ser satisfeito. No que diz respeito à análise, essa prevalência de um gozo fora do simbólico, em sua vertente real, funciona, como nos esclarece Miller (2006-2007/2013, p. 238), como um “dissolvente conceitual” do qual encontramos os efeitos no ultimíssimo ensino de Lacan: ao deparar-se com o silêncio do real, com o fato de que “o real não fala” (Miller, 2006-2007/2013, p. 235) – fato que podemos relacionar à lei silenciosa do supereu – o simbólico, sempre privilegiado por Lacan como ferramenta fundamental para analisar, acaba por revelar-se como um instrumento inadequado para fazer frente a esse gozo do supereu. Lacan (1977-1978) também nos adverte que, se uma análise se prende ao simbólico para abordar o real, ela acaba por “consumir-se nela mesma”[1], em suas voltas e, assim, corre o risco de fracassar. Então, retornando à pergunta que dá título ao nosso texto – quando tudo é normal, o que se analisa? –, podemos responder, inicialmente: o supereu. Mas, diante dessa inadequação do simbólico com relação ao real, como analisar o supereu?

 

Interpretação: a manipulação, o corte e o equívoco

Diante da prevalência do gozo, o analista depara-se com um limite da interpretação. O gozo não é interpretável, ele coloca em primeiro plano não o sentido, mas a matéria, o tecido, o corpo e o que pode funcionar como estofo. Por isso, somos advertidos, por Lacan (1977-1978), de que uma análise é uma prática, não uma abstração e, segundo ele, “se fazemos da análise uma abstração, nós a anulamos”[2] porque perdemos o tecido que constitui “o fato” de uma análise (Lacan, 1977-1978)[3], ou seja, o que lhe confere uma existência. Se tentamos ordenar esses fatos a partir do simbólico, articulá-los, encadeá-los, perdemos o tecido, a tela a partir da qual um real pode ser assegurado.

Assim, a inadequação do simbólico para abordar o real leva Lacan a uma promoção do imaginário no que concerne à apreensão do real e na qual a unidade não é mais da ordem do significante, mas da imagem. Miller (2006-2007/2013, p. 246) chega mesmo a dizer que o significante novo, evocado por Lacan no seminário O momento de concluir, não é um significante, mas uma imagem. Então, se o tecido de uma análise é um fato real, será através da imagem que ele ganhará suporte porque, se o real não pode ser formulado, será preciso imaginá-lo, torná-lo visual, mostrá-lo, “apontá-lo com dedo” (Miller, 2006-2007/2013, p. 249). Trata-se de “recorrer ao imaginário para se ter uma ideia do real” (Miller, 2006-2007/2013, p. 258).

Desse modo, nossa questão inicial – “o que se analisa?” –, desloca-se para a pergunta: “Como operar?” (Lacan, 1977-1978)[4]. Em outros termos, como intervir nessa matéria, como transformá-la? É nessa mesma medida que o Sujeito Suposto Saber será redefinido por Lacan (1977-1978) como Sujeito Suposto Saber como operar[5]. Encontramos, no ultimíssimo ensino de Lacan, um apelo feito a outro modo de interpretação, a partir do qual ele buscava a renovação de sua prática: a interpretação é reduzida à manipulação e ao corte. Não se trata mais da palavra que faz existir a coisa, mas do corte que muda a estrutura dos objetos representados, assim como faz Lacan com os objetos topológicos. O real torna-se matéria, um tecido a ser cortado, manipulado, deformado, para que se possa extrair dele o efeito de furo, isto é, um dizer que faça escutar que a relação sexual não existe.

É importante sublinhar que dizer é diferente de falar. O analisante fala, e o analista corta. O analisante faz poesia, mas o que o analista diz não é poesia, mas corte, participa da escritura, segundo Lacan (1977-1978)[6], faz parte do equívoco que passa pela escrita, pela subversão da ortografia, por outro jeito de escrever o mesmo, de maneira a fazer ressoar outra coisa diferente do que foi dito. O equívoco recorta a palavra da mesma maneira que recortamos um objeto topológico, de tal forma que o mesmo objeto, a mesma palavra, passa a se comportar de maneira diferente. O manejo da sessão analítica torna-se, então, um saber fazer que pode dar forma, a partir de cortes praticados aqui e ali, a cada sessão e a cada vez, ao real de um gozo do qual não se sai. Assim, pela fala, no decorrer da experiência analítica o real, que não é comunicável, ganha corpo.

O ato de cortar, de acordo com Miller (2006-2007), reenvia ao que uma psicanálise tem de estofo, é através do corte que se encontra o tecido, é também o que possibilita o momento de concluir. Podemos dizer, então, que a interpretação assim concebida se aproximaria, cada vez mais, do ato analítico, que não passa pelo pensamento, mas pelo gesto cirúrgico de cortar, que seria a “salvaguarda da psicanálise” (Miller, 2006-2007/2013, p. 195). Na neurose, conforme demonstrou Ana Lydia Santiago em nosso Primeiro Seminário Preparatório, há um real do qual não se sai, mas, se não nos é possível sair disso, podemos fazê-lo se comportar de um outro jeito. Conforme esclarece Lacan (1972/2003, p. 480), em “O aturdito”, trata-se de produzir “uma outra fixão do real”.

Portanto, em seu ultimíssimo ensino, Lacan se esforçará para fazer, com a topologia, uma geometria que tem um corpo, uma geometria do tecido. Imaginar o real, passará, então, por essa estranha manipulação dos objetos topológicos. As figuras topológicas às quais Lacan recorre são figurações do fato de que o analista corta, figurações obtidas pelo corte, na medida em que este tem o poder de mudar a estrutura das coisas, seu modo de se comportar. Quando se faz um corte, o real responde com uma nova forma.

 

“Recreação topológica”[7] e prática analítica

Lacan (1972/2003, p. 487) designa o toro como sendo a estrutura da neurose, com suas voltas em torno do furo.

Referindo-se a esse mesmo toro, mostra-nos que o verdadeiro corte da interpretação é um corte duplo. Trata-se de um corte feito ao longo da borda do toro, em sentido longitudinal, mas, para que esse corte conclua seu giro e retorne ao ponto de partida, é preciso que se faça duas voltas, ou seja, um duplo giro. Então, o corte duplo no toro modifica sua estrutura, interrompendo suas voltas e produzindo, ao mesmo tempo, um ponto de estofo, de amarração, em volta do furo:  o nó borromeano de três.

 

Dois fragmentos da prática analítica nos mostram essa operação topológica pela qual uma nova figura, uma figura inesperada, surge do duplo corte.

O primeiro fragmento é de um caso clínico de nossa colega da École de la Cause Freudienne (ECF), Rose-Paule Vinciguerra (2001, p. 162-169), traduzido e publicado na Curinga, n. 17, com o título: “A intemperante”. Trata-se de uma mulher de meia idade, bulímica, que há 25 anos provoca vômitos todas as noites com a justificativa de que, se não o fizer, ficará gorda. Diz que não quer mais ter relações com seu marido, homem bonito, mais jovem que ela, mas para o qual não liga nem um pouco. Segundo Rose- Paule, o que virá a luz como ponto extremo do seu não querer (principalmente quanto ao sexo) é que essa paciente é como o pai – um pai que ingurgita, escarra, e que ela odeia. É nesse contexto que um ato falho dá lugar a uma interpretação que joga com o equívoco homofônico do significante.  A paciente diz: “mes parents ne supportaient pas mon intérêt corpèrel”. Ela queria dizer “meus pais não suportavam meu interesse corporal”, mas diz “corpèrel” no lugar de “corporel”. A analista corta:  corps – père – elle, corpo – pai – ela

Essa interpretação, ao jogar com o equívoco homofônico, intervém diretamente sobre o gozo do sintoma como um corte, esvaziando o sentido sexual de um gozo que unia o corpo, o pai e ela, gozo que, a partir dessa interpretação, a paciente poderá definir como “alimento e sexo”. A confusão entre alimento e sexo revela sua identificação ao pai que ingurgita e escarra, mas também seu lugar de objeto de gozo desse pai, assim como a natureza incestuosa desse laço que ela recusa querendo-se magra e andrógina, ao contrário da mãe que o pai deseja como uma mulher que “tem o que deve lá onde é preciso”.

Podemos dizer que a interpretação corta o sentido do sintoma – “alimento e sexo” – introduzindo em seu lugar uma significação vazia e sem sentido: corpspèreelle, que tem como efeito separar o corpo, o pai e ela.

Esse corte, através do equívoco, realiza o nó a três no toro, enlaçando real, simbólico e imaginário.

Dessa forma, a interpretação não é simplesmente um equívoco de sentido a sentido, mas um forçamento que introduz, no lugar do sentido até então opaco do sintoma, uma significação vazia que anula o sentido, reduzindo-o à dimensão de um isso não quer dizer nada. O duplo corte (corpo / pai / ela) esvazia e amarra, intervindo sobre o toro, sobre o “dar voltas” da paciente, sobre o encher-se e o esvaziar-se da sua bulimia, modificando o desenho de seu sintoma.

Essa nova figuração só pode surgir a partir de uma operação do analista sobre o gozo, tomado como matéria. Sua analista nos faz saber que, depois dessa interpretação, os sintomas se atenuaram, diminuíram de intensidade e frequência, embora não tenham cedido totalmente:  os “ditos do sintoma” mudaram com variações e traços que o diferenciam do que aparecia antes (Vinciguerra, 2001, p. 164). É uma análise que, ao menos por ocasião da publicação desse fragmento clínico, ainda estava em curso.

O segundo fragmento, retiro do testemunho de passe de outra colega da ECF, Sonia Chiriaco (2010, p. 9-14). O sonho do final de sua análise nos mostra ainda mais claramente a estrutura de duplo corte da interpretação como equívoco, pelo qual o poder de subversão topológica só poderá operar concretamente a partir de duas voltas. Nesse sonho, ela deveria submeter-se a uma operação que consistiria em abrir a cobertura de seu crânio para extrair alguma coisa, “a última palavra”, ela pensa, “mas qual seria?” (Chiriaco, 2010, p. 12). Lembra-se de que, na noite anterior, colheu mariscos e, entre eles, aqueles chamados “ormeaux”, para expô-los sem as conchas, sob a forma de um quadro, ao público da Escola.

O aparecimento desse significante incongruente, ormeau, em sua face repulsiva – molusco que se apresenta desnudado, sem concha, e repugnante, imagem do real que deveria ser mostrado ao público da Escola – vai se declinar em or-mot, “palavra de ouro”, palavra preciosa onde também encontramos, de forma anagramática, a palavra mort (“morte”) e, ainda, como hors-mot, o “fora da palavra”. Assim, localizamos também, nesse equívoco, três pontos que formam, segundo Mouillac (2016/2023) um trajeto de duplo giro (dois cortes):

     

   1ormeau – (molusco)

2-or-mot (palavra de ouro – morte)

         3– hors-mot (fora da palavra)

ormeau / or-mot / hors mot

 

Temos, aqui, o mesmo movimento que assistimos no vídeo do corte no toro. Nesse exemplo clínico, notamos claramente que, com o corte simples, de apenas uma volta, o primeiro corte, entre ormeau e or-mot, permanecemos ainda no sentido. Somente no segundo giro, no segundo corte, entre or-mot e hors-mot, que um real será apreendido, mostrando-nos que, aqui, a interpretação não visa ao sujeito, mas ao que está fora do sentido.  Hors-mot (“fora da palavra”) é uma palavra fora da palavra, uma palavra que faz explodir todas as palavras, uma palavra que é uma palavra e, ao mesmo tempo, sua dissolução pelo equívoco imediato, um dizer que designa uma ex-sistência, que retorna ao S1 inicial modificando-o, perfurando-o, fazendo cair todos os significantes mestres e precipitando o final da análise.

Trata-se de uma transformação importante operada pela análise porque, conforme nos esclarece Chiriaco (2010, p. 13), sua vida sempre havia sido ordenada por palavras sábias, bem colocadas e com as quais tentava obter o amor de seu pai servindo-se delas como um esconderijo para seu fantasma de “‘morrer para ser desejada’”. A partir do equívoco derivado do sonho, as palavras não lhe servem mais de refúgio e passam a designar-lhe o fora de sentido. Chiriaco (2011, p. 128) também nos esclarece que, “contrariamente ao que parecia anunciar o sonho… não é a última palavra, nenhum significante que possa nomear definitivamente o sujeito de uma vez por todas, nenhum significante que diz toda verdade, nem todo gozo”. Não é algo ao qual se chega por uma dedução lógica, tampouco é uma proposição, mas o que só pode vir à luz através do forçamento de uma nova forma, de uma nova imagem, de uma nova escrita.

Podemos dizer que se trata do equívoco incurável, onde o mesmo ormeau” (molusco) se apresenta de outra forma, hors-mot (“fora da palavra”), possibilitando ao falasser servir-se de seu modo de gozo de outro jeito. Inventa-se, com o equívoco e através do corte que ele produz, outra forma de fixão do gozo, que leva o real a se comportar de outra maneira, fazendo aparecer o furo no qual o falasser sustenta sua existência. Constatamos, aqui, a meu ver, como o equívoco depende da imagem, isto é, da escrita, uma vez que uma escrita não deixa de ser, ela mesma, uma imagem. Nesse contexto, podemos dizer que o equívoco trata a palavra como imagem, como matéria, como coisa.

 

 Um outro retorno a Freud? 

Essa captura do real pela imagem, através da qual, por um momento, pelo modo do contingente, o real para de não se escrever, já pode ser, a meu ver, localizado nos primórdios da psicanálise, no sonho considerado por Freud (1900/1972, p. 113-130)       como inaugural, marca da descoberta da psicanálise: o sonho da injeção de Irma. Quando fez esse sonho, em 1895, Freud estava envolvido na experiência angustiante que marca o momento de suas principais descobertas, momento decisivo em que a função do inconsciente lhe era revelada. Esse sonho ganha seu valor exemplar por fazer parte do processo dessa descoberta referente ao tratamento da neurose.

Da mesma maneira como o sonho de Sonia Chiriaco marca sua passagem de analisante a analista, o sonho da injeção de Irma marca a descoberta da psicanálise e o advento do desejo do analista de seu criador, do desejo com relação ao que Freud então descobria. Assim, ambos os sonhos não podem ser separados de sua interpretação, sonho e interpretação devem ser considerados conjuntamente, isto é, como palavras que nos são endereçadas, como imagens que nos são mostradas.

Freud, segundo Lacan (1954-1955/1985, p. 187-217), considera um grande sucesso ter podido explicar esse sonho pelo desejo de desculpabilizar-se do fracasso do tratamento de Irma. É verdade que, na noite anterior ao sonho, depois de ter recebido uma visita de seu amigo Otto trazendo-lhe notícias não muito boas dessa paciente, em um tom que lhe parece ser o de uma reprovação pelo fracasso desse tratamento, Freud se dedica a escrever o caso a fim de justificar-se. Mas uma questão essencial é levantada por Lacan (1954-1955/1985, p. 193): “como é que Freud, ele que irá mais adiante desenvolver a função do desejo inconsciente, contenta-se aqui em apresentar um sonho totalmente explicado pela satisfação de um desejo que não se pode chamar de outro modo a não ser de um desejo pré-consciente ou até mesmo consciente?”. Podemos pensar, então, que o passo essencial no que concerne a interpretação do sonho não foi dado.

No entanto, Lacan (1954-1955/1985) nos adverte para o fato de que, se Freud confere tamanha importância a esse sonho, é porque tem a impressão de que deu esse passo, e isso realmente se verifica porque, mais de cem anos depois, o sonho da injeção de Irma ainda é capaz de nos guiar quanto ao real em jogo no tratamento da neurose e na formação do analista. Hoje, podemos dizer, com Lacan e com Miller, que esse sonho, assim como sua interpretação, preserva o tecido, a tela através do qual um real pode ser transmitido. Duas imagens do sonho nos mostram isso.

A primeira é a imagem da garganta de Irma. No início do sonho, vemos Freud reprovando Irma por não ter aceitado sua solução, insistindo para que ela abra a boca, pois é disso que se tratava na realidade: ela não abria a boca, não falava. Mas, quando Irma no sonho, finalmente, faz o que ele quer, quando ela abre a boca, o que Freud encontra vai além do que ele esperava encontrar, é algo diante do qual todas as palavras se estancam. Ele se depara com a imagem do fundo da garganta da paciente, “com crostas e placas esbranquiçadas sobre notáveis estruturas crespas” (Freud, 1900/1972?, p. 115): trata-se de uma imagem que ele próprio nomeia de aterradora e angustiante, associando-a ao feminino e à morte. Tudo se mescla e se associa nessa imagem, desde a boca até os órgãos sexuais femininos, é a carne que jamais se vê, o avesso da face, o fundo das coisas. Lacan (1954-1955/1985) designa essa imagem como a revelação do real.

Normalmente, um sonho que chega nesse ponto provoca o despertar do sonhador, mas Freud – tomado por seu desejo de saber – não acorda, e o sonho vai adiante culminando em outra imagem: a fórmula da trimetilamina.  Tal qual um oráculo, essa fórmula que aparece no sonho como uma solução, a derradeira palavra, não fornece resposta alguma ao que quer que seja, à solução da neurose ou ao sentido do sonho, pois não quer dizer mais nada a não ser que é uma palavra, o real cifrado em letras.

Nesse ponto extremo, Freud se liberta de sua culpa não porque se desculpe com relação à Irma, mas porque essa fórmula da trimetilamina, ao abolir todos os sentidos, exclui o falasser de toda a participação trágica na realização da verdade e, por conseguinte, na sua relação com o mundo. Esse momento marca um retorno no qual, onde havia inicialmente a culpa de Freud pelo fracasso do tratamento de Irma, presentifica-se seu desejo como causa do advento da psicanálise.

De todas as formações do inconsciente, o sonho se distingue por apresentar uma particularidade: o aspecto visual, o acesso direto à imagem. Se, como dissemos anteriormente, no ultimíssimo ensino de Lacan não é mais o significante, mas a imagem, que surge como recurso para enfrentar o silêncio do real, podemos considerar, então, que o sonho se torna uma via privilegiada de acesso ao real, sua via régia? Essa nova forma de conceber a interpretação que recai sobre a imagem e a mostração do real, seria um recurso para despertar os neuróticos de hoje de sua normalidade?

Referências bibliográficas

CHIRIACO, S. “La plaisanterie”. La Cause Freudienne, n. 76, Paris, Navarin, 2010, p. 9-14.

CHIRIACO, S. “Les noms, lalangue et le météore”. La Cause Freudienne, n. 78, Paris, Navarin, 2011, p. 127-131.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: ____. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1972 (Trabalho original publicado em 1900).

GARCIA, C. “A lei e a norma”. Curinga. EBP-MG, n. 17, 2001, p. 10-19.

LACAN, J. O seminário. Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (Trabalho proferido em 1954-1955).

LACAN, J. O seminário. Livro 3: as psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (Trabalho proferido em 1955-1956).

