A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário (Eixo 2)
Seminário preparatório
08.08.2024
EIXO 2:
jornadaebpmg_wf2qne
This is a custom heading element.
Cartel: Jésus Santiago, Kátia Mariás, Laura Rubião, Lilany Pacheco (mais-um), Sérgio de Campos, Sérgio de Mattos, Virgínia Carvalho
O tema deste segundo eixo da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) foi proposto a este Cartel a partir de uma citação de Jacques-Alain Miller, em El Ultimíssimo Lacan, derivada do Seminário 25, O momento de concluir: “Para que o imaginário se esfolie, basta reduzi-lo ao fantasma”.[1] Miller evoca que esfoliar uma planta é fazer cair suas folhas; em medicina, esfoliar implica a queda das partes necrosadas, como as unhas. Outro exemplo comum entre nós: um procedimento estético de retirada das células mortas da pele com finalidades diversas, dentre elas, aquele feito pelas noivas às vésperas do enlace conjugal.
Miller acrescentará que o Seminário O momento de concluir faz uma esfoliação do ensino de Lacan, seu desprendimento em partes, de modo a trazer proveito para o futuro. Nesse sentido, podemos dizer que tomamos a esfoliação como o método de escrita deste relatório. Ou seja, tomamos o ensino de Lacan em partes não necessariamente cronológicas, de modo a traçarmos uma trilha de pensamento que abra caminhos para as discussões que propomos para o segundo seminário preparatório da 27ª Jornada da EBP-MG, sobre o Eixo 2: “A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário”.
Recentemente, na “Liminar” que introduz a coletânea de textos de sua autoria sobre o passe, Miller declara que adiou por muito tempo abordar o último ensino de Lacan por prever os seus efeitos desestruturantes, uma vez que Lacan tomou para si o encargo de fazer viva voz às críticas que escutava sobre o que elaborava na psicanálise e, desse modo, ocupou todos os lugares, dizendo a um só tempo os prós e os contras. Será também Miller, mais uma vez, a dar conta daquilo que Lacan visava provocar: “engajar seus alunos a não se assentarem no saber adquirido, a se depreenderem de todo dogmatismo, a repensarem com novos custos a Coisa Freudiana, a ponto de reinventar a psicanálise, cada um de acordo com seus meios” [2]. Ele também conclui: “O último ensino de Lacan é feito para reavivar nos analistas, em sua prática, a paixão da ignorância, ou seja, o desejo de saber, um saber novo a ser elaborado.”[3]
A trilha deixada por Freud
Tomar o texto freudiano sobre o fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, foi uma resposta clínica de Lacan com o intuito de devolver à psicanálise sua lâmina cortante. Esperamos, então, as contribuições dos trabalhos a serem enviados para as simultâneas clínicas, nos quais se possa transmitir de que modo as neuroses se apresentam na prática analítica hoje, quais os impasses, quais as soluções e como foi operada, ou não, a construção do fantasma em cada caso único. Como escreveu Bernardo Micherif no argumento dedicado ao Eixo 2, agora mais desenvolvido neste relatório:
Freud se dedicou à elucidação do que se apresentava como cena fantasmática, uma história que compõe um cenário com suporte simbólico e representações imaginárias. Lacan, por sua vez, pôde destacar, na própria cena fantasmática, o que se configura como uma tela para o real, para o irrepresentável, um anteparo com o qual cada analisante tenta defender-se da incógnita relativa a seu próprio ser. [4]
Muito antes de escrever seu texto clássico dedicado ao fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, Freud se interessou em investigar como se constituía a maquinaria psíquica que engendrava, para o sujeito, o protótipo de suas primeiras lembranças infantis, qualificadas de “encobridoras”. Em uma de suas cartas a Fliess – a Carta 61 de 2 de maio de 1897 – ao anunciar-lhe que havia adquirido uma noção segura da estrutura da histeria, ele antecipa que tudo remonta a cenas do passado:
A algumas se pode chegar diretamente, e a outras, por meio de fantasmagorias que se erguem à frente delas. O fantasma provém de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas e todo o material delas é claro e verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles, e ao mesmo tempo servem de alívio pessoal.[5]
Em “Bate-se em uma criança”, Freud descreverá os tempos do fantasma.
