De onde o analista não sai
Looping Texto
Tania Coelho dos Santos[1]
Membro da EBP, da ECF-Paris, da AMP
De onde o analista não sai
Tania Coelho dos Santos[1] (Membro da EBP, da ECF-Paris, da AMP)
Acredito que as análises podem terminar de muitas maneiras. Vou me restringir a pensar sobre os finais de análise a partir de um recorte específico desse campo, o da experiência de analistas. E, mais particularmente ainda, o recorte dos analistas de orientação lacaniana. Será que podemos abordar os finais de análise de não analistas com os mesmos pesos e medidas? Um analista de orientação lacaniana se analisa com as ferramentas de sua formação teórica e de sua experiência prática. A medida do sucesso de sua análise não é, via de regra, apenas a satisfação que por meio dela alcançou. Estar feliz ou não ter mais sede do inconsciente não costuma ser razão suficiente para separar-se do seu analista. A travessia do fantasma, a passagem à analista, a extração de um significante novo não impedem que os analistas continuem a frequentar o divã, seja o dos analistas com os quais finalizaram suas análises, seja o de outros. Para o constatarmos, basta observar que mesmo Analistas da Escola não abandonam o tratamento de seus restos sintomáticos após a nomeação como AE pelo dispositivo do passe.
Neuróticos, analistas e fim de análise
A próxima jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise foi muito feliz quando nos propôs pensar sobre “Onde estão os neuróticos e de onde eles não saem” nos dias de hoje. Deixo de lado os numerosos neuróticos que nos pedem para ajudá-los a realizar o imperativo de gozo contemporâneo. Esperam que a gente descubra alguma verdade traumática ou edipiana que os ajude a estar à altura da promessa de que nada é impossível. Conduzi-los a acolher o impossível em jogo no campo do gozo é uma missão politicamente contra cultural. Porém, nosso interesse recai sobre o porquê de analistas não deixarem o consultório do analista, essa espécie de quarto de dormir onde a relação sexual não acontece nunca, como sublinha o excelente relatório do cartel de A. L. Santiago (2024)[2]. Quanto ao neurótico, por que ele não sai da análise? A inibição em imaginar o real nos é apresentada como uma resposta finamente articulada neste relatório que examinou a paixão do neurótico pela falta à ser à luz de: “Da vontade de justificação à repetição de gozo”. Essa inibição explica porque o neurótico não sai da análise: evita confrontar-se à não relação sexual. Refugia-se lá onde ela é impossível por definição, o consultório do analista. Servindo-se do artigo de Miller (2016), esse relatório nos recorda que o a neurose impõe ao sujeito o dever de inventar sua razão de ser. Como levá-lo, então, a encarar “a falta de razão de ser” no real.
Um analista sabe que a única razão de ser é o gozo. No neurótico, entretanto, a imaginação narcísica do Eu está a serviço de fortalecê-lo mais ainda e não lhe abre as portas para um novo uso da imaginação de si. O imaginário narcísico do corpo manifesta-se no devaneio histérico, na ruminação obsessiva e nas manobras preventivas do fóbico para evitar o encontro com o outro sexo. A direção do tratamento consiste em mudar a relação com o gozo e incide sobre os dois eixos da evitação: o fantasma e a repetição. Essa mudança tem um parentesco com o sinthoma – que podemos definir como a redução do sintoma aos restos sintomáticos – núcleo de gozo onde se aloja o segredo da paixão do neurótico por justificar sua injustificável singularidade. Trata-se de fazer um novo uso do sinthoma, que é o resto da repetição de gozo. Seria essa mudança suficiente para desembaraçar o neurótico da vontade de justificação?