LACAN, J. O seminário. Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (Trabalho proferido em 1972-1973).

LACAN, J. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448-497 (trabalho de 1972).

LACAN, J. Le séminaire. Livre 25: le moment de conclure. (Inédito, 1977-1978).

MOUILLAC, G. “Recreação topológica”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n.89 (edição especial). São Paulo, 2023, p. 133-158. (Trabalho proferido em 2016).

MILLER, J. -A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013 (Trabalho proferido em 2006-2007).

VINCIGUERRA, R.-P. “A intemperante”. Curinga. EBP-MG, n. 17, p. 162-169.

Notas do autor:

[1] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[2] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[3] Lição do dia 21 de março de 1978.

[4] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[5] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[6] Lição do dia 20 de dezembro de 1977.

[7] Ver: Lacan (1972/2003, p. 491).

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Comentário do relatório Jornada EBP-MG, eixo 3: quando tudo é normal, o que se analisa?

Seminário preparatório
12.09.2024
EIXO 3:

Textos

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O relatório feito em torno do terceiro eixo de discussão sobre o tema de nossa próxima jornada trata de um importante aspecto sob o qual as neuroses se apresentam em nossa contemporaneidade: a lei não funciona mais sob o regime do pai, da interdição e, em seu lugar, se apresenta o novo normal que não é mais a norme-mâle, a norma fálica. Esse “novo normal” se desdobra em normas que indicam um direito social mais inclusivo, mas que se derivam em grupos de gozos segregados e que também dão consistência a uma exigência de satisfação cada vez maior. Essas mudanças trazem consequências para nossa clínica, pois elas implicam em novas respostas do real, a um tal ponto que levou Lacan a propor a elas o termo de falasser no lugar de sujeito, que é um termo que se refere à lógica significante. A lógica que podemos construir a partir dessas mudanças traz uma outra maneira de intervir e de abordar a prática da psicanálise e encontramos, nesse relatório, apontamentos teóricos e clínicos para essa elaboração.

Miller nomeou o início do século 21 de era pós-paterna, dando sequência ao que Lacan[1] chamou de evaporação do pai. É essa mudança no discurso, já que a função paterna é uma língua, uma possibilidade de nomear. Essa mudança dá lugar à lei de ferro do social, ao ser nomeado para, consequência de uma função pragmática e, além disso, dá lugar ao direito generalizado ao gozo. Em sua « Nota sobre o pai », de 1968, Lacan retorna ao Édipo com um tom provocador, dizendo: « Todo mundo parece dizer que o mito de Édipo é evidente; eu peço para ver. »[2]  Mais uma vez, ele acentua o caráter não generalizável do mito  edipiano e insiste na relação com o pai: « é notável ver em Freud o polimorfismo daquilo que concerne essa relação com o pai»[3] Ele responde à questão de um jesuíta, filósofo e historiador das religiões, Michel de Certeau, em relação a Freud e à questão do pai. Se o texto de Freud sobre a neurose demoníaca de Haitzman considera as máscaras sucessivas do pai enquanto que degradado, Michel de Certeau pergunta o que acontece quando não há mais pai a quem se devotar. Lacan não evoca o polimorfismo do pai, mas a relação com o pai, dizendo que estamos na época da evaporação do pai. Ele propõe a ideia de uma cicatriz deixada por essa evaporação e que poderíamos colocar sob o título geral de segregação, apesar de acreditarmos que o universalismo, a comunicação, em nossa civilização, homogeneizariam a relação entre os homens. Se o pai do patriarcado evaporou, o sujeito tem que se haver com uma relação com o pai, que continua tendo sua importância.

Lacan não profetiza o desaparecimento total e súbito do pai, mas ,sublinha sua mudança de estatuto, ressaltando suas consequências. A cicatriz da evaporação do pai toma a forma contemporânea da segregação, mas trouxe ainda ao longo do tempo outras consequências, e podemos dizer que o mito de Édipo não é mais do que uma das maneiras de envelopar essa cicatriz, uma maneira de historicizá-la.

O fator prevalente na clínica das neuroses, hoje, é o empuxo ao gozo e o relatório aponta que as neuroses atualmente não se organizam em torno de um sintoma edípico tal como Freud o concebeu, sintoma fundamentalmente histérico, estruturado a partir da identificação e ligado ao sentido. A nova escrita do sintoma na lógica dos sacos e das cordas é resultado de um deslocamento para o conceito de sinthoma, que tem como palco os transtornos causados pelo gozo ao corpo, fora do campo do sentido.[4] O gozo está no singular do sinthoma, enlaçando simbólico, real e imaginário. É o encontro contingente com esse gozo, que está em jogo.

O relatório esclarece-nos que, no supereu, encontramos “o ponto giratório”, o que faz o neurótico girar em círculos, dar voltas e mais voltas em torno desse limite do gozo e no qual ele se recusa a reconhecer o impossível, a não existência da relação sexual. É esse circuito infernal que nos cabe enfrentar nos tratamentos, já que o furo da castração se encontra encoberto pela exigência do supereu, pelo empuxo em dar mais uma volta. Estamos diante da castração não do pai, como denunciava a histérica, mas diante daquela que decorre do furo da não relação sexual. Por isso, o relatório propõe que o trabalho com a neurose na atualidade é um trabalho de análise do supereu, ou seja, um trabalho com o real do gozo que sempre insiste em dar uma volta a mais. E como o gozo não é interpretável, nem todo posto em palavras, o que nos resta é operar com a moterialité a materialidade da palavra, o fora de sentido, o tecido e o corpo.

Uma interpretação sempre tem um efeito de corte se considerarmos o corte como a interrupção da sessão ou o devir do discurso. Mas quando buscamos a incidência da interpretação sobre o real do gozo, ela é reduzida à manipulação e ao corte que muda a estrutura dos objetos representados, assim como Lacan faz com os objetos topológicos. O real torna-se matéria, um tecido a ser cortado, manipulado, deformado, para que se possa extrair dele o efeito de furo, isto é, um dizer que faça escutar que a relação sexual não existe. Tomamos então um estatuto distinto daquele da palavra que se apresenta como significante fazendo cadeia, para extrair dele o equívoco, o mal entendido, o fora de sentido que fez acontecimento de corpo. O drama do ser falante é que seu corpo, do qual ele goza, lhe foi dado através de uma operação que toca o incorporal. E isso para cada um, de maneira singular. Por isso temos muito menos que nos ocupar com as histórias de família do que com o seu real.

Como disse Laurent, Lacan precisou “dar um passo a mais para generalizar e passar do sintoma que fala, ao sintoma que se escreve em silêncio, que não é mais comunicação, mas escrita.” Uma vez que o sintoma não se desvanece, há restos sintomáticos que revelam “uma forma lógica fundamental do sintoma como o que se escreve sobre o corpo e não fala, não passa pela experiência da fala, pois deixa de se interessar pelo sentido.”[5] Trata-se do que Miller chamou, em seu curso O ser e o Um, de desentologização: “a heresia lacaniana não consiste em deixar o campo da linguagem, mas em permanecer nele se regulando por sua parte material, ou seja, pela letra no lugar do ser”.

O recurso à topologia é um recurso à palavra como escrita, aquela que permite deformar e inventar. O relatório trabalha a figura topológica do toro que Lacan designa em “O aturdito” como sendo a estrutura da neurose. O toro, além de não ter bordas, tem duas faces, e diante das voltas em torno da alma ou espaço interior e do furo, mostra-nos que o verdadeiro corte da interpretação é um corte duplo e que a banda de Moebius é o próprio corte. Assim, é mesmo preciso um processo que traga efeitos de mudança topológica. A topologia nos apresenta figuras cujos cortes produzem efeitos de subversão[6] , as também traz figuras onde temos a continuidade entre duas dimensões distintas que, mesmo não sendo cortadas, se transformam. É uma lógica presente na deformação das figuras. O testemunho de passe de Raquel Cors nos traz um trabalho no qual a intervenção do analista consistiu muito menos em interpretar do que em nomear. O sujeito chega depois da perda de várias pessoas queridas e diante dessa depressão o caminho foi o de encontrar distintas maneiras de nomear sua posição. Seu nascimento foi marcado por uma luxação congênita e ela recebeu das enfermeiras o vaticínio de que era uma criança linda, mas que iria morrer. O uso de ferros nos quadris a faz formular que era pesada para seu Outro, fixando-se numa posição de isolamento, inibição e com dificuldades para articular palavras e falar em público. Impotente para se fazer escutar e fazer-se olhar. Em certa ocasião a analista lhe diz: “Raquel, uma sobrevivente”. Em outro momento, escondendo seu próprio olhar sob os cabelos, a analista lhe aponta o significante “desgraçada”, que ela usava para nomear a si mesma, e lhe diz para soltar a menina, posição que ela carregara a vida toda. O trabalho dessa análise girou em torno de uma separação da posição de objeto de menina desgraçada colada em seu Outro e a separação com a analista foi um processo difícil e fundamental. Ao comentar esse passe, Marie-Hélène Brousse[7] afirma que essa análise está incluída no inconsciente do sujeito e que a topologia para pensar suas mudanças não seria aquela da vizinhança e dos cortes apresentada pelo toro, mas aquela apresentada pelo cross-cap. Ela aponta que há nesse caso um tratamento feito muito mais através de nomeações do que de interpretações que cortam o sentido para dar lugar ao fora de sentido do equívoco. Isso me fez pensar que a topologia é um recurso para pensarmos a lógica da operação clínica e dos efeitos que ela produz.

Voltando ao toro, o relatório nos traz exemplos clínicos para nos ensinar como esse recurso nos permite compreender melhor o trabalho com o mal entendido, com a materialidade da palavra e com o gozo do corpo. Agora fica claro que não há relação entre um significante e a falta no simbólico. No que Lacan chamou de lalíngua, há somente significantes sozinhos, sem nenhuma relação binária, cada um trazendo uma vertente de gozo mortificante e sem significação, onde encontramos um simbólico enlouquecedor em seus efeitos traumáticos de ruptura da consistência corporal. A primazia do Outro dá lugar à contingência de lalíngua, que concerne ao corpo.

O primeiro exemplo tomado no relatório é o de um caso de bulimia atendido por Rose-Paule Vincinguera. O trabalho com a materialidade da palavra veio através de um ato falho da paciente. O caminho aqui não foi o de decifrar o sentido dessa formação do inconsciente, mas o de escandir o significante que surge – corperel – em corps-père-elle, fazendo aparecer dentro do corpo da palavra uma operação que permite desembaraçar o direito do avesso que funcionava como uma banda de Moebius entre o alimento e o sexual. Essa interpretação é corte porque aponta uma brecha entre esses significantes que aparecem colados e separa o que parecia estar articulado. Dessa separação, surge o silêncio, o ab-senso se ouve nesse próprio silêncio, tal como Lacan nos ensina em “O aturdito” [8]. A interpretação corta o sentido do sintoma, introduzindo em seu lugar uma significação vazia e sem sentido, que tem como efeito separar o corpo, o pai e ela. Ao mesmo tempo que revela o que está por trás desse tecido entre verso e anverso, sua identificação ao pai que ingurgita e escarra, mas mostra também seu lugar de objeto de gozo desse pai, assim como a natureza incestuosa desse laço que ela recusa querendo-se magra e andrógina, ao contrário da mãe que o pai deseja como uma mulher que “tem o que deve lá onde é preciso”.

O segundo exemplo é o do passe de Sonia Chiriaco. Ela relata distintas interpretações de seus analistas. Uma delas se remete ao seu duplo prenome Sonia/Dominique, “você é uma mentira ambulante”, proferida como um insulto, modo de apresentação do real da palavra. Estava aqui presente a palavra do pai que debochava dela no lugar de lhe transmitir seu saber enigmático. Em seguida, ela se refere a um sonho onde o analista lhe diz que vai ensiná-la a olhar nos olhos. Na sessão em que relata esse sonho, seu analista lhe diz que agora ele entendia por que a recebia frente a frente, e Eric Laurent comenta que analista e analisante estão do mesmo lado. E nesse trabalho de tessitura, surge o sonho de final de análise com o significante ormeau que, sendo uma criação da análise, é imediatamente dissolvido pelo equívoco. Ele faz cair os significantes mestres. O relatório nos diz que entre ormeaux e or-mot, permanecemos ainda no sentido. Somente no segundo giro, no segundo corte, entre or-mot e hors-mot, um real será apreendido. Quando Sonia diz que gostaria de terminar sua análise não tão bestamente, o analista lhe diz para escrever sobre seu medo de ser besta. Aqui a escrita conectada às interpretações anteriores que já haviam operado sobre as identificações e o fantasma de desaparecer para ser desejada é o que permite ao sujeito sair definitivamente de seu esconderijo, deixando aparecer a verdadeira amarração borromeana. A escrita é o que faz aparecer o equívoco da palavra fora de sentido e a separação de seu sintoma de se esconder. Temos, então, uma transmissão da passagem de analisante a analista, uma mudança topológica de lugar e de como ensinar o que não se ensina. A lógica, como diz Lacan em seu seminário 14[9], é o manejo de uma escrita, o que podemos ver se apresentar nesse relato.

Quanto à queda do patriarcado, Eric Laurent nos diz que, diante da recusa do laço mítico mantido por Freud entre o pai e o todo, do pai como universal, Lacan nos abre a via de uma nova lógica. Pareceu-me importante o que Sonia nos transmite sobre esse ponto. Se quando menina ela havia sentido medo e vergonha por não entender a palavra de uma canção e ao ser gozada pelo pai, ela compreende finalmente que este lhe havia transmitido o desejo de saber. Uma transmissão de um pai. Retornando à análise depois da morte do pai, ela sonha que havia encontrado a mala de viagem de sua infância, e com ela o gosto de viver.

O terceiro exemplo trazido no relatório é o do sonho de Irma, em suas duas vertentes, a imagem da garganta e a fórmula da trimetilamina. Imagem e escrita da fórmula. O trabalho de construção dessas distintas bordas da formação do inconsciente é o que dá lugar a uma nova invenção da qual todos continuamos a nos ocupar de fazer existir: a psicanálise e seus efeitos sobre o real.

Notas do autor:

[1] Lacan J., Note sur le père, 1968, in: La cause du désir, n. 89, Paris: Navarin Ed., 2015, p.8.

[2]  Lacan J., Note sur le père, 1968, in: La cause du désir, n. 89, Paris: Navarin Ed., 2015, p.8.

[3] Idem.

[4] Laurent, E. O Avesso da Biopolítica. Uma escrita para o gozo. Contra Capa: Rio de janeiro. 2016. Pg 43.

[5] Idem, pg 46

[6] LACAN, J. O aturdito (1972). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 474.

[7] BROUSSE M-H, Interlocución de Marie-Hélène Brousse, Bitácora Lacaniana, Número Extraórdinário, Que madres hoy?, NEL, Abril 2019

[8] LACAN , J. idem, p.459.

[9] LACAN, J. Le séminaire. Livre 14: La logique du fantasme (1966-1967) , Paris: Seuil, 2023, p.23.

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A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário (Eixo 2)

Seminário preparatório
08.08.2024
EIXO 2:

Textos

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Cartel: Jésus Santiago, Kátia Mariás, Laura Rubião, Lilany Pacheco (mais-um), Sérgio de Campos, Sérgio de Mattos, Virgínia Carvalho

O tema deste segundo eixo da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) foi proposto a este Cartel a partir de uma citação de Jacques-Alain Miller, em El Ultimíssimo Lacan, derivada do Seminário 25, O momento de concluir: “Para que o imaginário se esfolie, basta reduzi-lo ao fantasma”.[1] Miller evoca que esfoliar uma planta é fazer cair suas folhas; em medicina, esfoliar implica a queda das partes necrosadas, como as unhas. Outro exemplo comum entre nós: um procedimento estético de retirada das células mortas da pele com finalidades diversas, dentre elas, aquele feito pelas noivas às vésperas do enlace conjugal.

Miller acrescentará que o Seminário O momento de concluir faz uma esfoliação do ensino de Lacan, seu desprendimento em partes, de modo a trazer proveito para o futuro. Nesse sentido, podemos dizer que tomamos a esfoliação como o método de escrita deste relatório. Ou seja, tomamos o ensino de Lacan em partes não necessariamente cronológicas, de modo a traçarmos uma trilha de pensamento que abra caminhos para as discussões que propomos para o segundo seminário preparatório da 27ª Jornada da EBP-MG, sobre o Eixo 2: “A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário”.

Recentemente, na “Liminar” que introduz a coletânea de textos de sua autoria sobre o passe, Miller declara que adiou por muito tempo abordar o último ensino de Lacan por prever os seus efeitos desestruturantes, uma vez que Lacan tomou para si o encargo de fazer viva voz às críticas que escutava sobre o que elaborava na psicanálise e, desse modo, ocupou todos os lugares, dizendo a um só tempo os prós e os contras. Será também Miller, mais uma vez, a dar conta daquilo que Lacan visava provocar: “engajar seus alunos a não se assentarem no saber adquirido, a se depreenderem de todo dogmatismo, a repensarem com novos custos a Coisa Freudiana, a ponto de reinventar a psicanálise, cada um de acordo com seus meios” [2]. Ele também conclui: “O último ensino de Lacan é feito para reavivar nos analistas, em sua prática, a paixão da ignorância, ou seja, o desejo de saber, um saber novo a ser elaborado.”[3]

 

A trilha deixada por Freud

Tomar o texto freudiano sobre o fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, foi uma resposta clínica de Lacan com o intuito de devolver à psicanálise sua lâmina cortante. Esperamos, então, as contribuições dos trabalhos a serem enviados para as simultâneas clínicas, nos quais se possa transmitir de que modo as neuroses se apresentam na prática analítica hoje, quais os impasses, quais as soluções e como foi operada, ou não, a construção do fantasma em cada caso único. Como escreveu Bernardo Micherif no argumento dedicado ao Eixo 2, agora mais desenvolvido neste relatório:

Freud se dedicou à elucidação do que se apresentava como cena fantasmática, uma história que compõe um cenário com suporte simbólico e representações imaginárias. Lacan, por sua vez, pôde destacar, na própria cena fantasmática, o que se configura como uma tela para o real, para o irrepresentável, um anteparo com o qual cada analisante tenta defender-se da incógnita relativa a seu próprio ser. [4]

Muito antes de escrever seu texto clássico dedicado ao fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, Freud se interessou em investigar como se constituía a maquinaria psíquica que engendrava, para o sujeito, o protótipo de suas primeiras lembranças infantis, qualificadas de “encobridoras”. Em uma de suas cartas a Fliess – a Carta 61 de 2 de maio de 1897 – ao anunciar-lhe que havia adquirido uma noção segura da estrutura da histeria, ele antecipa que tudo remonta a cenas do passado:

A algumas se pode chegar diretamente, e a outras, por meio de fantasmagorias que se erguem à frente delas. O fantasma provém de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas e todo o material delas é claro e verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles, e ao mesmo tempo servem de alívio pessoal.[5]

Em “Bate-se em uma criança”, Freud descreverá os tempos do fantasma.