A primeira fase desse fantasma pertence a um período mais remoto da infância, alguma coisa nela permanece indefinida como se não envolvesse quem o testemunha. A criança que apanha nunca é aquela que evoca tal fantasma. Quase sempre um irmãozinho ou uma irmãzinha, quando houver algum. Não fica claro no início quem é a pessoa que bate, só se pode comprovar que não é outra criança que bate, e sim um adulto. Essa pessoa que bate mais tarde será reconhecida de maneira inequívoca como sendo o pai. A primeira fase do fantasma pode ser enunciada como “o meu pai está batendo na criança”. Há também a variação: “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, introduzida por Freud como algo que denunciaria grande parte do conteúdo a ser ainda apresentado[6].
Freud acrescenta que entre a primeira e a segunda fase do fantasma acontecem transformações. A pessoa que bate continua sendo o pai, mas a criança que apanha passa a ser a própria criança que produz a fantasia. “Eu estou sendo surrada pelo meu pai”. Para Freud, a segunda fase é a mais importante e significativa, pois nunca teve uma existência real, nunca é lembrada. Ela é uma construção da análise e nem por isso é menos necessária. Essa fase altamente prazerosa tem um caráter indiscutivelmente masoquista.[7] Sua importância será especialmente destacada por Lacan, no Seminário 17: o “você me espanca” aponta que o sujeito é dividido não apenas pelo significante, mas também pelo gozo. Trata-se daquela “metade do sujeito cuja fórmula tem sua ligação com o gozo. Ele recebe, claro, sua mensagem invertida – aqui, isto quer dizer seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro.”[8]
A terceira fase, por sua vez, assemelha-se à primeira. Ela soa conforme a primeira enunciação. A pessoa que bate nunca é o pai: ou ela mesma permanece indefinida, como na primeira fase, ou é substituída. A própria pessoa da criança que é tomada pelo fantasma não aparece mais no contexto da surra. Ao ser interrogada, a resposta é de que “provavelmente estou olhando”, ou de há muitas crianças apanhando, assim como pode haver diversificação das punições, dos castigos e das humilhações. Freud também destaca que o fantasma “Bate-se numa criança” comporta uma intensa excitação sexual, derivada de satisfação masturbatória dotada de matizes masoquistas e sádicos. Derivadas de exigências superegóicas remanescentes das primeiras experiências sexuais infantis.
Destacamos que o título do texto de Freud é “Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais”. Havia, para ele, naquele momento, a necessidade de situar uma sexualidade anterior ao recalque, enfatizar a função estruturante do Édipo e demonstrar as diferenças entra a neurose e a perversão. Diferentemente de Lacan, que toma essa discussão em uma vertente transclínica para destacar o traço de perversão no fantasma dos neuróticos e as suas articulações com o supereu, tal como ele faz no escrito “Kant com Sade”.
Freud formula que, da noção de sexualização do processo do recalcamento, no exemplo do fantasma da surra “bate-se numa criança”, depreende-se uma posição feminina.[9] Lembremos também que esse texto sobre o fantasma pode ser cotejado com o texto de 1924, “O problema econômico do masoquismo”,[10] no qual Freud abordará o masoquismo feminino. Por isso, Lacan vai poder sustentar que o correlativo do recalque não é a repartição entre os sexos, mas a orientação do gozo pelo objeto a face ao gozo feminino.
Isso não é pouco! O leitor do Seminário 14, A lógica do fantasma, certamente se dá conta do enorme número de perguntas que Lacan se faz em sua interlocução constante com os pressupostos freudianos: o falo, o Édipo e a repartição sexual. Ele busca logicizar esses termos a partir do objeto a e sua condição incomensurável. Poderá afirmar, então, a natureza heterógena do fantasma e os impasses do ato sexual determinantes da proposição “não há ato sexual”. Depreende-se daí, também, a problemática do gozo destacada, no Seminário 14, como gozo do corpo.