De acordo o relatório acima mencionado – e que nos é oferecido como um texto de orientação para a próxima jornada – a resposta é não, pois existiria uma inibição em abordar o real mais além do sentido. Esse excelente relatório também nos explica detalhadamente como podemos, observando o nó borromeano no sentido giratório, situar os obstáculos à prática do analista. Quando o vetor I (imaginário) se dirige ao S (simbólico) encontramos a imaginação do simbólico ou o fantasma. Esta via do significante, do campo da fala esbarra na infinitização da análise. O eixo [S-R], via do fantasma, conduz a um “eu sou isso”, pois esbarra no objeto a como semblante. Existiria, essa é a hipótese de Lacan em seu ultimíssimo ensino, uma hiância mais acentuada entre o real e o imaginário, eixo [R-I], responsável pela inibição. Diante da inexistência da relação sexual, a dificuldade do neurótico consiste em imaginar a distância entre a função do fantasma perverso (que sabe sobre o gozo) e sua função no sintoma neurótico (o que não quer saber nada). E para compreender bem isso, Miller (2016) nos oferece a metáfora do quarto de dormir. Todas as manobras defensivas neuróticas servem para evitar a inexistência da relação sexual, mas pode também acontecer que elas o levem a esse quarto de dormir onde não acontece nada: o consultório do analista.
Em que consistiria essa saída do impasse sexual por meio de uma imaginação do real? Certamente, sobretudo quanto aos analistas, seria preciso recolher nos testemunhos de passe evidências do atravessamento desse obstáculo. Assim, poderíamos aprender alguma coisa sobre esse novo final de análise que a imaginação do real permite fazer advir. Se entendi bem, esse passo se dá mais além da travessia do fantasma, da queda da suposição de saber, da disjunção entre $ e o objeto a, da passagem ao ato e até do advento de um significante novo ao final de uma análise.
Sobre a diferença entre rememoração e reminiscência
Lacan (1975-1976/2007, p. 127) distingue com precisão os sentimentos de realidade e de irrealidade e opõe os dois registros da rememoração e da reminiscência. O sentimento de realidade é a nossa definição mais restrita relativamente a uma lembrança esquecida que retorna e que, então, dizemos: “é assim, era assim”. O sentimento de realidade é percebido como tal, produz-se no interior do tecido simbólico e é do registro da rememoração. Podemos dizer que o inconsciente recalcado e seu retorno, a retroação significante, a história, o tempo, pertencem à rememoração. A ausência simbólica no real, o significante foracluído, sozinho, fora do tempo, corresponde ao campo da reminiscência.
A “imagem” em jogo na reminiscência é real? É dela que trata o relatório do cartel de A.L. Santiago (2024) e o artigo de J. Santiago (2024)? Explico. Há rememoração quando um elemento reencontra a sua articulação simbólica. No Seminário XXIII, Lacan (1975-1976/2007, p. 127) chama de reminiscência, com seu correlato sentimento de irrealidade, ao momento em que este sentimento responde a “formas imemoriais que aparecem no palimpsesto do imaginário”. Formas imemoriais estão num registro diferente daquele a que chamamos memória. É alguma coisa que está lá sozinha. As formas imemoriais aparecem fora do texto simbólico quando este se interrompe, e desnuda o suporte da reminiscência. O suporte da reminiscência é uma imagem, uma forma, que o sujeito não pode elaborar a partir da experiência.
Lacan esclarece que essa ideia de imagem no real baseia-se na análise da alucinação completada pela do acting-out. Lacan vê nesse fenômeno uma irrupção do real, pois se trata de uma relação foracluída ao objeto a. No acting-out existe apenas um deslocamento em relação à definição de alucinação. O sujeito ignora do que se trata nessa compulsão. O acting-out não tem a mesma dimensão da verdadeira alucinação. Pois é apenas um simulacro dela. Diz respeito à resistência que é interior à cadeia significante ao passo que a defesa diz respeito à orientação fundamental do sujeito em relação a um elemento não-significante. Não é a mesma coisa que uma passagem ao ato, isto é, uma foraclusão radical do real numa verdadeira alucinação.