A primeira fase desse fantasma pertence a um período mais remoto da infância, alguma coisa nela permanece indefinida como se não envolvesse quem o testemunha. A criança que apanha nunca é aquela que evoca tal fantasma. Quase sempre um irmãozinho ou uma irmãzinha, quando houver algum. Não fica claro no início quem é a pessoa que bate, só se pode comprovar que não é outra criança que bate, e sim um adulto. Essa pessoa que bate mais tarde será reconhecida de maneira inequívoca como sendo o pai. A primeira fase do fantasma pode ser enunciada como “o meu pai está batendo na criança”. Há também a variação: “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, introduzida por Freud como algo que denunciaria grande parte do conteúdo a ser ainda apresentado[6].

Freud acrescenta que entre a primeira e a segunda fase do fantasma acontecem transformações. A pessoa que bate continua sendo o pai, mas a criança que apanha passa a ser a própria criança que produz a fantasia. “Eu estou sendo surrada pelo meu pai”. Para Freud, a segunda fase é a mais importante e significativa, pois nunca teve uma existência real, nunca é lembrada. Ela é uma construção da análise e nem por isso é menos necessária. Essa fase altamente prazerosa tem um caráter indiscutivelmente masoquista.[7] Sua importância será especialmente destacada por Lacan, no Seminário 17: o “você me espanca” aponta que o sujeito é dividido não apenas pelo significante, mas também pelo gozo. Trata-se daquela “metade do sujeito cuja fórmula tem sua ligação com o gozo. Ele recebe, claro, sua mensagem invertida – aqui, isto quer dizer seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro.”[8]

A terceira fase, por sua vez, assemelha-se à primeira. Ela soa conforme a primeira enunciação. A pessoa que bate nunca é o pai: ou ela mesma permanece indefinida, como na primeira fase, ou é substituída. A própria pessoa da criança que é tomada pelo fantasma não aparece mais no contexto da surra. Ao ser interrogada, a resposta é de que “provavelmente estou olhando”, ou de há muitas crianças apanhando, assim como pode haver diversificação das punições, dos castigos e das humilhações. Freud também destaca que o fantasma “Bate-se numa criança” comporta uma intensa excitação sexual, derivada de satisfação masturbatória dotada de matizes masoquistas e sádicos. Derivadas de exigências superegóicas remanescentes das primeiras experiências sexuais infantis.

Destacamos que o título do texto de Freud é “Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais”. Havia, para ele, naquele momento, a necessidade de situar uma sexualidade anterior ao recalque, enfatizar a função estruturante do Édipo e demonstrar as diferenças entra a neurose e a perversão. Diferentemente de Lacan, que toma essa discussão em uma vertente transclínica para destacar o traço de perversão no fantasma dos neuróticos e as suas articulações com o supereu, tal como ele faz no escrito “Kant com Sade”.

Freud formula que, da noção de sexualização do processo do recalcamento, no exemplo do fantasma da surra “bate-se numa criança”, depreende-se uma posição feminina.[9] Lembremos também que esse texto sobre o fantasma pode ser cotejado com o texto de 1924, “O problema econômico do masoquismo”,[10] no qual Freud abordará o masoquismo feminino. Por isso, Lacan vai poder sustentar que o correlativo do recalque não é a repartição entre os sexos, mas a orientação do gozo pelo objeto a face ao gozo feminino.

Isso não é pouco! O leitor do Seminário 14, A lógica do fantasma, certamente se dá conta do enorme número de perguntas que Lacan se faz em sua interlocução constante com os pressupostos freudianos: o falo, o Édipo e a repartição sexual. Ele busca logicizar esses termos a partir do objeto a e sua condição incomensurável. Poderá afirmar, então, a natureza heterógena do fantasma e os impasses do ato sexual determinantes da proposição “não há ato sexual”. Depreende-se daí, também, a problemática do gozo destacada, no Seminário 14, como gozo do corpo.

Por que evocar a perversão nessa abordagem do fantasma? Essa é a pergunta de Éric Laurent[11] em seu comentário sobre A lógica do fantasma. Evocar a perversão responde à ênfase dada por Lacan ao fato de que o gozo em sua relação com o corpo só é abordável através da experiência perversa. Se o desejo é situável a partir da neurose, da insatisfação, do impossível, o fantasma, em contrapartida, tem dificuldade em se alojar na economia da neurose e, assim, o lugar de exceção do fantasma dá a ele um lugar axiomático para a dedução dos discursos inconscientes.

 

O lugar do fantasma na experiência analítica

A apresentação do fantasma “bate-se numa criança” se faz presente com surpreendente frequência entre pessoas que procuram o tratamento analítico por causa de uma histeria ou de uma neurose obsessiva. A admissão desse fantasma se dá com hesitação, a lembrança de seu primeiro aparecimento é incerta, uma inequívoca resistência se opõe à sua abordagem pelo tratamento analítico, vergonha e sentimento de culpa são despertados e uma atividade masturbatória, inicialmente voluntária, mas que posteriormente ganha caráter compulsivo, é revelada.[12] O anúncio da cena fantasmática, como uma frase, será acompanhado de um “não sei mais nada sobre isso”.

Se, do lado do sintoma, o sujeito sempre apresenta um saber a mais, do lado do fantasma, aparece o “não sei mais…”, “era só isso que eu tinha para dizer hoje”, convertendo-se até nas sessões mais curtas que acontecerá em uma análise, tal como testemunhei recentemente na sessão de uma mulher que olhava compulsivamente as redes sociais de seu namorado para constatar, sempre uma vez mais, que ele curtia e comentava fotos de outras mulheres para, mais uma vez, fazer existir a relação sexual nas brigas provocadas por ela ao acusá-lo dessa prática. A análise a levou ao consentimento em ceder do olhar, uma vez que, quando ela olhava, quem gozava de ver outras mulheres era ela própria. Deslocada desse gozo escópico, adveio uma lembrança: certa vez, uma tia contou que, por ocasião de seu nascimento, ela era um bebê franzino e feio e que, ao vê-la, sua mãe havia dito que aquela não era sua filha, que esta havia sido trocada no berçário. A lembrança desse relato da tia permitiu à analisante formular a frase de seu fantasma: “eu tenho medo de ser trocada”. Dito isso, ela se levanta do divã e anuncia: “para hoje, é só isso, não sei mais nada…”.

A ênfase dada pelo último ensino de Lacan à clínica do sinthoma e aos restos sintomáticos na solução do falasser para o fim de uma análise não dispensa a verificação, em nossa experiência, das duas dimensões clínicas, o sintoma e o fantasma, inclusive na entrada da análise.  Assim, verificamos, muitas vezes, o modo como um sujeito esboça já nas primeiras sessões de uma análise a construção incipiente de seu fantasma, seja nas tentativas de recuperar um lugar falicizado junto à mãe, seja no modo como se faz presente e relança o véu sobre o objeto agalmatizado que ele gostaria de ter sido aos olhos dela. A construção do fantasma, numa análise que se inicia, faz ainda cintilar o brilho fálico na demanda dirigida ao Outro materno, pautada na exigência do supereu que obstaculiza a engrenagem do desejo. O caminho da esfoliação do imaginário implica ainda, no início de uma análise, o consentimento com a existência de um furo incontornável do lado do Outro para tangenciar algo do real.

Por sua vez, no contexto de uma análise que dura, de uma análise que é levada adiante, verificamos que a frase do fantasma, ao ser isolada em análise, faz com que o “sei mais” da repetição do sintoma dê lugar ao “não sei mais” do fantasma, relançando o sujeito ao seu desaparecimento no momento mesmo em que se constituiu como objeto, tal como descrevemos aqui anteriormente. Nessa direção, tem lugar a esfoliação do imaginário e o corte operado de modo que o gozo do corpo dê lugar à frase do fantasma, conforme discutiremos a seguir.

 

A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário

No Curso de Orientação Lacaniana de 2011, Miller[13] colocará em destaque duas expressões aparentemente distintas de Lacan sobre o fantasma. A primeira delas é “o fantasma é o que faz tela diante do real”; na segunda, o fantasma não é apenas tela para o real, mas é também, ao mesmo tempo, “janela sobre o real”. O fantasma é, portanto, conjunção e disjunção com o real, nesse movimento de abertura e fechamento, para o sujeito, do acesso ao real. O fantasma é uma função do real, uma função subjetivada, singularizada, do real. Ele é o real para cada um.

A suposição de que uma travessia da tela do fantasma implicaria ter acesso ao real, ter um “acordo” com o real, o que não era viável para o sujeito até então. Essa tela opacifica o “quem sou eu” para o sujeito, o que o levaria a sustentar-se como uma incógnita. Ou seja, o fantasma faz tela não apenas para o real, mas também para o ser do sujeito, e, pode-se dizer, que o que precipita um sujeito para a análise é uma busca de saber sobre seu ser. Nesse contexto, uma análise se define menos como cura, ou formação, e mais como revelação ontológica.

Para Lacan, o que estaria em questão no atravessamento do fantasma, travessia por um longo tempo foi tomada como critério para o fim de uma análise, refere-se a seu saldo epistêmico. Seja pela inquietação diante do emborcamento do lugar fixo do sujeito frente ao real oferecido pelo fantasma, seja pela deflação do desejo e pelo des-ser, acontece um desinvestimento libidinal diante do qual é dissipada a significação que envelopava o que o sujeito se apropriava como “seu gozo”. Por fim, o efeito de desatar o laço com o analista enquanto sujeito suposto saber dá lugar ao desejo de saber, que antes era aplastado pela ignorância proporcionada pelo fantasma, como já explicitado anteriormente. Desse modo, haveria final de análise quando o desejo se tornasse saber.

Entretanto, Lacan constatou, a partir de um longo tempo de experiência e por ter inventado o passe, que haveria um mais além da conversão do desejo em saber, um mais além que não é modificado pelo atravessamento do fantasma. Trata-se do ser de gozo, destacado com o nome de sinthoma e que, segundo Miller, não se deixa transformar em saber. Os impasses sobre as relações entre o gozo e o sentido, disso que não se atravessa, nos deixa às voltas com o que já discutimos nas preparações anteriores sobre a hiância entre o imaginário e o real e o que não muda – a satisfação pulsional, ou seja, o gozo.

 

3.1) O gozo do corpo

Como aludimos anteriormente, a fórmula do fantasma $ à a inclui elementos heterogêneos, o sujeito barrado que é efeito do significante e o objeto a oriundo do corpo, concentrando o mais intenso do gozo.

Na lição de 31 de maio de 1967 do Seminário A lógica do fantasma,[14] face aos impasses para formalizar a trama da sexuação, Lacan irá interrogar: só há gozo do corpo? Sua resposta procura afirmar que o efeito da introdução do sujeito, sendo ele próprio um efeito de significância, implica em colocar o gozo e o corpo na relação que definida como sendo a de alienação. Nesse contexto, Lacan também se pergunta sobre o fundamento primeiro da subjetividade do corpo. O sujeito se funda de uma marca no corpo que o privilegia e faz com que essa marca domine tudo o que importará para esse corpo. E o gozo, onde é que ele fica nisso tudo? Ele é o que cai na dependência dessa subjetivação do corpo. É o que também se apaga na renúncia ao gozo e, assim, o corpo se torna outro, um corpo estranho que não encontra abrigo nem na imagem de si referente ao próprio eu, nem no que se localizou como o objeto do fantasma.[15]

Corpo e gozo são dois termos que só subsistem um pelo outro. Se sua separação for por onde se introduz o sujeito como efeito de sua significância, então, como analistas, temos que nos perguntar como o gozo é manejável a partir do sujeito. Para Lacan, no Seminário 14, a resposta nos é dada pelo que a análise descobre como aproximação da relação do sujeito com o gozo no âmbito do ato sexual. O gozo sexual nada tem a ver com a escolha conjugal e, a despeito da esfoliação para o momento de contrair núpcias, todos os inconvenientes estão ligados ao fato de que há um furo aí. O ato sexual interessa a nós psicanalistas apenas nesse nível no qual o gozo está em questão. O gozo é aquilo em que o princípio do prazer marca seus traços e seus limites. É algo substancial, importante de se localizar sob a forma do que Lacan articulou com o nome de um novo princípio: “só há gozo do corpo”. “Só há gozo do corpo” é o princípio que responde à exigência da verdade que habita o freudismo.[16]

 

3.2) A esfoliação do imaginário

 Éric Laurent, em sua apresentação do Seminário 14, chama a atenção para o que Miller escreve na contracapa desse livro: “Temos a surpresa de ver o grande Outro, lugar da fala, novamente definido como ‘o corpo’, lugar primordial da escrita”.[17] Para Laurent, essa báscula só é possível com a condição de definir a escrita como escrita lógica, no sentido de Lacan, aquela que faz furos no tecido subjetivo. Os orifícios erógenos que Freud, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, havia situado como orifícios pulsionais são retomados pela inscrição do corpo como inscrição do furo. Nesse sentido, o orifício pulsional e o furo da letra se juntam. O destino pulsional da sublimação vem ao encontro da letra de gozo em torno da qual gira o funcionamento perverso do fantasma.[18]

Com essa proposição de Laurent, conjugando Miller e Lacan, somos levados ao ultimíssimo ensino de Lacan, cujo centro é o furo e, dentre outras consequências, destacaremos aqui a passagem da lógica matemática à lógica de borracha, das cordas que atam os nós, ao pneu, à câmara de ar, ao toro. Como destacou Miller,[19] no seu ultimíssimo ensino, Lacan elege um novo visual como acesso privilegiado ao real.

Toro → Real

Lacan passa a manipular os toros, que se prestam a serem torcidos e retorcidos de mil maneiras. Com os toros, trata de colocar em evidência modificações de estrutura em função dos cortes praticados aqui e ali, e tudo isso constitui uma unidade que não é mais significante, mas da ordem da imagem. Uma imagem pode validar um real, desde que se enfrente esse fato clínico que domina o ultimíssimo ensino de Lacan: a inibição para imaginar. Miller frisa que a inibição é um assunto de imagens, o que o faz ressaltar uma hiância entre o imaginário e o real, a perspectiva de se recorrer ao imaginário para se fazer uma ideia do real,[20] mas não nos dedicaremos a isso aqui, pois foi o tema da preparação para o Eixo 1 desta 27ª Jornada.[21]

Nesse sentido, fica evidente que o simbólico não tem mais a proeminência de antes,  de que  o simbólico passa a ter que prosseguir no imaginário, fazendo Lacan colocar em continuidade o sonho, a poesia, a filosofia, o fantasma e o delírio[22] Ainda com Miller, verificamos como certeza antecipada desse momento de concluir de Lacan a primazia do corpo e daí a nossa hipótese de que esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes frente ao que retorna como tangenciável ao gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real e não mais a tela de proteção.

 

A lógica de borracha e a psicanálise hoje

Mesmo com o enfoque dado por nós psicanalistas à clínica do sinthoma, com o atendimento às urgências de nossa prática no contexto contemporâneo face ao esmaecimento do simbólico e suas consequências como recrudescimento do supereu, constatamos, com as discussões propostas para a nossa próxima Jornada, que o tema do fantasma não foi abandonado por Lacan em seu último ensino. Verificamos seu deslocamento da lógica fálica (vigente até o Seminário 20, Mais ainda) para a “lógica de borracha”, assim denominada por Miller para se haver com o  que Lacan faz com o toro para pensar o real.

Em um texto inédito, Anne Colombel-Plouzennec[23] nos apresenta uma excelente formalização do tema do fantasma no ultimíssimo ensino de Lacan e nos brinda com o que ela demonstra ser a vantagem da transição das  rodinhas de barbante para o toro. Há essa vantagem  porque o tor, por  sua estrutura elástica, permite que ele sofra cortes sem se desfazer : “para que haja fantasma, é preciso que haja toro”[24], e como acrescenta Miller, o ato maior do ultimíssimo ensino de Lacan é o ato de cortar[25].

Chama-nos atenção uma negação que Anne Colombel-Plouzennec faz e que nos serve como uma orientação. Segundo ela, a passagem das rodinhas de barbante ao toro não se deu para ressaltar “o inchaço do imaginário”, mas para destacar “o teor real do corpo que goza da existência do furo”[26]. Assim, o imaginário é colocado em evidência para apontar para o real do corpo, detalhe que nos interessa: trata-se de operar com a manifestação do imaginário do corpo na clínica da neurose, inclusive porque verificamos hoje que, em muitos casos, a presença excessiva do gozo do corpo e das imagens trazem dificuldades na decisão pela neurose. Em outros termos, temos o corpo em evidência nas crises de pânico, automutilações, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, adições, hiperatividade, etc e trata-se, portanto, nesses casos, em um primeiro tempo do tratamento, de promover um esvaziamento desse imaginário inflado, de dialetizar a exigência do supereu que comanda o gozo do corpo, de esfoliar o imaginário, a fim de verificarmos se encontramos, ou não, o suporte do fantasma para esses sujeitos, permitindo-nos então localizar, respectivamente, a neurose (pelo recurso ao fantasma) ou a psicose (pela labilidade desse recurso).

Notas do autor:

[1] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. p. 275-276.

[2] MILLER, J.-A. Como terminam as análises: paradoxos do passe. Tradução de Vera Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. p. 22-23.

[3] Idem, p. 22-23.

[4] MICHERIF, B.  Eixos de trabalho: Eixo 2 – A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/. Acesso em: 01 jul. 2024.

[5] FREUD, S. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Trabalho original publicado em 1950 [1892-1899]). p. 240 (tradução modificada para manter a referência comum ao termo “fantasma”.

[6] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.130

[7] Ibidem, p.131.

[8] LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992. p. 62.

 

[9] Ibidem, p. 150.

[10] FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 287-304. (Trabalho original publicado em 1924).

[11] LAURENT, É. Apresentação do Seminário de Lacan “A lógica do fantasma”. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023. p. 71.

[12] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.12

[13] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 02 de fevereiro de 2011. 2011. (Trabalho inédito). Ver, também: SILVA, V. C. C. da. A lógica do fantasma e mais além. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2020.

[14] LACAN. J. A lógica do fantasma (trechos). Opção Lacaniana, n. 58, 2010. p. 29.

[15] MICHERIF, 2024.

[16] LACAN, 2010, p. 29-30.

[17] MILLER, J.-A. apud LAURENT, 2023. p. 71.

[18] LAURENT, 2023.

[19] MILLER, 2012, p. 256-257.

[20] MILLER, 2012, p. 258.

[21] SANTIAGO, A. L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. 2024. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/. Acesso em: 01 jul. 2024.

[22] MILLER, 2012, p. 259.

[23] Texto inédito que aparecerá no número 60 da Ironik!, a ser publicada em setembro de 2024: https://www.lacan-universite.fr

[24] LACAN, J. Le séminaire, livre 25: Le moment de conclure. Paris, 1977-78. (Trabalho inédito). Lição de 20 de dezembro de 1977.