Por que evocar a perversão nessa abordagem do fantasma? Essa é a pergunta de Éric Laurent[11] em seu comentário sobre A lógica do fantasma. Evocar a perversão responde à ênfase dada por Lacan ao fato de que o gozo em sua relação com o corpo só é abordável através da experiência perversa. Se o desejo é situável a partir da neurose, da insatisfação, do impossível, o fantasma, em contrapartida, tem dificuldade em se alojar na economia da neurose e, assim, o lugar de exceção do fantasma dá a ele um lugar axiomático para a dedução dos discursos inconscientes.
O lugar do fantasma na experiência analítica
A apresentação do fantasma “bate-se numa criança” se faz presente com surpreendente frequência entre pessoas que procuram o tratamento analítico por causa de uma histeria ou de uma neurose obsessiva. A admissão desse fantasma se dá com hesitação, a lembrança de seu primeiro aparecimento é incerta, uma inequívoca resistência se opõe à sua abordagem pelo tratamento analítico, vergonha e sentimento de culpa são despertados e uma atividade masturbatória, inicialmente voluntária, mas que posteriormente ganha caráter compulsivo, é revelada.[12] O anúncio da cena fantasmática, como uma frase, será acompanhado de um “não sei mais nada sobre isso”.
Se, do lado do sintoma, o sujeito sempre apresenta um saber a mais, do lado do fantasma, aparece o “não sei mais…”, “era só isso que eu tinha para dizer hoje”, convertendo-se até nas sessões mais curtas que acontecerá em uma análise, tal como testemunhei recentemente na sessão de uma mulher que olhava compulsivamente as redes sociais de seu namorado para constatar, sempre uma vez mais, que ele curtia e comentava fotos de outras mulheres para, mais uma vez, fazer existir a relação sexual nas brigas provocadas por ela ao acusá-lo dessa prática. A análise a levou ao consentimento em ceder do olhar, uma vez que, quando ela olhava, quem gozava de ver outras mulheres era ela própria. Deslocada desse gozo escópico, adveio uma lembrança: certa vez, uma tia contou que, por ocasião de seu nascimento, ela era um bebê franzino e feio e que, ao vê-la, sua mãe havia dito que aquela não era sua filha, que esta havia sido trocada no berçário. A lembrança desse relato da tia permitiu à analisante formular a frase de seu fantasma: “eu tenho medo de ser trocada”. Dito isso, ela se levanta do divã e anuncia: “para hoje, é só isso, não sei mais nada…”.
A ênfase dada pelo último ensino de Lacan à clínica do sinthoma e aos restos sintomáticos na solução do falasser para o fim de uma análise não dispensa a verificação, em nossa experiência, das duas dimensões clínicas, o sintoma e o fantasma, inclusive na entrada da análise. Assim, verificamos, muitas vezes, o modo como um sujeito esboça já nas primeiras sessões de uma análise a construção incipiente de seu fantasma, seja nas tentativas de recuperar um lugar falicizado junto à mãe, seja no modo como se faz presente e relança o véu sobre o objeto agalmatizado que ele gostaria de ter sido aos olhos dela. A construção do fantasma, numa análise que se inicia, faz ainda cintilar o brilho fálico na demanda dirigida ao Outro materno, pautada na exigência do supereu que obstaculiza a engrenagem do desejo. O caminho da esfoliação do imaginário implica ainda, no início de uma análise, o consentimento com a existência de um furo incontornável do lado do Outro para tangenciar algo do real.
Por sua vez, no contexto de uma análise que dura, de uma análise que é levada adiante, verificamos que a frase do fantasma, ao ser isolada em análise, faz com que o “sei mais” da repetição do sintoma dê lugar ao “não sei mais” do fantasma, relançando o sujeito ao seu desaparecimento no momento mesmo em que se constituiu como objeto, tal como descrevemos aqui anteriormente. Nessa direção, tem lugar a esfoliação do imaginário e o corte operado de modo que o gozo do corpo dê lugar à frase do fantasma, conforme discutiremos a seguir.