Embora eu não tenha alcance clínico para justificar o que vou concluir, apoio-me no que pude compreender da topologia lacaniana: no caso do neurótico, a reminiscência é uma “imagem” de um objeto a foracluído no real. Como toda resistência provém do imaginário, podemos supor que é dessa “imagem” da qual ele se reminisce que provém a inibição que o impede de sair da análise. Nos testemunhos de passe já se observam exemplos de acting-outs, ao final de uma análise, em que essa imagem reminiscência pode se evidenciar?
Referências Bibliográficas
Lacan, J. (2007). O Seminário 23: o Sinthoma, Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1975-1976).
Miller, J. A. (2016) La passion du névrosé, in: La Cause du désir, volume/2, número 93, pags 112-122
Santiago, A.L. (2024) Da vontade de justificação à repetição de gozo, in: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/
Santiago, J. (2024) O imaginário na clínica do sinthoma in: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/o-imaginario-na-clinica-do-sinthoma/
Notas
[1] Texto produzido no âmbito do cartel constituído por Tania Coelho dos Santos (+1) Flávia Lana Oliveira, Fernanda Queiroz, Daniela Scarpa da Costa e Maria Cristina Antunes
[2] Relatório do cartel constituído por Ana Lydia Santiago (+1) Maria José Gontijo Salum, Ram Mandil, Fernanda Otoni, Graciela Bessa, Luciana S. Brandão e Maria de Fátima Ferreira.
A esfoliação do imaginário e o tempo
A esfoliação do imaginário e o tempo[1]
Laura Rubião ( EBP/AMP)
A esfoliação do imaginário e o tempo[1]
Laura Rubião ( EBP/AMP)
No último seminário preparatório à 27ª Jornada da Seção Minas, dedicado ao tema proposto pela comissão científica para o eixo 2: “A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário”, tivemos a oportunidade de fazer avançar o debate em torno desse significante novo – esfoliação – introduzido por Lacan no seminário 25.
Retomo aqui o contexto em que ele surge: “Para que o imaginário se esfolie, é suficiente reduzi-lo ao fantasma, o importante é que a própria ciência não passa de um fantasma e que a ideia de um despertar seja, propriamente, impensável”.[2] É curioso que esse movimento de esfoliação do imaginário – tributário da fase final do ensino de Lacan, na qual o imaginário se apresenta em sua estreita conexão ao real – diga respeito a uma redução ao fantasma e não a seu atravessamento.
Se o despertar para o real é impossível, a análise não deixa de se alimentar por um desejo de despertar, aponta Miller [3], acrescentando que esse desejo de promover o encontro com o real marca, inclusive, a orientação que um analista imprime a cada sessão de análise. Haveria uma conexão entre essa esfoliação do imaginário e o instante do despertar em análise? Sabemos que esse despertar apenas se realiza sob a forma de uma efração ou faísca, algo da ordem de uma irrupção do gozo que provoca um desarranjo na rotina do discurso. Poderia essa irrupção ser traduzida, nos termos do trabalho de investigação do ultimíssimo Lacan, como esse instante em que se torna possível imaginar o real? Essa experiência do clarão[4] pode se dar a cada sessão analítica, por meio, por exemplo, do efeito de corte de uma interpretação, tanto quanto deve depurar-se ao longo de toda uma análise como resíduo do encontro com o real, portador da marca singular do impossível. É preciso tempo para que algo se esfolie, lembrou-nos Bernardo Micherif, durante a última preparatória .
Anne Colombel-Plouzennec toma o fantasma no último ensino de Lacan a partir de uma dupla acepção do termo ‘aspiração’: no sentido de que se aspira a algo e enquanto passagem do ar pela estrutura do toro, que daria lugar a uma verificação do furo.[5] Penso ser esta uma maneira elegante de coordenar as duas concepções lacanianas sobre o fantasma – a tela que serve de proteção ao real e a janela que desenha uma borda sobre o real – como operações sincrônicas e coexistentes, engendradas de um só golpe na constituição do falasser. Desse modo, torna-se possível pensar a esfoliação do imaginário não apenas como produto do final de uma análise, mas como fruto de momentos fecundos do encontro com um analista. Em sua própria estruturação, o fantasma propaga o furo que ele próprio contorna e que, sobretudo sem a esfoliação, se escamoteia, aparece mais como tela do que como janela.