[25] MILLER, 2012.

[26] COLOMBEL-PLOUZENNEC (2004).

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O que está em jogo, hoje, na repetição neurótica do gozo?

Seminário preparatório
13.06.2024
EIXO 1:

Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem ?

Textos

Comentário a partir do texto de Ana Lydia Santiago sobre o Eixo 1 da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG)

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Gostaria inicialmente de agradecer pelo convite que me foi feito pelos Coordenadores da 27ª Jornada da EBP-MG, Maria José Gontijo Salum e Bernardo Micherif, para estar aqui hoje, juntamente com Ana Lydia Santiago, a fim de tentarmos lançar mais luzes sobre o tema da Jornada.

Ao final do texto de Jacques Alain Miller “Efeito do retorno à psicose ordinária”[1], que já se tornou um pequeno clássico para nós, na seção dedicada às perguntas ao público, Miller falará do Nome-do-Pai como um sol: “Na neurose o Nome-do-Pai está em seu lugar. O Nome-do-Pai tem seu lugar ao sol e o sol é uma representação do Nome-do-Pai”[2]. Ainda que afirmando esse aspecto luminoso do Nome-do-Pai, o que, parece-me, podemos tomar como uma bela metáfora não só do Freud, mas também do Lacan tocado e situando a psicanálise no “debate das luzes”[3], será o próprio Miller, em tal texto, que nos indicará, parece-me, perspectivas mais sombrias. Porque a pergunta que acredito podermos depreender dali, mesmo que Miller não a tenha formulado explicitamente é: será que a luminosidade característica da forte incidência do simbólico sobre o imaginário já não estava, naquele momento, em questão? Afinal, o diagnóstico estrutural neurose-psicose, com a nitidez possível numa clínica estrutural iluminada pela demarcação propiciada pelo Nome-do-Pai em posição solar se mostrava, naquele momento, mais difícil de ser feito, levando Miller a formular a noção de “psicose ordinária”. Ou seja, as elaborações desenvolvidas então por Miller sobre a psicose ordinária já não nos colocariam uma questão sobre as neuroses e sua demarcação nítida a partir da localização simbólico-solar do Nome-do-Pai?

Parece que a partir daí podemos nos aproximar de nosso tema: na lição XIV de O ultimíssimo Lacan, Miller recorrerá a outra metáfora, mas agora bem mais tênue, na medida em que sua própria força de substituição e recalcamento estará amortecida, e que será a da obscuridade. No ultimíssimo Lacan, a partir do Seminário 24, L’insu que sait de l’une-bévue…, segundo Miller, “toda a psicanálise ocorre na obscuridade […]”[4]. Pois se tratará de avançar então entre saberes, mas saberes que não falam, saberes mudos, uma vez que são saberes no real. Se, no simbólico, tais saberes serão sempre mentirosos, eles, no real, serão mudos.

Também toda a topologia dos nós convocada um pouco antes por Lacan tentará se movimentar na obscuridade. Daí a pergunta de Lacan, reproduzida por Miller: “como reconhecer um nó borromeano na obscuridade?”[5]. Pergunta, parece-me, que poderíamos refazer, seguindo esse cotejamento com o tema de hoje: como fazer, na obscuridade, um diagnóstico, seja ele de psicose seja de neurose?

Essa dificuldade com a questão diagnóstica que aparece aqui ligada àquela enfrentada por Lacan, a partir de seu último ensino, de como abordar o real sem ser pela via mentirosa do simbólico coloca novamente o imaginário em cena.  Ora, se o imaginário do estágio do espelho, que Miller chamará de “imaginário florido” (quer dizer, marcado por excessos e sinuosidades que, menos que esclarecerem, confundirão) exige recurso ao simbólico para avançar, é com o recurso aos nós que um imaginário “esvaziado” aparece. Esvaziado, já que na perspectiva da mostração, própria a tal recurso, evidencia-se o quanto um caráter metafórico não estará mais num primeiro plano. Será daí que certo tropismo de Lacan em direção ao imaginário deverá ser entendido. Não evidentemente o imaginário florido do estágio do espelho, mas esse imaginário magro e esvaziado que será o próprio corpo tomado, aqui, como a figura topológica do toro. O corpo humano concebido como um toro, com um vazio central e o vazio em torno do qual esse vazio central se destaca, parece ter sido o grande recurso lacaniano nessa reta final de seu ensino.

Aqui, o visual e o imaginário da figura topológica, desenhada por Lacan, indicarão esse tropismo ao imaginário que convocará o real. O recurso de aproximar a psicanálise da magia, evocado no ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller[6], parece-me poder ser esclarecido justamente a partir da hiância intransponível entre a Coisa, esse nome do real lacaniano, e o saber nele inscrito, não acessível ao simbólico.

Essa impossibilidade de fazer a Coisa falar, se levarmos em conta tal referência,em sua conjunção com o que chamaremos também de sinthoma (pois este apontará justamente para algo de um saber inscrito no real), indicará, segundo Miller, a importância que o último escrito de Lacan nos Escritos adquirirá, a saber, “A ciência e a verdade”. Se o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência (sem implicar que a psicanálise deva ser tomada como tal, para apenas aludirmos a um debate presente atualmente entre nós), o falasser, por ser uma categoria que inclui o corpo, forma parte da natureza, quer dizer, da Coisa. Então, o paradigma da magia faria falar a natureza que não fala, exigindo a estafa do xamã, seu suar a camisa por ser, ele também, tanto natureza quanto cultura. A chamada imaginarização do real que tomará o corpo, mas o corpo do falasser, ganhará daqui elementos fundamentais.

Feita essa introdução, creio podermos dizer que, seja na histeria seja na neurose obsessiva, a partir do último e ultimíssimo ensino de Lacan, e em fina sintonia com nosso tempo, visto não se tratar de questões diletantes, somos compelidos a nos movimentar nas sombras, como o próprio título dessa mesa parece aludir. Se o sol da histérica era seu amor ao pai, quer dizer, o complexo de Édipo, o falo, a trama das identificações e, finalmente o simbólico, hoje precisamos nos orientar pelo que do gozo e do acontecimento de corpo estará envolvido ali. E o inconsciente, não mais entendido como discurso do Outro, mas tomado no esp de um laps[7] ou, se prestarmos atenção, no espaço de um lapso, como aprendemos a designar o inconsciente real. Na neurose obsessiva, parece que o declínio do pai não torna tal neurose propriamente inexistente: a captura pelo olhar, num mundo onde as imagens proliferam com uma autonomia inaudita, um superego de vocação interditora e repreensiva (como podemos perceber no caso do Homem dos Ratos, por exemplo) surgirá em sua pura forma de imperativo de gozo, na captura do falasser pela imagem, seja pela pornografia seja por jogos eletrônicos, como observa Bernardo Micherif na apresentação do Eixo I da 27ª Jornada da EBP-MG.

A partir dessas considerações, retomo o texto de Ana Lydia Santiago, que nos apresenta, de forma bastante interessante, não apenas onde as neuroses estariam hoje, mas também onde elas já estiveram através dessa relação da “falta da razão de ser” com a vontade de justificação. Proporia, visando aqui abrir o debate, destacar algumas das questões discutidas e trabalhadas no cartel preparatório a esse encontro.

Se partirmos da psicose ordinária e do sujeito que, nela, está fora do discurso, como pensarmos o neurótico no discurso hoje a partir do que Miller chamou de evaporação do pai? Vale dizer, se o discurso não se sustenta propriamente na metáfora, mas num deslizar metonímico que às vezes não parece encontrar, no próprio discurso, pontos de ancoragem, qual o estatuto do fantasma hoje? Ou, ainda, se o que vemos prevalecer é um “ato de palavra performativo” na afirmação tão em voga hoje do sou o que digo que sou, afirmação essa que descarta a divisão do sujeito pelo objeto-causa, como a presença do analista pode vir a encarnar um ponto de basta a esse puro deslizamento metonímico?

Uma segunda questão diria respeito aos acessos de desrealização das histéricas, mencionados por Ana Lydia. Tais acessos, que levariam as histéricas à montagem de um teatro que convocasse o Outro dada a sensação de não se sentirem suficientemente verdadeiras, não poderiam ser considerados hoje à luz (ou à sombra) da peça teatral de Hélène Cixous, intitulada Retrato de Dora e que merecerá o comentário de Lacan, após assistir a peça, de que “é realizada de um modo real”?[8]. Lacan prossegue esse comentário dizendo-nos que, nessa peça, “temos a histeria […] reduzida a um estado que eu poderia chamar de material”[9]. Será Laurent quem, comentando tal passagem de Lacan no Seminário 23, esclarecerá: “O sintoma histérico é por excelência um sintoma que fala, um sintoma endereçado. Ele é portador de um sentido. O [aspecto] material, daquela histeria referido por Lacan, no fundo, é o sintoma como tal separado do sentido”[10].

Esse “estado material da histeria”, essa estranha expressão que creio podermos aproximar da referência de Lacan na Conferência de Bruxelas, de fevereiro de 1977, quando ele falará da histeria freudiana como uma metafísica[11], nos permitiria perguntar se a dos dias atuais seria uma histeria sem metafísica, quer dizer, sem a transcendência que o Outro poderia ter-lhe proporcionado. Será então, e talvez, que possamos pensar numa histeria onde o sintoma não será “sintoma em segundo grau”[12], ou sintoma do sintoma de um outro, tal como pode-se constatar em Dora que, com sua tosse fazia sintoma do sintoma da impotência de seu pai que mantinha, com a Sra. K, apenas uma prática de sexo oral. É essa transcendente trama de sentido a ser decifrada por via simbólica que não se percebe mais na mostração da peça de Hélène Cixous. E, se não há metafísica, há o Um sozinho. A histeria, hoje, imersa em imagens, procedimentos estéticos, dietas intermináveis e, tantas vezes, repulsa a relações amorosas, tentando afirmar a identidade d’A mulher sem falhas ou equívocos, não teria no amor transferencial também a aposta na possibilidade de introduzir-se a um amor não-todo?

Na neurose obsessiva, como também indica a apresentação do Eixo 1 da 27ª Jornada da EBP-MG, a partir do discurso da ciência e seus desdobramentos técnicos, vemos os sujeitos imersos nessa verdadeira profusão de objetos desejados e revestidos de valor fálico. Ora, se, com a evaporação do pai, distinguir um operador fálico que convoque o falo em seu valor simbólico certamente se tornou mais difícil, podemos dizer que, na atualidade, essa captura mais intensa do falo pela imagem o distanciou ainda mais da função de verificador da inexistência da relação sexual? Ou, ainda, como essa captura pela profusão de objetos imagéticos nos ajudaria a pensar a afirmação de Lacan de que neurose obsessiva é a que certamente ainda existe?

Para concluir, gostaria de retomar a questão do imaginário no último e no ultimíssimo ensino de Lacan, agora a partir do que Ana Lydia desenvolve ao final de seu texto sobre a hiância entre real e imaginário. Se é nessa hiância que se aloja a inibição que aprisiona o neurótico, teríamos também relançada a “função da imagem como ferramenta capaz de mostrar como se comportam as coisas na neurose em sua repetição de gozo”[13].  No Seminário 11, ao duplicar o mito de Édipo aproximando-o do mito de Hamlet, Lacan fará referência a uma topologia freudiana, onde a falha estrutural da cadeia significante remeteria à emergência do real encarnado pelo pecado do pai. Nessa aproximação de Hamlet com Édipo, Lacan se valerá do célebre sonho com o filho morto e queimado, apresentado por Freud no último capítulo de A interpretação de sonhos.

Tem-se ali um sonho de angústia, onde o pai, após permanecer por dias e noites ao lado do leito do filho moribundo, passa para um cômodo contíguo a fim de descansar um pouco. Horas depois, o pai acorda, ao sonhar com o filho, de pé, ao lado da cama em que dormia, a sussurrar-lhe: “Pai, não vês que estou queimando?”. Logo em seguida, o pai vê um clarão no quarto ao lado, já que uma vela, caída sobre o leito onde o filho jazia, queimava parte de suas roupas e um de seus braços. De imediato, Lacan dirá como esse sonho aponta para algo vindo de um “além” da cadeia de representações possíveis para aquele que o sonha, pois se a interpretação de Freud será a de que, ao sonhar com o filho ao seu lado, desvela o desejo paterno de que a vida do filho se prolongasse, uma obscura ambiguidade do pai surge quando consideramos o incêndio do corpo do filho. Lacan descreverá tal ambiguidade dizendo:

“Do que é que ele (filho) queima? – do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-pai, é aquilo que sustenta a estrutura do desejo com a lei – mas a herança do pai é […] seu pecado”[14].

Essa, segundo Lacan, voz imajada – que surge tanto para Hamlet através do fantasma do pai, quanto como tocha ardente no sonho do filho morto e queimado – vem para arrancar o sonhador de seu sonho. Essa visão atroz designaria um mais-além da cadeia significante que se presentificaria, nos diz Lacan, “pela perda imajada (imajeur) ao ponto mais cruel, do objeto[15].

A questão que lanço aqui, a partir dessa passagem do Seminário 11, é se teríamos através da imagem no sonho uma mostração da matriz, para cada sujeito, do que está em jogo em sua repetição de gozo.

[1] MILLER, J. O efeito de retorno à psicose ordinária. In: A psicose ordinária. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012, p. 399.

[2] Idem, p. 420

[3] LACAN, J. Contra capa dos Escritos. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

[4] MILLER, J.-A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires, Paidós, 2014, p. 234.

[5] Idem, p.230

[6] Ibidem, p.244

[7] LACAN, J. Prefácio a edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 567.

[8] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007, p.102 (Trabalho original proferido 1975-76).

[9] Idem, p. 102

[10] LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Site VI ENAPOL: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/

[11] LACAN, J. Considerações sobre a histeria. In: Opção Lacaniana, n. 50, São Paulo, 2007, p. 20.

[12] MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O Corpo Falante, São Paulo, Escola Brasielria de Psicanálise, 2016, p. 26.

[13] SANTIAGO, A.L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. (Disponível no site da 27ª Jornada da EBP-MG).

[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 41. (Trabalho original proferido 1964).

[15] Idem, p. 63.

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Da vontade de justificação à repetição de gozo (Eixo 1)

Seminário preparatório
13.06.2024
EIXO 1:

Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem ?

Cartel: Ana Lydia Santiago (+1), Fernanda Otoni, Graciela Bessa,
Luciana Silviano Brandão, Maria de Fátima Ferreira,
Maria José Gontijo Salum e Ram Mandil

Textos

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Introdução

O tema do Eixo 1 de investigação da 27ª Jornada da EBP-MG – Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem? –, foi tratado em cartel constituído por Fernanda Otoni, Graciela Bessa, Luciana Silviano Brandão, Maria de Fátima Ferreira, Maria José Gontijo Salum, Ram Mandil, e eu mesma como mais-um e, portanto, relatora. Em nossos encontros, tivemos a ocasião de discutir vários pontos para abordar o tema desta Jornada que concerne à existência das neuroses nos dias de hoje e aos desafios para a clínica, tanto no âmbito do diagnóstico quanto do tratamento. As referências ao último ensino de Lacan (a partir do conceito de sinthoma) e à orientação lacaniana (proferida em seminários por Jacques-Alain Miller), foram dadas como ponto de partida pela comissão científica. O seminário preparatório de abertura, sob a responsabilidade dos coordenadores da Jornada Maria José Salum e Bernardo Carneiro, nos introduziu ao tema com clareza, apontando o norte para o aprofundamento das investigações.

Das discussões ocorridas no cartel, posso referir-me a alguns pontos que tiveram por objetivo traçar um caminho, uma via de resposta ao nosso problema, como, por exemplo, o que especifica a neurose a partir da psicose ordinária; o neurótico no discurso, diferentemente do fora do discurso da psicose; o que há de novo na histeria e na neurose obsessiva no mundo do Outro que não existe, tempo do eu e do individualismo; a inibição como fator clínico fundamental na neurose, introduzido por Lacan a partir do uso dos novos visuais, o nó borromeano e a geometria dos sacos e das cordas, que é geometria de tecedura em que algo se impõe como sendo do real, irrepresentável. E ainda, o recurso ao imaginário para se ter uma ideia do real; como superar a hiância entre o imaginário e o real; diante do impossível foracluído no mundo contemporâneo pela obstinação indócil do neurótico de fazer existir a relação sexual, qual a chance do amor de transferência?

Finalmente, no momento de redigir o Relatório, pude me dar conta de que essa pergunta – onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem? – exige uma abordagem mais aprofundada da questão do que é o fator capital da existência das neuroses no mundo contemporâneo, principalmente se buscamos concebê-las a partir do ponto de vista do tratamento analítico. Nesse sentido, acabei me vendo às voltas não apenas com a questão de saber qual seria esse fator capital que envolve a localização das neuroses, como também quais recursos o tratamento analítico dispõe para permitir uma saída para esses sujeitos. A leitura de um texto de Jacques-Alain Miller, sugerida por Ram Mandil no cartel, foi decisiva para o equacionamento dessas questões, assim como das outras discutidas no curso de nossos encontros. Esse texto tem como título “A paixão do neurótico”[1]. Baseei-me nele para os apontamentos que se seguem, a respeito de onde estão os neuróticos e de onde eles não saem.

 

Onde estão os neuróticos?

É possível dizer que os neuróticos estão imersos nas águas da paixão, tal como esta é definida por Jacques-Alain Miller, a partir de uma indicação de Lacan em seu escrito “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Precisamente, Lacan afirma que a paixão do neurótico se exibe naquilo que é o cerne da experiência analítica: exibe-se na “falta-a-ser” própria do sujeito do inconsciente[2]. O neurótico, do ponto de vista da medicina, é um doente mental, mas para a psicanálise, seja em Freud ou em Lacan, ele não o é. Quando se fala da neurose a partir da paixão, o que se quer enfatizar é que o neurótico sofre da falta-a-ser. A paixão, pathos, não se reduz ao sofrimento. Mas o sofrimento torna-se uma paixão quando o desejo se encontra aí misturado. Em função da presença do desejo, Miller observa que não há somente sofrimento da falta-a-ser, mas paixão da falta-a-ser. A expressão da paixão do neurótico se realiza, no caso da histérica, por meio de acessos de desrealização – não sou suficientemente verdadeira – e, no caso do obsessivo, por meio de acessos de dúvida, em que prevalece o gozo do pensamento[3].

Como se pode constatar, é por meio do sofrimento, e mesmo da dor, que se afirma a existência das neuroses. Por esse caminho, se faz necessário, como é de praxe na história da psicanálise, estabelecer uma clínica diferencial entre a paixão do neurótico e a paixão do perverso. A direção escolhida não se restringe a afirmar que a neurose é o negativo da perversão. Tomamos aqui a perversão sob o prisma do direito ao gozo, o que significa que o perverso não questiona a razão de ser do gozo, pois, antes de tudo, ele afirma um direito. Já o neurótico está do lado do “não querer nada saber disto”[4], como propõe Lacan em seu  Seminário 20, Mais, ainda. O neurótico se enreda no emaranhado do gozo, de maneira que o desejo varia e, quando ele está a ponto de obter o que quer, desaparece. A paixão do neurótico está do lado da procura, ou, mais precisamente, ele procura para não encontrar. Justo antes de obter o gozo, o sujeito faz um movimento para evitá-lo e, portanto, para não encontrá-lo. É a própria procura que apaga o achado, que o evita. A esse respeito, podemos tomar a célebre frase de Picasso “não procuro, encontro”, como um certo escárnio do artista ao neurótico, que, em sua paixão, procura para não encontrar, defende-se do desejo por intermédio de suas vacilações, evitamentos e quedas bruscas. “Não procuro, encontro” é também a maneira de Lacan proceder em seu ensino: encontra primeiro em um ato de antecipação, e depois explora as consequências[5]. Nada disso com o neurótico, inibido quanto ao seu ato[6].

Enquanto o perverso encontra no direito ao gozo uma orientação para sua existência, o neurótico, quanto ao gozo, não sabe porque está nesse mundo. A formalização que Lacan propõe em relação a essa diferenciação clínica consiste em afirmar que a escolha da perversão está do lado do objeto a, enquanto a da neurose está do lado do $. A partir daí, como veremos mais adiante, Miller coloca o perverso do lado da modalidade lógica do necessário e o neurótico do lado da contingência, justamente por faltar-lhe sua razão de ser. O neurótico, como se afirma em “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, experimenta sua vida como o que há de mais inútil, uma pura falta-a-ser, a ponto de se achar – diz Lacan – um Sem-Nome[7]. É isso que permite Miller, de um modo bastante original, conceber a neurose como o que impõe ao sujeito “o dever de inventar sua razão de ser[8]”. É preciso dar-se conta de que a originalidade, nesse caso, é tomar a neurose para além da função da “falta-a-ser” com o intuito de priorizar o que ele designa como “a falta da razão de ser”[9].

Tudo indica que Miller reinterpreta a tese segundo a qual a neurose consiste num mito individual, à luz do aprofundamento da presença da ciência no mundo, em que o sujeito passa a ser definido pelo princípio da razão suficiente. Segundo ele, trata-se de um princípio que se encontra na filosofia de Leibniz e nos dá o sentido do ser em nossa época, formulado da seguinte maneira: “tudo tem uma razão, nada é sem razão”[10]. Diante do fato de que a civilização passa a ser regida por esse princípio de que tudo tem uma razão, a paixão do neurótico moderno, quanto a esse princípio, se coloca do lado da contingência, ou seja, ele se coloca na posição de inventar razões de ser. A civilização acentua a paixão do neurótico, pois se tudo tem que ter uma razão de ser, sua subjetividade se vê compelida a encontrar suas próprias razões para estar vivo nesse mundo. Em outros termos, desde o momento em que tudo tem uma razão de ser, o neurótico, se vê às voltas com ter que se justificar em seu sofrimento e em sua dor.

 

A vontade de justificação convoca o Outro

            Parece-me que toda essa releitura da neurose está a serviço da demonstração de que a existência atual das neuroses se circunscreve, sobretudo, nos excessos do imaginário em que sobressai a vontade de justificar-se. Para Miller, a neurose merece esse qualificativo de vontade: uma vontade que valoriza a justificação em detrimento do gozo. Porém, mesmo que a vontade de justificação do neurótico se relacione com a função da falta-a-ser, ou seja, com o desejo, é preciso destacar também que o imaginário do corpo aparece aí por uma via indireta, que é a pregnância do pensamento enquanto gozo, a exemplo da ruminação no obsessivo ou do devaneio na histérica. A posição subjetiva do neurótico, em sua busca obstinada de uma razão de ser, aparece e se exerce nesse funcionamento do imaginário que é a justificação. Ao falar de paixão, se aponta para a força do imaginário na neurose, sem desconhecer, contudo, que a paixão não acontece sem relação com o Outro. Nesse ponto, Outro da justificação, Outro, face ao qual o neurótico quer e requer a sua razão de ser. Esse aspecto do Outro enquanto testemunha não é sem consequências para o manejo da transferência no curso do tratamento analítico, sabendo que o analista conta com o fato de que a única “razão real de ser” de cada um é o gozo[11]. Nota-se que o encontro do neurótico com o gozo não é nada agradável. É o encontro com a verdade, na experiência da análise, que nada tem a ver com uma contemplação mística da realidade sublime da verdade, mas com as chances de entrever a face real do gozo. Ainda que esse real do gozo seja estritamente impensável, pode-se considerar que, por um breve instante, é entrevisto ou visualisável[12].

Se antes falamos da contingência no nível da posição subjetiva do neurótico, no tocante ao Outro do testemunho nos deparamos, em contrapartida, com a necessidade. O neurótico tem necessidade de testemunhar, necessita do Outro enquanto testemunha. É o que a ordem médica não reconhece quando se depara com o aspecto singular da histeria, ao reduzi-la a teatro. Tudo isso com o objetivo de convencer-nos de que os sintomas histéricos são destituídos de autenticidade. O teatro na histeria significa igualmente a necessidade de testemunhar. A paixão da histérica é um sofrimento que não existe sem o Outro, ela testemunha sua dor sob o olhar do Outro, olhar encarnado que é necessário. Não se trata apenas de se mostrar, mas mostrando-se o sujeito testemunha. A esse respeito, Miller faz inclusive um paralelo entre a paixão de Cristo e a da histérica. É como se o testemunho da paixão do Cristo – Pai, por que me abandonaste? – ressoasse na histérica de uma maneira que se acredita um pouco menos eloquente.

Quanto à obsessão, esta é solidão. É uma solidão que tem lugar sob a vigilância do Outro. É com paixão que o obsessivo dá existência a essa vigilância. Quando o obsessivo, em análise, convoca o analista para ocupar esse lugar de testemunha encarnada, pode haver uma chance de se produzir algum alívio nesse ponto. Sem isso é bem provável que o obsessivo vá se acomodar no Outro desencarnado e morto.

Se a clínica da neurose se sustenta na falta-a-ser, é essa clínica que convoca de modo irrefutável a função do Outro. A própria manifestação da paixão pela falta-a-ser traz em si a presença do Outro, mesmo que o Outro, no mundo atual, se evidencie em seu próprio declínio. No caso da histeria, fazer existir esse Outro acontece sob a modalidade do amor ou mesmo de sua insatisfação para com ele, coisa que nem sempre é fácil de distinguir. E na obsessão? De que modo se dá essa reivindicação do Outro como avalista de sua falta-a-ser? Ao considerar a concepção freudiana da neurose, essa função do Outro aparece, segundo a caracterização de Miller, nas chamadas “duas mamas” da paixão da neurose: amor e trabalho. Assim, somos conduzidos a admitir que a função do Outro no obsessivo se faz por meio da modalidade de sua devoção ao trabalho, inclusive, ao trabalho dirigido ao Outro.

 

Da falta-a-ser à repetição de gozo 

            De que modo o tratamento analítico vislumbra as chances de gerar uma existência desembaraçada da vontade de justificação própria do neurótico? A resposta a esse problema implica encarar a relação entre a vontade de justificação – situada no terreno do narcisismo e das exigências dos ideais – e o gozo. No âmbito das neuroses, a transcrição da libido em termos do desejo não esgota as propriedades que o próprio Freud propõe para a sua concepção de libido. Se o desejo, com toda a sua agilidade, desliza por toda parte e impõe efeitos de loopings variados e bizarros, como é o caso da vontade de justificação, esse desejo é por definição uma função que se deduz do inconsciente enquanto produto do recalque: desejo morto. Porém, nem tudo que constitui as propriedades da libido se assimila ao caráter indestrutível do desejo: resta o gozo. É o gozo como impossível, como resistente ao trabalho de simbolização, gozo este que Lacan tentou, inicialmente, recuperar sob o modo do grande Φ (grande phi). Por meio desse resto, desse excedente do trabalho de simbolização do inconsciente, Lacan introduz o objeto a como mais-gozar, concebido como suplemento da perda de gozo.

O gozo como propõe Lacan, em seu último ensino, particularmente no Seminário 20, mais, ainda, deixa de ser a transgressão de um limite, como é o caso do das Ding e passa a ser ele próprio um limite[13]. O gozo como limite da ordem simbólica, o gozo como litoral, na neurose, consiste na repetição, repetição do gozo. No último ensino de Lacan a repetição deixa de ser repetição significante e se transforma em repetição de gozo. Antes, nas lições do Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, a repetição compareceu como repetição significante, na medida em que era tratada pela representação significante e pela divisão do sujeito que sempre deixa no sujeito algo irrepresentável[14]. É somente em O avesso da psicanálise que a repetição se sustenta e é causada pelo gozo. Como propõe Lacan, “a repetição está fundada sobre um retorno do gozo, a repetição visa o gozo”[15]. Portanto, nesse Seminário, o acento é colocado sobre o significante como marca de gozo, tanto é que ele pôde dizer que o significante-mestre é aquele que comemora a irrupção de gozo e, ao mesmo tempo, introduz uma perda de gozo, gerando um gozo suplementar[16].

Como se sabe, Lacan toma de empréstimo à termodinâmica o termo de entropia, e nos diz que é “a entropia que faz o mais-gozar tomar corpo e recuperar”[17] a libra de carne perdida. Mais adiante, afirma que “o mais-gozar toma corpo por uma perda”[18]. Assim, o gozo enquanto limite com relação à simbolização vinda do inconsciente, emerge pela via da entropia e da perda produzida pelo significante. Isso nos interessa porque é nesses termos que Lacan formula a questão fundamental para a discussão da neurose, isto é, “o saber é meio de gozo”[19]. Para Miller, a tese do saber como meio de gozo é um primeiro capítulo do abandono da autonomia e supremacia do simbólico. É o mesmo que dizer que o significante, a ordem simbólica e o grande Outro, toda essa dimensão essencial da neurose é impensável sem uma conexão com o gozo.

A partir daí temos uma clínica que valoriza a metonímia, a perda de gozo e, principalmente, o corpo em detrimento do sujeito do inconsciente. Valoriza-se, portanto, toda uma lógica cuja elaboração se sustenta e é motivada pela relação com o corpo. A direção do tratamento das neuroses concerne, assim, à relação do sujeito com o gozo e às mudanças que decorrem desta relação preferencial. É preciso distinguir, ainda, se essa relação com o gozo se dá sob a forma do fantasma ou sob a forma da repetição.

Pensar a relação com o gozo sob o modo da repetição conduzirá Lacan a dar um novo valor ao sintoma, que é o que passamos a conhecer em seu último ensino como sinthoma. O fato da invenção do sinthoma ter surgido a partir de casos de psicoses não-desencadeadas não significa que uma tal ferramenta clínica não seja aplicável à neurose. Considerando que a defesa compreendida por intermédio do recalque deixa de ser o único fator de abordagem das neuroses, e sobretudo considerando a importância que assume a repetição de gozo, é inegável que o trabalho do analista deverá contar com meios que permitam abrir para o sujeito acesso ao real do gozo.

 

Fig. 1
(Miller, J.-A. Os seis paradigmas do gozo, p. 34)

 

Admitir que o sinthoma passa a ter um lugar preponderante para o acesso ao real na clínica das neuroses exige não prescindir da relação do neurótico com o gozo sob a forma do fantasma. Este, o fantasma, aparece como uma espécie de obstáculo sob a forma de uma tela que se trata de atravessar para cingir o real. Se a travessia do fantasma é um convite para ir mais além do plano das identificações em direção ao vazio, à destituição do sujeito, à queda do sujeito-suposto-saber, ela traz como consequência inexorável o sujeito do gozo em que jaz a repetição. Em suma, o sinthoma entra em jogo na prática lacaniana porque a travessia do fantasma deixa um resto, cujo protagonista principal é a repetição do gozo.

Apesar da distinção entre tratar a relação ao gozo sob o modo do fantasma e sob o modo da repetição, não se pode dizer que não há uma imbricação entre um e outro. Para Miller, a repetição é de alguma maneira a forma desenvolvida do fantasma, ao mesmo tempo que o fantasma é a forma concentrada da repetição.

 

Fig.2

 

Dessa forma, se a repetição possui um parentesco com o sinthoma é porque presentifica a repetição de gozo e, por essa via, adquire uma consistência que não se confunde com a do fantasma fundamental. Ainda segundo Miller, trata-se de “uma constância que se estende e dura”[20]. A repetição de gozo não é algo que se colhe diretamente no fantasma, pois o que está em questão na visada do sinthoma, em casos de neurose, é reduzir e atingir os restos sintomáticos sem que com isso se possa eliminá-los. Por isso mesmo, o sinthoma que emerge – como redução da satisfação pulsional que envolve a repetição –, comporta um desenvolvimento temporal que, justamente, não se presta à decifração de sua verdade recalcada, mas, sim, a um saber-fazer com isso que é resto. Como se disse antes, não se trata de uma parada ou evacuação da repetição, mas de preferência um novo uso da repetição de gozo.

Sob a mira do sinthoma que traz consigo esse novo uso da repetição de gozo, afirma-se que somente a diferença pode amparar, para o neurótico, uma existência desembaraçada da vontade de justificação. Porém, que diferença é essa? Talvez a diferença seja um termo insuficiente para traduzir aquilo que somente o sinthoma enquanto índice do acesso bem sucedido à singularidade do gozo encerra como solução à vontade de justificação. É evidente que essa singularidade do gozo se constitui para além da falta-a-ser visto que nesse ponto de redução próprio dos restos sintomáticos se condensa o segredo da paixão do neurótico. Enquanto injustificável, a singularidade que o neurótico pode extrair dos restos intratáveis de seus sintomas lhe fornece uma resposta que, no fundo, surge do instante de abertura, em que o falasser consente com a falta de qualquer pergunta relativa à sua razão de ser no mundo.

 

A  inibição para se separar da repetição de gozo

O mesmo acontece com o tratamento analítico das neuroses quando Lacan abre mão do privilégio e supremacia da ordem simbólica, ou seja, relativiza a falta de algo irrepresentável como aquilo que causa a insistência da cadeia significante, em proveito do gozo. Com que recursos o tratamento analítico pode contar, quando o seu objetivo é atingir a repetição de gozo, considerando que essa dimensão do real não é abordável, nem por meio da função significante, nem pelo objeto a do fantasma? É preciso considerar que o objeto a, que se decanta do fantasma, é parte integrante da insistência do simbólico em vedar o acesso ao gozo, tornando-se um protagonista das produções de sentido. Logo, o objeto a, que se isola na construção do fantasma, não sustenta a abordagem do real porque ele próprio se define como efeito de sentido e, por essa via, somos conduzidos à cisão entre o objeto a como efeito de sentido e o real. Portanto, o objeto a deixa de ser um fator sob o qual se capta a consistência do real e torna-se um objeto que ocupa o lugar do semblante[21].

Fig. 3
(Lacan, J. Seminário 20, p. 96)

 

O ensino de Lacan, para dar conta desses obstáculos e impasses que sobrevêm na prática do analista, faz uso de uma esquema que prioriza a vetorização das três consistências RSI, muito mais que a homogeneização delas.



Fig. 4
(Miller, J.-A. Le tout dernier Lacan, 23/05/2007)

Não se desconhece que a homogeneização, com seu efeito de gerar uma hiância entre os três registros, seja um aspecto fundamental da perspectiva borromeana. Porém, a meu ver, tratar o enlaçamento borromeano RSI pela via dos três vetores no sentido giratório é o meio mais eficaz para se dar conta de onde os neuróticos não saem. Não é à toa que Miller, na lição de O ultimíssimo Lacan, intitulada “O real não fala”, detém-se longamente na forma simplificada desse esquema, chamando nossa atenção para a vetorização: o simbólico se dirige ao real, o real ao imaginário, e o imaginário ao simbólico[22]. Vejamos o modo como se toma esse esquema com os vetores assim orientados, para restituir os elementos que obstruem o avanço da experiência analítica. Em primeiro lugar, quando o imaginário se dirige ao simbólico [I→S], gera o que se tem insistido aqui, que é a imaginarização do simbólico, cuja expressão maior é a vertente imaginária do fantasma. Em segundo lugar temos o vetor [S→R], que foi alvo do nosso comentário anterior, onde se localiza o objeto a entendido como semblante.

O destaque concernente às dificuldades que se apresentam no curso do tratamento é dado por Miller ao vetor que se coloca entre o imaginário e o real [R→I]. A importância clínica desse vetor é a descontinuidade entre o imaginário e o real. É exatamente o contrário do que acontece no vetor do imaginário ao simbólico [I→S] que tem lugar de maneira quase espontânea no momento em que o sujeito fala e elucubra, ao longo do tratamento, sobre suas razões de ser.

Fig. 5
(Miller, J.-A. Le tout dernier Lacan, 23/05/2007)

        

É por isso que Miller, em sua leitura do ultimíssimo Lacan, preconiza que o fator clínico maior das neuroses é a hiância, que se encontra, como uma pedra, no caminho entre o imaginário e o real. Pode-se dizer que os três vetores que conectam as três consistências não são iguais entre si, pois aquele que vai do real ao imaginário de destaca pela presença de uma hiância na qual se aloja a inibição[23]. Como se vê, nesse último trajeto o simbólico está fora da jogada, na medida em que suas manifestações desaguam inexoravelmente no imaginário, e essa é a prisão da qual o neurótico não pode sair. É por isso que Lacan recorre à função da imagem como uma ferramenta capaz de mostrar como se comportam as coisas das quais se trata em sua repetição de gozo.

 

De onde os neuróticos não saem

Jacques-Alain Miller, em uma pronunciamento publicado com o título Quando o tratamento para[24], declina várias situações em que a experiência analítica com pacientes neuróticos não avança nem termina. Ele observa que os tratamentos que não terminam são aqueles que não levam a parte alguma. Primeiramente, menciona algumas situações típicas de pacientes que se conectam ao analista para dar um sentido à sua vida. É o caso do neurótico que dá expressão à sua vontade de justificação nas sessões, tomando o analista como testemunha para realizar uma limpeza subjetiva. Nessa ocorrência, o sujeito não pode encarar o que lhe é dito, porque suspeita demais dos significantes alusivos. Tudo é pesado demais para ele, que resta submerso no próprio monólogo e na narração de sua vida, o que o impede de fazer o que tem a fazer. Há também o neurótico que se apega ao amor de transferência como uma tábua de salvação. Para alguns acontece, mesmo, de ser a única relação de amor na vida deles e, então, eles se nutrem do laço transferencial e ao mesmo tempo o alimentam. Há ainda aquelas análises em que a sessão é fonte de prazer e de gozo, para o analisante. Estes podem até trocar de analista, mas não se cansam da análise. Uma análise pode também estancar sob a formação de um tampão, o que  acontece  quando o sujeito se satisfaz de uma identificação, de uma fórmula de seu ser, que funciona como um significante final. “Eu sou isso… Ok!”.