É o que sugere o relatório apresentado por Lilany Pacheco[6] ao afirmar que, para decidirmos hoje pelo diagnóstico da neurose, muitas vezes é preciso lançar mão dessa esfoliação para ter acesso à existência ou não de uma estrutura fantasmática que sirva de base ao arcabouço subjetivo da neurose.
Notas
[1] Texto elaborado a partir do trabalho desenvolvido pelo Cartel composto por: Jésus Santiago, Kátia Mariás, Laura Rubião, Lilany Pacheco (Mais um), Sérgio de Campos, Sérgio Mattos.
[2] LACAN, J. Le séminaire. Livre 25: Le moment de conclure. Lição do dia 15/09/77, inédito.
[3] MILLER, J.A. Despertar. In: Scilicet. O sonho, sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, p.18.
[4] Cf. LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. In: Curinga, n.50. Belo Horizonte, jul/dez 2020, p. 169-187.
[5] Plouzennnec, C.A. Le fantasme dans le tout dernier enseignement de Lacan. Disponível em Ironik,n. 60, na internet: https://www.lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2024/09/Ironik-60-Colombel-Plouzennec-DEF-DEF-1.pdf
[6] Pacheco, L. A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. Disponível na internet: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/textos-de-orientacao/
Uma Montanha Russa: visual, looping e furo
Looping Texto
Fernanda Costa[1]
O cartaz da 27ª Jornada da EBP-MG tem como imagem o detalhe do circuito de uma Montanha Russa. Ele nos remete a um aspecto estrutural das neuroses que se mantêm ainda nos dias de hoje: seus loopings. Laia (2024) em um dos “Textos de Orientação”, enfatiza como, atualmente, somos procurados pelos candidatos à analise menos por uma suposição de saber e mais “pelo incômodo diante do que lhe fixam em certos trajetos e satisfações dos quais não conseguem liberar-se” (p.6). Ou seja, não se trata de um endereçamento a partir do envelope simbólico do sintoma, que comporta um dizer. É, antes, uma demanda provocada pelos circuitos pulsionais, silenciosos e repetitivos.
Para Lacan (1998), o real, não pode ser dito e se caracteriza pelo que não cessa de não se escrever (p. 11). Miller (2014) considera que, diante desse impossível localizado pelo simbólico, Lacan, no seu ultimíssimo ensino, aposta em uma tentativa de imaginar o real. Busca assim, “um novo visual”: o “toro ou a câmera de ar” (p. 255- tradução livre).
Gontijo (2024), no “Argumento” da 27ª Jornada comenta que Lacan se vale do furo interno do toro para caracterizar o “andar em círculos” da neurose : “Lacan nos convida a localizar o que chamaríamos de looping neurótico … muitas vezes como um modo de se defender do real e não ultrapassar a hiância entre real e o imaginário”.
Mas por que abordar a neurose a partir do toro? Um dos aspectos que nos interessa é que o toro apresenta um visual que não se reduz a uma imagem. Tanto que, em topologia, podemos equivaler uma xícara a uma câmera de ar. Ambas têm a mesma estrutura:
Logo, quando Lacan se dirige ao real pela via do imaginário, não se vale de uma imagem por sua forma (como, por exemplo, é o caso da antecipação jubilatória da unidade corporal no estágio do espelho). Ele privilegia a consistência estruturada em torno de um furo (o que também permite um enfoque diferente quanto ao corpo e seu gozo, priorizando o que é opaco e não pode ser especularizado).