Mas a dificuldade fundamental em relação ao ponto de onde os neuróticos não saem concerne sempre, como referido antes, ao “fantasma reduzido a um fantasma fundamental particular, cujo núcleo é o gozo”[25]. Mais precisamente, se trata de uma unidade libidinal, denominada “objeto a. Essa unidade de gozo fundamental para o sujeito constitui um obstáculo porque não se dilui. Lacan considerou, inicialmente, que diluir essa unidade seria uma via de saída para o impasse freudiano no tocante ao final da análise. Depois, admite que esse impasse é constitutivo do ser de gozo do sujeito, o que se enuncia sob o modo do aforisma “não há relação sexual”. O insolúvel, o impossível, é a inexistência de fórmulas sexuais capazes de dar conta do desencontro entre os sexos. Esse impossível é uma coisa que se deve admitir. “Se você é totalmente desmunido para ser inteiramente homem ou mulher, em contrapartida é impossível ser convenientemente um homem para uma mulher ou uma mulher para um homem. Aceite isso, então!”[26] É um fim por consentimento. Consentir com o impossível supõe uma abertura a  acontecimentos imprevistos, a encontros, enfim, com a contingência. Encontros que podem ser frutíferos na vida e em relação à verdade não-sabida.

 

Quando Lacan visualiza o real das neuroses

É Lacan que nos dá uma ideia do real nas neuroses, em A lógica do fantasma, a partir do ponto fundamental ao qual chega nesse seminário ao afirmar que “o ato sexual não pode ser colocado em fórmula”[27]. Como se sabe, isso quer dizer que, no nível do real e do inconsciente, nenhuma norma é prescrita quanto ao sexo; cada sujeito tem que se mensurar pois não há medida, e a maneira como a articula vai lhe levar ao seu fantasma fundamental. A dificuldade do neurótico, sinaliza Lacan, é justamente a de imaginar a distância que há entre a função do fantasma no nível dito perverso – que como assinalamos, o perverso sabe sobre o gozo –, e a sua função no registro neurótico – daquele que não quer nada saber. Lacan  propõe um visual para captar o real nas neuroses, que é “o quarto de dormir”![28]

O quarto de dormir existe em teoria, diferentemente do ato sexual. Lacan insiste para prestarmos muita atenção no fato de que tudo que acontece com o neurótico, acontece essencialmente longe do quarto de dormir. Na fobia pode acontecer no guarda roupas, no corredor ou na cozinha. A histeria acontece em qualquer ante-sala, aquém do quarto de dormir. A obsessão nos banheiros. Isso é muito importante, diz Lacan. São as estratégias do neurótico para evitar chegar ao quarto de dormir. E o que os impede de chegar ao quarto de dormir? O núcleo do fantasma, como vimos. Mas também podemos investigar, na clínica atual, por qual justificativa passa a determinação apaixonada dos neuróticos em não querer nada saber do “não há ato sexual”? Ou como justificam a paixão de querer fazer existir o homem e a mulher enquanto tal, o que se contrapõe à procrastinação em relação ao encontro com o Outro sexo. Estas questões concernem igualmente ao desejo do qual os neuróticos se defendem com o fantasma, em função do próprio papel do fantasma que é o dever de sempre se inscrever: desejo prevenido para a fobia, o desejo insatisfeito para a histérica, e para o obsessivo, o registro do desejo impossível. Deixamos em aberto estas questões para as investigações clínicas que terão lugar na 27ª Jornada da EBP-MG, sabendo que no quarto de dormir onde não acontece nada, onde o ato sexual se apresenta como foracluído, é o consultório do analista.

[1] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. In La Cause du désir, out 2016,  nº 93. p. 112-122.

[2] LACAN, Jacques. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In  Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 619.

[3] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. Op. Cit. p. 113.

[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, mais, ainda (1972-1973). 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p.9.

[5] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2003. p. 271.

[6] Idem.

[7] LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In Escritos. Op. Cit., p. 841. A falta-a-ser (-φ), no neurótico, se insinua sobre o sujeto barrado favorecendo a imaginação que lhe é própria, a imaginação do eu. É porque ele sofre a castração imaginária logo de saída, que a imaginação vai estar a serviço de sustentar seu eu, fortalecer o eu de uma maneira  tão forte que seu nome próprio, marca do desejo do Outro, o importuna. Enfim, o neurótico é um Sem-Nome porque esconde a castração que ele nega, mas, ao mesmo tempo, se apega demais a ela, mergulha na sua falta-a-ser.

[8] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. In La Cause du désir., Op. cit., p. 114.

[9] Ibidem, p. 115.

[10] Idem.

[11] MILLER, Jacques-Alain. La passión del neurótico. In Introducción a la Clínica Lacaniana. Conferencias en España. Barcelona: RBA Libros, 2006. p. 83.

[12] LACAN, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan, texte établie par Jacques-Alain Miller, R.S.I., leçons du 10 et 17 déc., 1974. In Ornicar, nº 2.p. 96.

[13] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, mais, ainda (1972-1973). 3ª ed. Op. Cit., p. 99.

[14] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2, o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 129-132.

[15] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 45. Citado por MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Ano 3, nº7, março 2012. p. 32. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br.

[16] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.73.

[17] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Ano 3, nº7, março 2012. p. 32. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br.

[18] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.73. Citado por MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Op. Cit. p. 32.

[19] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.74.

[20] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line. Op. Cit. p. 35.

[21] LACAN, Jacques, O Seminário, livro 20, mais, ainda. Op. Cit. p. 102.

[22] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Op. Cit. p. 240.

[23] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Op. Cit. p. 195.

[24] MILLER, Jacques-Alain. Quand la cure s’arrête (11/05/2009). In Quarto, 96, octobre 2009. p.10-15.

[25] Ibidem, p.11.

[26] Idem.

[27] MILLER, Jacques-Alain,. Propos sur La logique du fantasme.  In La cause du désir, nº 114, juillet 2013. p.70.

[28] LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre XIV, La logique du fantasme. Paris: Seuil, 2023. p. 423.

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O Imaginário na clínica do sinthoma

Textos

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O imaginário no Seminário 23, O sinthoma, é definido como uma das três consistências do nó borromeano, e não apenas como imaginação, tampouco como o gosto pelas imagens e muito menos por sua redução à imagem especular. Ainda que todas essas versões possam estar presentes na apreensão lacaniana do sinthoma em James Joyce, chama a atenção que, ao defini-lo como tendo uma consistência própria, o imaginário seja reduzido ao corpo. A respeito desta equivalência entre o corpo e o imaginário, Lacan afirma, nos Estados Unidos, que, “do corpo, a experiência da análise apreende o que nele há de mais imaginário”, ou seja, que “um corpo se reproduz por uma forma”[1]. Completa ainda: “nós o apreendemos sempre como uma forma”, e como vamos ver mais adiante, essa “forma se manifesta no fato de que este corpo se reproduz, subsiste e funciona sozinho”[2].

É sabido que, ao longo de seu ensino, o corpo é tratado via função da imagem que, apesar de suas variações e distinções, aparece sempre como uma forma ou modelo integrado ao corpo. [VER: Fig.1]

 

IMAGINÁRIO CORPO ENQUANTO FORMA

 

Isso se confirma com o Estádio do Espelho, em que a imagem especular se constitui como a forma do corpo próprio, imagem concebida como o primeiro objeto de investimento libidinal e, portanto, como campo apto a produzir uma identificação, tornando possível ao infans obter, pela primeira vez, um reconhecimento de si.

 

A função inercial da imagem especular

Evidentemente que não se trata da última identificação, porém, resulta dela o chamado gozo jubilitário, ou seja, o gozo que se faz com sua imagem do corpo e que nele contém um embrião de seu Eu (moi). Essa ancoragem do Eu (moi) na imagem do corpo tem sua fonte na pressuposição de que a libido assume um valor imaginário, pois o gozo enquanto júbilo com a imagem do corpo não procede diretamente do simbólico. Em suma, o gozo jubilatório não provém do sujeito propriamente dito, está relacionado com a experiência do se ver e é dela que emerge o Eu (moi) como instância narcísica e imaginária.

 

SE VER (CORPO) EU (INSTÂNCIA IMAGINÁRIA)

 

Essa experiência do se ver é também aquela que preside a relação imaginária ao Outro no seio da qual predomina a rivalidade, a agressividade e o ódio. Ao permanecer fixado nesse gozo intra-imaginário – gozo do júbilo – por meio do qual o sujeito apenas vê no Outro seu duplo imaginário, seu alter ego, seu rival, isso conduz a

um desconhecimento do ser, da falta-a-ser e do desejo. Se o Estádio do Espelho é qualificado como uma identificação, no sentido pleno que a psicanálise confere a esse termo, é a força da assunção jubilitória da imagem do corpo que promove essa primeira metamorfose no ser de gozo da criança[3].

Ao reconhecer que a imagem especular desempenha um papel fundamental nessa transformação do ser do infans, deve-se levar em conta que a função da imagem já é concebida, nesse início de seu ensino, segundo sua falta de autonomia e, por consequência, sua dependência ao que o próprio Lacan designa como a “matriz simbólica”[4]. Algum depois do Estádio do Espelho, essa dependência do imaginário ao simbólico se aprofunda e torna-se, no interior de seu ensino, mais presente e sistemática. Isso quer dizer que não se capta a importância da função inercial e estagnante própria das fixações imaginárias, sem considerar o quanto as tais manifestações se vêem submetidas às determinações do simbólico. Enquanto reduzido à imagem especular, o imaginário assume, em boa parte do ensino de Lacan, o valor de uma resistência desfavorável ao avanço da experiência da análise. Com a clínica do sinthoma, ter-se-á um outro uso do imaginário, que se destaca, por exemplo, na Conversação, Parlamento de Montpelier, pois este evento é uma prova a mais do quanto o último ensino de Lacan devolve toda a dignidade clínica ao imaginário. Tal dignidade adquire seu ápice com a perspectiva tardia do enodamento borromeano de RSI, visto que, a partir daí, o chamado novo imaginário passa a ser um fator que favorece a experiência analítica.

 

O corpo nos é estranho…

O nó borromeano, com seus três aros de barbantes, homogeniza os três registros e desfaz qualquer tipo de hierarquia entre eles que, antes de tudo, se expressa pela derrocada do império das determinações simbólicas, alçando assim, no horizonte da prática lacaniana, a fecundidade clínica da consistência dos três registros RSI. Considera-se, com isso, que “a essência do nó borromeano” é essa homogeneização que traz também como consequência uma hiância entre esses três registros, uma vez que se apresentam como radicalmente separados e dotados de uma autonomia própria[5]. Se faz necessário insistir, portanto, que afirmar o caráter homogêneo das três consistências borromeanas implica admitir uma hiância, uma separação fundamental entre elas.

 

 

Uma das consequências da adoção da perspectiva borromeana, em que prevalece a consistência de RSI como horizonte da clínica lacaniana, é a subversão do imaginário, antes reduzido à imagem especular, e agora passa a ter como marco essencial sua equivalência com o corpo[6].

Antes mesmo dessa mutação de paradigma própria da perspectiva borromeana, e ainda no bojo do enfoque inédito da angústia, nos anos 60, o corpo que se recebe e que se carrega consigo é problematizado por intermédio do Unheimlich infamiliar – fenômeno concebido para além da produção da imagem especular. Como atesta a experiência da angústia, a recepção do corpo pelo sujeito excede ao que se institui como imagem produzida pelo espelho, uma vez que a imagem do corpo que se acredita ser se faz por meio de uma pertubação da imagem que, no caso do infamiliar, se verifica de modo flagrante. Cabe inclusive perguntar se sob o ponto de vista dessa perturbação da imagem do corpo, com toda a conotação de perplexidade que a envolve, o evento corporal da inquientante estranheza pode ser considerado como um fenômento elementar?

No entanto, a tese de que a imagem integra o corpo sofre uma mudança substancial com a teoria dos nós borromeanos, pois o seu ponto de partida é, como se disse antes, tomar o corpo como uma consistência que funciona sozinha e sem a menor informação desse funcionamento para o próprio sujeito da linguagem. Tudo o que Lacan formula sobre o corpo a partir da clínica do sinthoma busca constituí-lo como consistência isolada e separada dos dois outros registros: Simbólico e Real. Diante disso, sua argumentação gravita em torno da formulação freudiana de que o inconsciente apoia-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo e, portanto, o corpo nos é estranho[7].

 

O homem tem o corpo, não o é…

Tanto é que quando Lacan redige sua Conferência “Joyce, o sintoma”, a estranheza é o acento que se retém quando afirma que o homem tem um corpo que ele não o é …[8]. É nítido que tal formulação do corpo aponta para uma disjunção entre o corpo e o ser. Essa disjunção é fundamental porque, segundo Miller, a concepção do corpo que a antecede, aquela que se faz presente no Seminário 20, Mais ainda, é de que “o ser é um corpo, que o corpo é a primeira abordagem do ser”[9]. Isso se exemplifica pela demonstração de que o corpo do monge é o hábito, ou seja: o hábito é mais do que um invólucro, o hábito constitui-se no próprio índice de que o corpo do monge se confunde com o seu próprio modo de gozo. O hábito é a “forma separada de todo formalismo”[10], na medida em que o hábito é homogêneo, ao objeto causa de desejo do monge.

Ao contrário disso, se a perspectiva borromeana introduz o ter, o faz para desunir o ser e o corpo, de tal maneira que essa doutrina desfaz o que Lacan chamava de sua hipótese de que o corpo afetado pelo inconsciente estruturado como linguagem equivale ao mistério do corpo falante[11]. A perspectiva borromeana desune o corpo e o simbólico, de modo tal que essa disjunção torna-se o grande problema da clínica do sinthoma e não apenas um mistério.

 

 

Com efeito, a nomeação do falasser (parlêtre) como um substituto do sujeito do inconsciente está para além do mistério do corpo falante. O falasser nada tem a ver com o “cântico aristotélico” sobre o ser que se apresenta dependente do corpo[12]. O falasser (parlêtre) não depende de um corpo, não recebe o seu ser do corpo que ele seria, ele o recebe da palavra, isto é, do simbólico. O falasser tem um corpo, não o é, por isso, pode deixá-lo cair, como veremos mais adiante no episódio da surra relatado por Joyce em “O retrato de um artista quando jovem”.

 

Da cadeia significante à cadeia borromeana

Assim, para o falasser, uma vez que o simbólico, segundo a perspectiva borromeana, se apresenta como separado do real e do imaginário, ele deixa de ser uma instância, ou seja, uma ordem estruturada pelo significante. Antes disto, ao definir o simbólico enquanto ordem ou estrutura é, no fundo, dizer que a tendência do significante é fazer cadeia. Isso se deduz da própria doutrina estruturalista de que o significante apenas existe ao se associar a outro significante e, assim, concebe-se o significante por sua condição de produzir cadeia. Se de um lado, a invenção do nó borromeano já denota um eclipse do simbólico, uma desvalorização da palavra, de outro, sua implicação maior é por em questão o princípio de que todo significante faz cadeia com outro significante.

A imagem do enodamento borromeano fascina e cativa porque, com desvanecimento do simbólico, emerge a ideia de uma nova ordem cuja característica marcante é a de um espaço conectivo composto por pelo menos três aros ou rodas de barbantes concebidas como peças avulsas. O pressuposto motivador da clínica do sinthoma é colocar em suspensão a ideia de que um significante faz cadeia com outro significante no intuito de postular o princípio de que os três aros ou rodas de barbante RSI são consistências tomadas como peças soltas e avulsas.

O que enfim surpreende o próprio Lacan é que ele vai tomar “o nó como o que suporta cada consistência e que, por isso, não se pode jamais deduzir esse nó de uma cadeia” do tipo cadeia simbólica[13]. Com o enodamento borromeano, propõe-se uma outra modalidade de cadeia – cadeia borromeana –, que exige uma outra linguagem, a saber: a da amarração e a do encontro entre, pelo menos, três rodas de barbante e três furos. Sem entrar em maiores aprofundamentos, é suficiente dizer que, sem os furos, não seria pensável que algo pudesse enodar as rodas de barbante. Logo, nesse espaço conectivo a três, em que as consistências se enlaçam e se enodam, não existe nenhuma chance de constituírem uma cadeia simbólica nos moldes da articulação S1-S2.

Em vez de fazer cadeia no simbólico, o significante enquanto unidade da consistência própria do simbólico passa, nese caso, a fazer nó. Por isso Lacan inventa o termo de cadeinó [chaînoued], porque, no âmbito da cadeia borromeana, o significante deixa de ser o fonema, como era no caso da linguística, e, como nó, ele produz furo. Ao passar da cadeia significante para a cadeia borromeana, o furo passa a ser inerente ao simbólico, assim como, a consistência corporal torna-se o imaginário e a ex-sistência própria do real é o que se acrescenta às duas outras consistências. Enquanto ex-sistência, o real como terceira roda de barbante é o que mantém unidos o imaginário e o simbólico. Assim, a postulação desse espaço de conectividade das três consistências, concebidas como independentes umas das outras, é vista como a referência basal da prática lacaniana em que prevalece a orientação de ir mais longe do que a decifração do inconsciente. Salienta-se, ainda, que ao dar a mão a Joyce, a prática lacaniana dá um lugar primordial à consistência do corpo, portanto, ao imaginário como peça avulsa em substituição à operação interpretativa por meio do simbólico.

 

A consistência do imaginário enquanto corpo é peça avulsa

A ênfase que Miller concede ao termo peça avulsa é para tornar evidente o que é uma consistência como “o que mantém junto”[14]. O corpo é o que melhor explicita o que é a consistência própria do imaginário, pois “nós o sentimos como pele retendo em seu saco um monte de órgãos[15]”. É somente pelo corpo concebido como um “monte de peças avulsas”[16] e pelo seu funcionamento autônomo que se pode ter acesso, em Joyce, tanto à separação entre o sintoma e o inconsciente, bem como o deixar cair [lâchage] do corpo. Não cansamos de repetir a expressão segundo a qual Joyce está “desabonado do inconsciente” para buscar dar conta dessa separação entre o inconsciente e o sintoma. É preciso entender as razões que levam o sinthoma a se apresentar, nesse caso, como solto e depreendido do inconsciente. Joyce nos dá a chave para captar essas razões na medida que sua própria obra evidencia o que vem a ser o núcleo do real do sintoma. É na medida que seu trabalho com a escrita encarna a operação lógica de redução do sentido que, tem como fonte o inconsciente, a ponto de fazê-lo com que não tenha mais sede[17]. Desse modo, estar desabonado do inconsciente é tornar sua própria história mera futilidade e, finalmente, é por essa via que se pode extrair e isolar o núcleo real do sintoma.

O sintoma em Joyce é – diz Lacan – “um sintoma que não lhes concerne em nada (…) na medida que não há nenhuma chance de que se assemelhe a algo do inconsciente de vocês”[18]. Notadamente no caso do sintoma neurótico, nem sempre é fácil não recorrer ao sentido para tratar e dar um destino ao seu impossível de suportar que se mostra articulado às defesas provenientes do inconsciente. Nesse caso, interpretar o inconsciente, fazê-lo existir, supõe levar em conta aquilo que resiste no sintoma, a saber, uma verdade, um significado à espera de ser promovido e liberado. Por outro lado, o sintoma com o qual lidamos na prática lacaniana, nos dias de hoje, se apresenta radicalmente separado do símbolo, um sintoma que não se cristaliza em um saber suscetível de ser lido e por isso destituído de algum endereçamento ao psicanalista. Estar desabonado do inconsciente quer dizer que o sintoma concerne o corpo que funciona sozinho, um corpo que se apresenta numa relação de disjunção com o ser, ou seja, como refratário às determinações simbólicas que envolvem o inconsciente.

Para esclarecer o valor clínico do imaginário enquanto peça avulsa, faz-se necessário recorrer ao fenômeno do qual James Joyce é testemunha por meio de seu personagem Stephen Dedalus, um fenômeno considerado raro por Lacan, porém, bastante decisivo com relação ao que promove a experiêcia analítica. Trata-se do episódio da surra recebida pelo personagem de O retrato do artista quando jovem. É inócuo reportar aos comentários da crítica literária universitária sobre a distinção entre o autor e o personagem, pois de onde o autor sustentaria esse fenômeno, senão dele próprio, considerando sua raridade, bem como não ser ele possível de ser produzido via imaginação. Lacan não se coloca na posição dos universitários que se dedicam ao comentário e à resolução do número imenso de enigmas que a obra joycena contém. A relação de Lacan com a obra de Joyce é eminentemente clínica, no sentido de que ela serve de apoio à prática analítica quando esta lida com o falasser desabonado do inconsciente, isto é, com situações em que o sintoma se mostra desatado, desvinculado do inconsciente. Vale dizer que o psicanalista, nesses casos, não encontra meios de operar por intermédio da decifração simbólica do inconsciente.

É o caso do extrato bastante conhecido em que Joyce testemunha que, durante a adolescência, foi espancado por não ceder a uma disputa acerca de coisas referentes a poetas, precisamente entre Tennysson e Byron. O colega que comandava toda a aventura era um tal de Heron, termo que não é indiferente, pois tal nome tem origem no hebraico “Aharon”, que significa “montanhês” ou “exaltado”. Esse Heron e seus cúmplices vão amarrá-lo em uma cerca de arame farpado e, em seguida, espancá-lo. Logo após o acontecimento, ainda naquela noite, “enquanto ia para a casa aos tropeções, pela Jones’s Road, sentia que alguma força estava livrando-o daquela raiva urdida com a mesma facilidade com que uma fruta se desfaz de sua casca mole e madura”[19]. Joyce se interroga acerca de sua reação marcada pela ausência de afeto e pelo fato de que não guardava nenhum rancor do colega que o tinha molestado. Seu questionamento aponta para o lado enigmático da experiência de distanciamento de seu próprio corpo. Para Lacan, é de se esperar uma tal reação por parte de Joyce, pois, diante desse grave acontecimento, somente ele seria capaz de metaforizar sua relação com o corpo ao afirmar “que todo o negócio se esvaiu como uma casca[20].

Quando confrontado com a situação do espancamento, não reage à altura do esperado e experimenta uma espécie de despreendimento e abandono de seu corpo e do afeto. Esse episódio permite a Lacan dizer que, em Joyce, “há alguma coisa que exige apenas sair, ser largada como uma casca”[21]. Joyce testemunha “um deixar cair a relação com o corpo próprio”[22], isto é, uma dissolução da imagem do corpo que promove um discreto fenômento de discordância. Desde então, essa manifestação do deixar-cair o corpo passou a ser captada como um sinal clínico do chamado fenômento de discordância descrito pelo psiquiatra Pierre Chaslin[23]. A clínica do sinthoma, por sua vez, apreende esse fenômeno sob o prisma da desconexão do elemento imaginário do enodamento borremeano do falasser. Lacan é bastante claro a esse respeito ao formular que, em Joyce, “a relação imaginária não acontece”[24] e, por isso, o falasser se constitui por meio da conexão direta do inconsciente com o real, sem a mediação do imaginário.

Se, nesse caso, a relação imaginária se mostra ausente, como se efetua a formação da imagem do corpo que, como se viu antes, é o que alimenta e dá sustentação às funções do eu? Se não há relação imaginária, supõe-se também que não há a imagem do corpo sobre a qual se edificam as funções do eu. É preciso, neste ponto, especificar a função do que Lacan denomina, no contexto do Seminário 23, O sinthoma –, como Ego, e aquela do eu (moi). Antes desse Seminário, as duas noções – o eu (moi) e o Ego – são sinônimas. Como se sabe, o eu (moi) tem sua nascimento no narcisismo infantil e corresponde à instância que permite ao indivíduo se defender contra a realidade psíquica e as pulsões. Trata-se de uma função que se extrai da segunda tópica freudiana.

 

Imaginário como o Ego corretor do lapsus do nó

É o que se disse antes acerca da ancoragem imaginária dessa instância do eu (moi) e que se confirma nesta frase: “Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem [25]. Diante disso, Lacan encaminha a sua elaboração no sentido de distinguir o eu (moi) daquilo que, nestas circunstâncias, considera-se como sua invenção, a saber, o Ego: “o fato de não haver interesse por essa imagem naquela ocasião [a da surra] não é o que assinala que o Ego tem nele [Joyce] uma função particularíssima?”[26] Conclui-se, portanto, que o eu (moi) sustentado pela imagem do corpo equivale ao exercício de sua função no terreno da neurose, supondo que nela prevaleça a amarração com o nó de três. É o que propõe Jean-Claude Maleval: “Quando a função narcísica opera na presença do enodamento borremeano, o eu (moi) não se distingue do Ego”[27]. A distinção advém, portanto, com Lacan em casos da não-amarração borremeana de R, S e I. Em outros termos, em certas configurações – notadamente quando há um deixar cair do imaginário –, o Ego se define como a “ideia de si como um corpo”[28], e não como um eu (moi) que se suporta pela imagem do corpo.

É dever da clínica do sinthoma considerar que, para certos sujeitos, é preciso recorrer a outras montagens, distintas do nó de três RSI, como nos casos em que se visa preservar algum arranjo das partes do corpo entre elas, uma vez que o horizonte clínico é fazer existir um corpo. O Ego se constitui, por consequência, como um outro porta-voz do imaginário no sentido de que, enquanto peça avulsa, ele é o corpo e, não, uma imagem do corpo. Em Joyce, este Ego assume uma função radicalmente distinta da função narcíssica, pois é quem corrige a falha do nó graças à condição reparadora da escrita.

A especificidade da amarração se situa no plano da conexão existente entre o real e o simbólico – articulação do tipo olímpica que gera o laço inabitualmente estreito entre os dois registros, R e S, e que deixa o imaginário solto.

O que é marcante em Joyce é que, face à situação da surra, há um instante em que nada funciona, deixando-o sem resposta. No entanto, algum tempo depois, algo funciona, ou seja, Joyce testemunha não ter nenhum reconhecimento ou afeto de não importa quem ele tenha recebido essa surra.

Nesse momento, o que acontece com o corpo que funciona sozinho? Admite-se que se trata de um espaço não subjetivado, pois não é subjetivável. Um lapso de tempo é, portanto, necessário a Joyce para dar uma resposta que nos deixa supor entrever que há criação, invenção. Imediatamente após esse tempo, ele testemunha que, com relação ao acontecimento passado, ele não tem nada contra ninguém. Uma falha do afeto consciente a respeito do Outro surge no lugar do vazio. A invenção consiste, nesse caso, no acionamento de um Ego que tem relação com a “escritura da metaforização do corpo”[29], isto é, não mais com a imagem do corpo, com a ideia do corpo como imagem, que corresponderia ao eu (moi), mas com o “enquadramento formal traçado pela escritura”[30]. Com a tese do Ego como grampo, Lacan sugere que Joyce gera o sinthoma, “como alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos”, ainda que haja o lapso ou o erro na cadeia borromeana[31]. O Ego em condições de corrigir o erro “permite ao nó de três se manter como nó de três e conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto de constituir nó de três”, e é isso que se denomina sinthoma[32]. Assim, se a organização psíquica de Joyce confirma a chamada forclusão de fato do Nome-do-Pai, ela atesta também a presença de um conector para reparar o lapsus do nó.

 

Se virar com a imagem, se virar com o sinthoma

 

Em contraste com a expectativa de que um significante novo possa cernir o impossível de se nomear próprio do final de análise, o ultimíssimo ensino de Lacan destaca o valor da imagem como fator de mostração desse real impossível. Se o fundamental da experiência do final se circunscreve pela via do núcleo real do sintoma, se o real não fala, é mudo e, se o simbólico se desvanece, o acesso a esse núcleo real poderia acontecer por meio da imagem? Ainda que a resposta possa parecer óbvia, postula-se que tal formulação exija uma subversão do imaginário, pelo menos esse que se confunde com a função inercial da imagem, este que se supõe interceptar o dinamismo próprio dos deslocamentos simbólicos.

É diante do abandono da supremacia da ordem simbólica frente às duas outras que se institui o novo imaginário concebido como peça avulsa e que se apresenta como corpo. A homogeneidade entre o real, o simbólico e o imaginário radicaliza o fato de que o corpo se introduz na economia do gozo por meio da imagem. Em outras palavras, na clínica do sinthoma prevalece uma outra supremacia: a do corpo que, justamente, se tece por meio da imagem.

Face ao silêncio do real e da não operatividade da função significante, resta-nos o recurso do imaginário que agora se pode agregar a ele, o recurso do corpo que, segundo o ultimíssimo ensino, se constitui sob o modo do “tecido do inconsciente”[33]. Desde o momento que a unidade, ou melhor, a micro-unidade do significante é relegada a um segundo plano, é a geometria do tecido – com sua composição de fios, malhas, entrelaçamentos e furos – que aparece como a via para não deixar a experiência da análise cair na mera abstração ou elucubração.

Em primeiro lugar, é evidente que o gozo pulsional – definido pelo acordo entre o significante e o corpo – continua presente na gestação do tecido como um componente essencial, visto que ao expressar o acordo entre o significante e o corpo, ele se presentifica sob o modo da ressonância.

Em segundo lugar, deve-se levar em conta que se o peso do significante se desloca para a imagem, o que não quer dizer que o inconsciente esteja ausente na própria confecção do tecido. Trata-se, portanto, de privilegiar o inconsciente em suas manifestações disruptivas com relação à cadeia associativa, particularmente aquelas que subsistem como tropeços da ordem simbólica como tal: ato falho, chiste e, inclusive, sonho. Tomar como fundamental essa vertente de fenômenos que se caracterizam pela descontinuidade do inconsciente – ou seja, tais manifestações não fazem cadeia – levou Lacan a introduzir uma nova categoria que advém logo após a sua invenção do sinthoma. Assim, durante o livro 24 do Seminário, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre, propõe-se uma forma inédita de nomear esses fenômenos disruptivos basais do inconsciente por meio da tradução fonética do Unbewusst freudiano, pelo termo francês de une-bévue. Sérgio Laia nos sugere o uso, em português, para a tradução semântica de une-bévue, do termo inadvertência[34]. Enfim, se a operação analítica deixa de ter como móvel a decifração, tornou-se necessário “ir mais longe do que o inconsciente” estruturado como linguagem, em que o vetor deste para além é a produção do tecido do inconsciente. Ao visar o que Lacan denonima como tecido, a experiência da análise passa a operar tendo como referente a micro-unidade do inconsciente enquanto inadvertido e a macro-unidade do sinthoma[35].

Em terceiro lugar, destaca-se o que Miller concebe como o fato clínico maior que Lacan trabalha e põe em evidência no momento conclusivo de seu ensino, ou seja, o se que constitui como uma espécie de patema da clínica do sinthoma que é a inibição para imaginar o real[36]. O chamado fato clínico da inibição não aparece apenas em situações como a da ausência da relação imaginária, como vimos no episódio da surra em Joyce, mas, sim, à postulação de uma hiância entre o imaginário e o real. Importa salientar, como horizonte dessa clínica, o recurso inevitável do imaginário para “imaginar o real”[37]. Porém, é nesse ponto da hiância que a inibição incide e se encorpa. Ainda que articulada às imagens, a inibição se edifica como o principal fator de impedimento para a imaginarização do real.

 

INIBIÇÃO

IMAGINÁRIO // REAL

 

Por fim, cabe afinar ainda mais a tese de que o imaginário é o corpo se faz presente no final de análise? Evoca-se aqui o comentário que faz Éric Laurent sobre uma passagem do seminário L’insu que sait de l’une bévue, de que aquilo “que o homem sabe fazer com sua imagem corresponde de alguma forma (…) à maneira de como ele se vira com o sinthoma”[38]. Ao reconhecer a equação entre o ‘se virar com o sintoma’ e o ‘se virar com a imagem’, Lacan leva às últimas consequências sua contribuição de que, para imaginarizar o real, não se dispensa o recurso ao imaginário e que, de modo algum, se escapa da metáfora. O imaginário é o próprio alicerce do tecido do inconsciente e “o tecido isso se imagina somente (…) e tudo o que acontece para imaginar se extrai do próprio Imaginário”[39]. Tudo indica que, no tocante ao enodamento RSI, o final de análise concerne essa hiância entre o Imaginário e o Real na medida em que nela se ergue o muro da inbição.

Por fim, essa reabilitação do imaginário em detrimento do simbólico na clínica do sinthoma, aponta para a insuficiência de toda descrição ou representação autoficcional do real. O acréscimo a ser feito é o de que o sintoma se escreve como inibição, sobretudo quando se trata do homem e de sua fixação no parceiro objeto olhar, nada fácil de ser arrancável. Claro, isso não se escreve em uma escrita objetivável, pois o que está em questão é o tecido do inconsciente que se confecciona em torno da não-relação com o corpo do Outro. Se virar com o parceiro-sinthoma, quando se está diante da inexistência da relação sexual, é se virar com esse tecido que se aguenta por meio dos furos e restos do gozo. Dizer que o ser falante se vira com o parceiro sexual como se vira com a própria imagem é dizer que se vira com a imaginarização do que faz furo no real por meio do gozo pulsional.

Se o gozo do corpo do Outro inexiste, não se toma o narcisismo inerente à escolha amorosa como impedimento, na medida em que o próprio imaginário se coloca como prova do que se sabe fazer com o parceiro-sintoma. O papel do imaginário como tal assume um valor efetivamente decisivo e fundamental. Não se está mais na época do imaginário depreciado e subjugado pelo simbólico, pois o próprio imaginário fornece uma coordenada a mais, para viver em um mundo em que prevalece o império da imagem. Enfim, saber se virar com a imagem é saber se virar com aquilo que no corpo se goza, via sintoma, e é isso que permite o saber se virar com o parceiro-sinthoma.

 

Figura 1

O imaginário na clinica lacaniana

 

[1]LACAN, J. Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines, Scilicet, Seuil, Paris, 1976

, n. 6-7, p. 54.

[2]Idem, ibidem.

[3]LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 96-103. (Trabalho original proferido em 1949), p. 97.

[4]Idem, ibidem.

[5]MILLER, J.-A. Piezas sueltas (2004-05). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 57-58.

[6]LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76), p. 135.

[7] “A antiga noção de inconsciente, o Unerkannt, apoiava-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo. O inconsciente de Freud é justamente a relação que há entre um corpo que nos é estranho e alguma coisa que faz círculo, ou mesmo reta infinita […].”  (LACAN, 1975-76/2007, p. 145, grifo nosso).

[8]“Coisa em que ele não pensaria, supomos, se esse corpo que tem, ele verdadeiramente o fosse.” Cf.: LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975), p. 565.

[9] MILLER, 2013, p. 65.

[10] LACAN, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69), p. 93.

[11] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73), p. 178.

[12] LACAN, 1975/2003, p. 565.

[13] LACAN, 1975-76/2007, p. 61-62.

[14] Idem, p. 63.

[15] Idem, ibidem.

[16] MILLER, 2013, p.18.

[17] Idem, p. 21.

[18] LACAN, 1975-76/2007, p. 161.

[19] JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 78.

[20] LACAN, 1975-76/2007, p. 145.

[21]Idem, p. 146.

[22] Idem, ibidem.

[23] SAUVAGNAT, F. Du détail pictural ‘non significatif’ aux phenomènes elementaires discrets: un brève    parcours, 2015. Disponível em: https://www.amp-nls.org/fr/nls-messager/nls-minute-20/. Acesso em: 01 mai. 2024.

[24] LACAN, 1975-76/2007, p. 147.

[25] Idem, p. 146.

[26] Idem, ibidem.

[27] MALEVAL, J.-C. Élements pour une appréhension clinique de la psychose ordinaire, Paris: Navarin, 2003, p. 14.

[28] LACAN, 1975-76/2007, p. 146.

[29]LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, Contracapa, Rio de Janeiro, 2016, p. 131.

[30]MALEVAL, 2003, p. 14-15.

[31]LACAN, 1975-76/2007, p. 91.

[32]Idem, ibidem. (Grifo do autor).

[33]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.

[34]Ver a esse respeito: in: LAURENT, É., 2016, p. 66.

[35]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.

[36]MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan (2006-07). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 256.

[37]Idem, p.

 [38] LAURENT, É. Hablar con el propio síntoma, hablar con el propio cuerpo. 2013. Disponível em: https://elp.org.es/hablar-con-el-propio-sintoma/. Acesso em: 01 mai. 2024.

[39]Lacan, J.

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A Escolha da Neurose e a Escolha de uma Análise

Textos

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Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretor Geral da Escola Brasileira de
Psicanálise – Seção MG (EBP-MG)
e-mail: laia.bhe@terra.com.br

Freud (1913/2010, p. 325) abordou a “escolha da neurose” como um “problema” que convocaria a psicanálise a responder “por que um indivíduo adoece de uma neurose”, por que esta última se apresentaria a alguém como uma escolha. Aproximo essa referência à escolha e ao que Lacan (1946/1966, p. 177), bem mais tarde, chamará de “insondável decisão do ser”, aquela em que cada um “compreende ou desconhece sua liberação, nessa armadilha do destino que o engana quanto a uma liberdade que de modo algum conquistou”, isto é “a lei de nosso devir, tal como a exprime a fórmula antiga: Genoi, oíos essí [Que te tornes tal qual és]**”.