Qual orientação poderíamos extrair dessa abordagem do toro e a ênfase que ele parece conferir ao furo? Se o neurótico não pode sair do looping de sua própria neurose, não seria a partir deste circuito de satisfação pulsional que, através da análise, localizaríamos um real e enfrentaríamos sua hiância quanto ao imaginário? Mas como o analista produziria esse efeito? Ou, como propõe Micherif (2024), no que concerne “às neuroses, uma análise, ao franquear outro modo de satisfação com o sintoma, permitir-nos-ia sair dessa inibição [de imaginar o real]”? Isso significaria que os neuróticos poderiam deixar de dar voltas em torno de um furo, sairiam dos loopings? Ou será que encontrariam nesse circuito uma outra forma de satisfação?
Essas perguntas me surgiram a partir do impacto de ver pela primeira vez aquele cartaz. Ao observá-lo sob o efeito da apresentação do Argumento e Eixos da Atividade Preparatória, ficou explicito não apenas os loopings de uma Montanha Russa, mas que estes desenham um abismo. Ou seja, o trajeto fixado pelo emaranhado dos trilhos, com suas voltas, altos e baixos fazem aparecer o furo, o buraco, o abismo. Não poderia ter um visual mais instigante para essa Jornada!
Referências Bibliográficas
Gontijo, M. J. “Argumento” (2024) Em: www.jornadaebpmg.com.br/2024/argumento/
Lacan, J. “Rumo ao significante novo”. Em : Opção Lacaniana no.22 (1998), p. 6-15.
Laia, S. “A escolha da neurose e a escolha de uma análise” (2024) Em:www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-escolha-da-neurose-e-a-escolha-de-uma-analise/
Micherif, B. “Eixos” (2024) Em: www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/
Miller, J-A “Lo visual”. Em: El ‘ultimíssimo’ Lacan, Buenos Aires: Paidós, 2014, p247-260.
Notas
[1] Psicanalista, membro da EBP/ AMP
O quarto de dormir e o “não há relação sexual”
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Graciela Bessa[1]
No relatório sobre o Eixo 1: onde estão os neuróticos e de onde eles não saem, Ana Lydia Santiago conclui, com Lacan, considerando o quarto de dormir como um visual nas neuroses para captar o real da inexistência da relação sexual, da impossibilidade em encontrar uma proporção entre os sexos e, por essa razão, tudo que acontece com o neurótico se dá fora do quarto de dormir. Então, Lacan pergunta: “o que há nos quartos de dormir? uma vez que não há ato sexual” e, por esse motivo, “tudo que se passa de neurótico se passa essencialmente” fora desse quarto, por exemplo, no “banheiro”[2]. Essa proposta, ao assinalar como os neuróticos tomam distância do que se passa no quarto de dormir uma vez que na neurose opera o “não há relação sexual”, faz consonância com a nova definição da neurose do Seminário 25: Momento de concluir: “Não há nada mais difícil que imaginar o real (…) seguramente devido a isso que temos a inibição. É a hiância entre o Imaginário e o Real que constitui nossa inibição”[3].
“Não há relação sexual”, mas há sintoma, tomado sob a perspectiva do gozo. Com o sintoma, o neurótico faz sua parceria de gozo. Na teoria freudiana o sintoma é uma satisfação substitutiva, um Ersatz de satisfação. Embora Freud empregue a palavra Ersatz, não o faz com o sentido de que essa satisfação substitutiva teria um valor menor que a original. Não importa o envoltório formal do sintoma, a satisfação, o gozo é sempre o mesmo, “o gozo é o gozo, a pulsão não conhece o ‘semblante de gozar’. A satisfação pulsional é um real”[4].