Certamente, essa escolha não é uma decisão consciente e, nesse contexto, vale lembrar que essa “fórmula”, Que te tornes tal qual és, é de Píndaro e foi retomada por Nietzsche (1888/1995, p. 48) como “uma oposição à mais conhecida frase grega inscrita no frontão do templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”.[1] Pautando-se por essa oposição, Nietzsche (1888/1995, p. 48) – além de soar-me lacaniano ao definir a célebre recomendação de conhecer-se a si mesmo como “mal entender-se” – não concebe a “fórmula” Que te tornes tal qual és*** como um processo de conscientização, permitindo-me não assimilar a escolha da neurose a uma decisão consciente e concebê-la como uma das vertentes tomadas pela “insondável decisão do ser”. Sauvignac (2023, p. 12) explicita que a máxima de Píndaro se encontra nas Odes chamadas de Píticas, dedicadas aos vencedores dos concursos pan-helênicos de Delfos, onde se encontrava o santuário de Pytho, em honra de Apolo e, portanto, do mesmo local dedicado a Apolo, derivou-se tanto a “fórmula” que Lacan e Nietzsche valorizam, quanto aquela, mais conhecida e citada, contra a qual Nietzsche se coloca. Nós, psicanalistas da orientação lacaniana, podemos ler tal oposição como uma sensibilidade de Nietzsche (1888/1995, p. 48) à opacidade do gozo do sintoma: “que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”. Ao longo de uma análise, eu diria que essa ausência de suspeição quanto a quem se é vai ser abalada e poder-se-á passar a saber do sintoma com o qual uma parceria é mantida, que acompanha cada um ao longo da existência, mas sem que daí se deslinde qualquer progresso em termos de um conhecimento (inclusive à la frontão do templo de Apolo) de si mesmo.

 

Um “problema mais específico” e a escolha entre loucura e debilidade mental

Freud (1913/2010, p. 325) também ressalta que a resposta ao “problema” de como alguém se torna neurótico seria alcançada apenas a partir da resolução de um “problema mais específico” de se saber por que há escolha de uma neurose, e não de outra. Assim, seria preciso descobrir, primeiro, como se daria a escolha por um tipo de neurose para que, a partir daí, o padecimento da neurose se esclarecesse. Ao intitular seu texto “A predisposição à neurose obsessiva”, dedicando-o em grande parte a essa neurose, e, ao final, concluindo que “seria prematuro iniciar… a discussão dos problemas da predisposição histérica”, Freud (1913/2010, p. 325 e 337) pode nos levar a concluir que o “problema mais específico” seria o da escolha entre a histeria e a neurose obsessiva. No entanto, a concepção freudiana das psiconeuroses não corresponde ponto a ponto ao que, especialmente a partir da psicanálise lacaniana, diferenciando-as sobretudo das “psicoses”, concebemos como “neuroses”, porque, para Freud (1913/2010, p. 326), “as principais formas das psiconeuroses” seriam “histeria, neurose obsessiva, paranoia, dementia praecox”. Ora, ao listar essas duas últimas (que chamamos de psicoses) junto com as duas primeiras (para nós, neuroses), Freud – mesmo sem nem sempre ter se valido da diferenciação diagnóstico-estrutural efetivada pela clínica lacaniana – me permite também aproximar o “problema” da “escolha da neurose” e o que Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 9),[2] em um de seus últimos Seminários, formulou nos seguintes termos: “entre loucura e debilidade mental, nós temos apenas a escolha”.

Por algum tempo, tendi a conceber essa escolha como aquela pela qual um sujeito se decidiria, de forma exclusiva, pela psicose (especificação do que é mais amplamente chamado de “loucura”) ou pela neurose (que, por suas restrições ao saber, eu então aproximava da noção lacaniana de “debilidade mental”). No entanto, acabei por verificar que as concepções lacanianas de loucura e de debilidade mental não correspondem respectiva e exclusivamente às psicoses e às neuroses. Assim, é pertinente afirmar que tanto neuróticos, quanto psicóticos, podem ser loucos e assolados pela debilidade mental, mas não da mesma forma, e cada um a seu modo.

Ao longo dos últimos dois anos, as Escolas reunidas pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP) puderam trabalhar com afinco o aforismo lacaniano que serviu de título ao nosso último Congresso – “Todo mundo é louco” –, e nos foi possível esclarecer como cada um, em sua particularidade e independentemente da estrutura clínica que lhe concerne, é afetado pela “loucura”, na medida em que fala e crê no que não existe e, portanto, delira. Nesse contexto, muitos anos antes desse Congresso, Miller (1988, p. 192 e 193) já elucidava: “o delírio é universal porque os homens falam”, “porque há linguagem para eles”, de modo que “o significante”,  por sua “função de irrealização”, de não se associar propriamente a um referente, a uma coisa, faz o ato mesmo de falar tomar toda uma dimensão delirante. Nas psicoses, essa irrealização promovida pelo significante o atinge, fazendo as próprias palavras se apresentarem literalmente como coisas para aqueles que delas padecem e, nas neuroses, tal irrealização, como já indicava o primeiro Lacan (1953/1966, p. 319), faz com que “o símbolo se manifeste de início como assassinato da coisa”, enredando-as na trama significante do discurso do Outro.

Freud (1924/2016), alguns anos depois de seu texto sobre a “escolha da neurose” e já tendo formulado as instâncias nomeadas como Isso e Supereu, ou seja, quando pôde localizar as perturbações do Eu não apenas pelas diferenças entre os sistemas Consciente e Inconsciente, estabeleceu também uma diferenciação entre neuroses e psicoses que, a meu ver, é importante para o que procuro abordar aqui como a escolha da neurose. Nas neuroses, ao “não aceitar nem querer conduzir para a descarga motora uma moção pulsional poderosa do Isso ou lhe barrar o acesso ao objeto ao qual ela visa”, a defesa se dá pelo recalcamento e “o recalcado luta contra esse destino, cria, para si próprio – por caminhos sobre o qual o Eu não tem nenhum poder –, um substituto que se impõe ao Eu pela via do compromisso [Kompromisses]: o sintoma” (FREUD, 1924/2016, p. 272). Ao não ter qualquer poder quanto aos caminhos que, no entanto, segue, o neurótico, por sua própria conta, só pode mesmo, como ressaltava Nietzsche a propósito do apolíneo “conhece-te a ti mesmo”, mal entender-se, fracassar em saber e em tornar-se tal qual é, mesmo que o tempo todo, como é bem comum hoje em dia, um neurótico creia na importância de ser ele mesmo e de ser quem ele diz ser – essa crença é um do modos pelos quais podemos discernir a debilidade mental como escolha da neurose.

A dimensão débil da neurose me parece também passível de ser localizada quando Freud (1924/2016, p. 272) ressalta que o próprio sintoma, mesmo em sua função de estabelecer um compromisso, uma espécie de pacto para o neurótico defender-se das pulsões e do objeto em torno do qual a satisfação pulsional se dá, continua lhe sendo um “intruso” contra o qual, assolado pelo Supereu, o neurótico “prossegue na luta…, tal como o fez com a moção pulsional original” que lhe sobrevém, não menos incessantemente, do Isso. Por sua vez, nas psicoses, perante o que não tem como realizar-se, “o Eu recria autonomamente para si um novo mundo exterior e interior”, construindo esse “novo mundo… de acordo com as moções de desejo do Isso” (FREUD, 1924/2016, p. 273). Essa recriação psicótica de um mundo é ainda aproximada do que acontece, para todos, e não apenas para os psicóticos, nos sonhos, permitindo a Freud (1924/2016, p. 273) demarcar “o estreito parentesco” entre a psicose e o “sonho normal”, mas não sem fazer-nos a seguinte ressalva: “a condição do sonho é o estado de sono” – ou seja, os neuróticos dormem enquanto os psicóticos se apresentam, senão despertos, certamente em estado de sonambulismo, isto é, capazes de passarem à via do ato mesmo quando parecem adormecidos quanto à chamada “realidade”. A debilidade mental, em sua versão da escolha da neurose, tem a ver, portanto, com o sono que atravessa a existência dos neuróticos – sono que uma análise visa perturbar sem que, devido à pregnância da debilidade mental nas neuroses, jamais o dissipe completamente.

Ao conceber a debilidade mental  como “a impossibilidade de manter um discurso contra o qual não há objeção”, Lacan (1976-1977/1977-1979, p 14)[3] também permite-nos localizá-la tanto nos neuróticos, quanto nos psicóticos. Mas é bem diferente se, por uma decisão insondável do ser, a recusa de sofrer alguma objeção advenha, como acontece nas psicoses, da impossibilidade de manutenção de um discurso que lhes inexiste enquanto tal, isto é, não há propriamente um registro subjetivo do que lhes faria laço social e permitiria uma articulação transmissível das palavras e dos corpos ou se, por outra forma de a decisão insondável do ser apresentar-se, a impossibilidade de manter um discurso sem objeções for tributária de um esforço incessante, nos neuróticos, para se crer na consistência do discurso do Outro e, assim, fazê-lo perseverar em sua existência e proteger-se do sintoma como esse estranho que lhes é, ao mesmo tempo, um parceiro ao longo de suas vidas.

Procurando esclarecer um pouco mais a formulação de Lacan (1946/1966, p. 177) sobre a insondável decisão do ser e me valendo dos  seus próprios termos, eu diria que, com relação à “armadilha do destino” (e tomo o destino como um nome que os antigos davam ao Outro), o psicótico é aquele que “compreende… sua liberação” em relação a essa armadilha-destino, não admite  sofrer objeções quanto a essa liberdade, mesmo que ela o faça padecer da inexistência de um lugar para si no Outro; por sua vez, o neurótico, em sua escolha, “desconhece sua liberação” e se deixa alienar-se no discurso do Outro, caindo nessa armadilha na qual ele crer compor toda sua existência enquanto, na verdade, essa composição só acontece de modo parcial.

É ainda possível esclarecer um pouco mais como a debilidade, de forma diferente, afeta tanto a escolha da neurose, quanto a escolha da psicose, na medida em que Lacan (1946/1966, p. 177) afirma: a “armadilha do destino”, frente à qual o ser toma sua “decisão insondável”, também “o engana quanto a uma liberdade que ele de modo algum conquistou”. Nesse engano, leio a presença da debilidade. Assim, eu diria que um psicótico é enganado porque sua liberdade, embora alardeada por sua certeza delirante, não é uma conquista sua, mas consequência de sua condição de ser largado, de ter sido abandonado quanto à trama e, por que não dizer, à tramoia do Outro que, particularmente nas querelâncias, é alvo de denúncias e demandas de reparação infindáveis. Por sua vez, de modo mais contundente, o engano da escolha do neurótico, sua debilidade, é crer que sua liberdade não é conquistada devido à consistência que ele atribui à “armadilha do destino” que o captura, ou porque ela parece lhe advir, não sem engano, apenas como um resultado de seu protesto, de sua oposição a deixar-se cativar enquanto, no real de sua existência, palavras e imagens não deixam de fasciná-lo e impedi-lo de efetivamente conquistar, como sua, a liberdade.

 

A escolha de uma análise

Um analista, hoje, ao operar com as neuroses, vai se haver senão com a descrença, certamente com o tédio perante a possibilidade de um sentido advir do inconsciente, como retorno do recalcado, para elucidar, tal qual nos tempos de Freud, o que é esse estranho que se apresenta como parceiro na própria forma do sintoma perturbar neuroticamente a vida. Por isso, “no lugar do recalcado”, a análise passa a ser desafiada pela “verdade mentirosa do que Freud reconheceu como o recalque originário” (MILLER, 2016, p. 32). Essa forma primeira do recalque, mais do que com o sentido ou com a verdade inconscientes, tem a ver com a fixação (FREUD, 1915/2004, p. 179) pela qual um representante psíquico da pulsão se mantém inalterado, sem acesso, mas com uma força atratora concernente ao material recalcado, na medida em que a pulsão “permanecerá a ele enlaçada”. Logo, talvez não seja excessivo comparar o recalque originário à noção física de buraco negro que, por conter uma força de gravidade tão intensa, faz com que nada tenha energia suficiente para dele escapar e, portanto, torna-se localizável apenas pela ausência de retorno.

Assim, não é incomum, hoje, sermos procurados como analistas menos por uma constatação de que há algo que escapa ao saber dos que nos demandam tratamento, menos ainda pela presença inconsciente de suas lembranças infantis, e muito mais pelo incômodo diante do que lhes fixam em certos trajetos e satisfações dos quais não conseguem liberar-se. Não é que essas lembranças efetivamente inexistam ou não possam aparecer ao longo de uma análise. A dimensão débil da neurose em nossos dias se apresenta, sobretudo, como a constatação de uma fixação da qual os analisantes parecem não encontrar alguma saída e, menos ainda, uma liberdade. Afinal, como também já destacava Freud (1912/2021, p. 609), pela “fixação”, como “precursora e a condição de todo ‘recalcamento’, uma pulsão ou uma parte constitutiva de uma pulsão não acompanha o desenvolvimento normalmente previsto, permanecendo, em consequência dessa inibição do desenvolvimento, em um estágio mais infantil” que, por esse processo inibitório e fixado, me parece possível de ser qualificado também como débil.

Derivadas da fixação, essa debilidade, tanto quanto a loucura, me parecem ainda ressoar na concepção que Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 7, 8 e 9)[4] faz do inconsciente como o que, “em suma, fala-se… completamente sozinho [tout seul]… porque não se diz jamais senão uma única e mesma coisa”, e, na medida em “nós nos falamos completamente sozinhos, até que surja o que chamamos de eu, embora não seja garantido que ele não possa, estritamente falando, delirar”.  Porém, Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 7)[5] estabelece uma ressalva a esse solilóquio débil e delirante: é diferente quando, por uma espécie de furo nesse trajeto fechado, há abertura para se “dialogar com um psicanalista”. Afinal, um analista – diferente de quem se defende da impossibilidade de manter um discurso sem objeção e de quem se esforça para apresentar-se como um não-tolo – se vale de “um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é” (MILLER, 2016, p. 31).

O discurso analítico é capaz de impressar, apertar, fortemente tal real sem a ele, pela debilidade ou pela loucura, aderir, porque a psicanálise “é o que faz de verdade [fait vrai]”, operando com os semblantes, ou seja, com essa nova forma de apresentação lacaniana do imaginário, por “um golpe [coup] de sentido” (LACAN, 1976-1977/1977-1979, p. 18).[6] Nesse termo golpe destaco, no discurso analítico, tanto um uso do sentido de forma fugaz e instantânea, quanto  uma supressão mesma do sentido, ou seja, sua anulação, e, por isso, Lacan (1976-77/1977-1979, p. 18)[7] vai destacar homofonicamente o semblant com que um analista opera em sua abordagem do real como sens-blant, ou seja, sentido-branco (sens-blanc), ou, para ressoar melhor em português, como dar branco no sentido.

A escolha de uma análise é uma escolha diversa daquela da neurose porque, nesse novo trajeto que se abre para o estado de satisfação das pulsões, um analista vai “dirigir um delírio” de maneira que a debilidade desse delírio “ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 32). Com uma análise, a escolha de um neurótico poderá, enfim, conquistar a liberdade que ressoa na máxima poética de Píndaro, ou seja, frente à armadilha do destino, exaurindo a trama-tramoia do discurso Outro de modo a reduzi-lo “a seu real e liberá-lo do sentido” (MILLER, 2014, p. 31), promovendo um branco no sentido, conquista-se a liberdade, e não sem a presença ao mesmo tempo intrusa e parceira do sintoma, de tornar-se tal qual se é.

 

Referências:

BRIAN, M. Pindare et Parménide, poètes et penseurs: jeux des métaphores et effets pragmatiques. Dialogues d’histoire ancienne, v. 46, n. 2, 220, p. 75-104. Disponível em:

https://www.persee.fr/doc/dha_0755-7256_2020_num_46_2_4976

FREUD, S. O recalque. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 2004, p. 175-193. (Trabalho original publicado em 1915).

FREUD, S. A predisposição à neurose obsessiva. Contribuição ao problema da escolha da neurose. In: Obras Completas: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 10, 2010, p. 325-337. (Trabalho original publicado em 1913).

FREUD, S. Neurose e psicose. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 271-278 (Trabalho original publicado em 1924).

FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (Caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).

LACAN, J. Propos sur la causalité psychique. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 151-193 (Trabalho originalmente proferido em 1946).LACAN, J. Le seminaire. Livre XXIV: L’insu qui se sait d’une-bévue s’aille à mourre. Ornicar?, Paris, n. 12-13, 1977, p. 7-23; n. 14, p. 4-9, 1978; n. 17-18, 1979, p. 7-23. (Trabalho original proferido em 1976-1977).

MILLER, J. -A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 190-200.

MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 19-32.

NIETZSCHE, F. Ecce homo. Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. (Trabalho originalmente redigido em 1888).
PINDAR. Olympian odes. Pythian odes. Edited and translated by William H. Race. Cambrigde and London: Havard Unversity Press, 1997, p. 119-241 (Loeb Classic Library).

PÍNDARO. Odas y fragmentos. Introduciones, traducción y notas de Alfonso Ortega. Madrid: Gredos, 1984, p. 141-153.

PINDARE. Oeuvres complètes. Paris: Belles Lettres, 2023.

SAUVIGNAC, J.-P. Préface. In: PINDARE. Oeuvres complètes. Paris: Belles Lettres, 2023, p. 9-40.

Notas:

** No escrito de Lacan, a “fórmula antiga” é do poeta Píndaro, extraída do verso 72 da 2ª Pítica e aparece citada em grego. Entre colchetes, agreguei-lhe uma tradução possível, graças a uma correspondência por e-mail realizada com Teodoro Rennó Assunção que, como é sempre de seu feitio, não só acolheu meu pedido de esclarecimento, como me ofereceu uma possibilidade de tradução para o português e me passou vários textos que comentam e traduzem tal máxima desse poeta grego. Dentre esses textos, que sem dúvida evidenciam a complexidade e nuances dessa “fórmula antiga”, extraio três outras versões possíveis: Become such as you are (“Torna-te tal como és”, tradução de William H. Race, cf. Pindar, 1997, p. 239); Puisses-toi devenir tel que tu es (“Que possas tornar-te tal como és”, tradução de Brian, 2020, p. 99); !Hazte el que eres!  (“Assume tal qual és”, tradução de Alfonso Ortega, cf. Píndaro, 1984, p. 152). Também encontrei, em uma frase que se estende um pouco mais do que a recortada por Lacan, a seguinte tradução de Sauvignac, na célebre coleção de Les Belles Lettres (Pindare, 2023, p. 137): Sois tel que tu sais être (“Sejas tal qual sabes ser”). Nesta nota, gostaria de deixar registrado, também, minha gratidão ao Teodoro, sempre generoso e preciso.

*** Em Nietzsche (1888), a máxima de Píndaro sofre uma alteração e aparece, inclusive no subtítulo mesmo de seu livro, assim:  como alguém se torna o que é. Brian (2020, p. 96-100), em uma parte de seu texto, comenta o uso que Nietzsche, entre outros autores, faz dessa passagem desse poeta grego.

[1] Em Ecce homo (NIETZSCHE, 1888/1995, p. 48), a máxima apolínea é citada em sua tradução latina: nosce te ipsum.

[2] Lição do dia 11/01/1977.

[3] Lição de 19/04/1977.

[4] Lição de 11/01/1977.

[5] Lição de 10/01/1977.

[6] Lição de 10/05/1977.

[7] Lição de 10/05/1977.

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