Na Conferência XVII, Freud analisa o caso de uma jovem de 19 anos cujos sintomas obsessivos consistem em rituais que devem ser cumpridos antes de dormir. Por exemplo, para dormir necessitava de silêncio e devia abolir qualquer fonte de ruído, exigia que a porta entre seu quarto e o quarto de seus pais ficasse entreaberta, desse modo colocava inúmeros objetos no vão da porta que se tornavam fontes de ruídos perturbadores; também devia colocar os travesseiros em determinada posição etc. Com a execução desses rituais, ela atormentava seus pais, pois tudo tinha de ser verificado e repetido, de modo que isso durava muitas horas. Todo esse cerimonial inventado por ela “é a colocação em cena da não relação sexual, sustentada pelo vínculo libidinal com o pai”[5]. Portanto, considero que esse fragmento clínico extraído de Freud nos permite retomar a formulação lacaniana de que no quarto de dormir o ato sexual está foracluído e, assim, o sintoma serve de substituto de uma satisfação que não ocorreu.
[1] Psicanalista, membro EBP AMP
[2] LACAN, J. Le séminaire. Livre XIV: la logique du fantasme. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil et Champ Freudien, 2023, p. 423 (texto proferido originalmente em 1966-1967).
[3] Lacan, j. Momento de Concluir. Lição 09 de maio de 1978. Inédito
[4] Miller, J.-A. Seminário sobre las vías de formación de los sintomas. In: Introducción a la clínica lacaniana. Conferências en España. Barcelona: RBA Libros S.A. 2006, p. 474
[5] [5] Miller, J.-A. Seminário sobre las vías de formación de los sintomas. In: Introducción a la clínica lacaniana. Conferências en España. Barcelona: RBA Libros S.A. 2006, p. 466
Fantasma e neurose, hoje
Looping Texto
Paula Duarte Félix [1]
Na atualidade, é possível perceber que as neuroses ainda existem, mas elas nem sempre se apresentam na clínica como há algumas décadas. A partir dessa constatação, surge a pergunta: qual o estatuto do fantasma, hoje, em relação às neuroses que continuam a existir?
Patrício Alvarez Bayón (2019) aponta que, na prática analítica, é possível localizar as mutações do fantasma através de algumas rupturas. Há casos em que o fantasma não guia, não funciona como articulador entre desejo e gozo. Por exemplo, na passagem ao ato, o marco fantasmático se rompe e o sujeito atravessa o que se apresenta como tela, anteparo, caindo como objeto, resto. Também nas toxicomanias, temos a ruptura da articulação entre o fantasma e o falo. Por sua vez, no silêncio que marca certos atos violentos, verificamos que o fantasma não conseguiu produzir a distância necessária entre sujeito e objeto assim como, em muitas anorexias e bulimias, o objeto oral pode se apresentar desconectado do fantasma.
Nesse contexto, indagamos se, nos casos de sujeitos neuróticos esmagados pelo objeto a, tal como constatamos em vários sintomas que temos chamado de “contemporâneos”, não encontraríamos uma ilegibilidade que, conforme nos indica Naparstek (2018) em sua releitura de Miller (2018), torna muito mais difícil uma interpretação, uma elaboração e mesmo uma construção do fantasma. Será que, hoje em dia, o fantasma também tem a mesma dimensão axiomática, norteadora, de outrora? Ou será que o esmagamento pelo objeto a, detectável na ilegibilidade apresentada em muitos casos, perturba o funcionamento de certo modo de gozo que, ao longo de uma análise, encontrávamos no fantasma? Poderíamos, por fim, levantar mais uma questão a ser investigada: em nossa prática, hoje, haveria cada vez mais, nas neuroses, rupturas com a dimensão fantasmática?
Referências bibliográficas
BAÝON, Alvarez Patricio. 11 formas de estar loco. Cuando el fantasma no funciona. In: CAMALY, G.; GLAZE, A. (Orgs.). La locura de cada uno. Olivos: Grama Ediciones, 2019.
MILLER, J. A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Ciudad Autonóma de Buenos Aires: Paidós, 2018.
NAPARSTEK, Fabián. Vociferar: Joyce el sintoma – Sade el fantasma. In: El fantasma, aún. Olivos: Grama Ediciones, 2018.
Notas
[1] Psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos/UFMG, autora do livro Variantes da neurose tipo ou a defesa na atualidade da clínica psicanalítica. Belo Horizonte, Editora Scriptum, 2021.