A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário
No Curso de Orientação Lacaniana de 2011, Miller[13] colocará em destaque duas expressões aparentemente distintas de Lacan sobre o fantasma. A primeira delas é “o fantasma é o que faz tela diante do real”; na segunda, o fantasma não é apenas tela para o real, mas é também, ao mesmo tempo, “janela sobre o real”. O fantasma é, portanto, conjunção e disjunção com o real, nesse movimento de abertura e fechamento, para o sujeito, do acesso ao real. O fantasma é uma função do real, uma função subjetivada, singularizada, do real. Ele é o real para cada um.
A suposição de que uma travessia da tela do fantasma implicaria ter acesso ao real, ter um “acordo” com o real, o que não era viável para o sujeito até então. Essa tela opacifica o “quem sou eu” para o sujeito, o que o levaria a sustentar-se como uma incógnita. Ou seja, o fantasma faz tela não apenas para o real, mas também para o ser do sujeito, e, pode-se dizer, que o que precipita um sujeito para a análise é uma busca de saber sobre seu ser. Nesse contexto, uma análise se define menos como cura, ou formação, e mais como revelação ontológica.
Para Lacan, o que estaria em questão no atravessamento do fantasma, travessia por um longo tempo foi tomada como critério para o fim de uma análise, refere-se a seu saldo epistêmico. Seja pela inquietação diante do emborcamento do lugar fixo do sujeito frente ao real oferecido pelo fantasma, seja pela deflação do desejo e pelo des-ser, acontece um desinvestimento libidinal diante do qual é dissipada a significação que envelopava o que o sujeito se apropriava como “seu gozo”. Por fim, o efeito de desatar o laço com o analista enquanto sujeito suposto saber dá lugar ao desejo de saber, que antes era aplastado pela ignorância proporcionada pelo fantasma, como já explicitado anteriormente. Desse modo, haveria final de análise quando o desejo se tornasse saber.
Entretanto, Lacan constatou, a partir de um longo tempo de experiência e por ter inventado o passe, que haveria um mais além da conversão do desejo em saber, um mais além que não é modificado pelo atravessamento do fantasma. Trata-se do ser de gozo, destacado com o nome de sinthoma e que, segundo Miller, não se deixa transformar em saber. Os impasses sobre as relações entre o gozo e o sentido, disso que não se atravessa, nos deixa às voltas com o que já discutimos nas preparações anteriores sobre a hiância entre o imaginário e o real e o que não muda – a satisfação pulsional, ou seja, o gozo.
3.1) O gozo do corpo
Como aludimos anteriormente, a fórmula do fantasma $ à a inclui elementos heterogêneos, o sujeito barrado que é efeito do significante e o objeto a oriundo do corpo, concentrando o mais intenso do gozo.
Na lição de 31 de maio de 1967 do Seminário A lógica do fantasma,[14] face aos impasses para formalizar a trama da sexuação, Lacan irá interrogar: só há gozo do corpo? Sua resposta procura afirmar que o efeito da introdução do sujeito, sendo ele próprio um efeito de significância, implica em colocar o gozo e o corpo na relação que definida como sendo a de alienação. Nesse contexto, Lacan também se pergunta sobre o fundamento primeiro da subjetividade do corpo. O sujeito se funda de uma marca no corpo que o privilegia e faz com que essa marca domine tudo o que importará para esse corpo. E o gozo, onde é que ele fica nisso tudo? Ele é o que cai na dependência dessa subjetivação do corpo. É o que também se apaga na renúncia ao gozo e, assim, o corpo se torna outro, um corpo estranho que não encontra abrigo nem na imagem de si referente ao próprio eu, nem no que se localizou como o objeto do fantasma.[15]
Corpo e gozo são dois termos que só subsistem um pelo outro. Se sua separação for por onde se introduz o sujeito como efeito de sua significância, então, como analistas, temos que nos perguntar como o gozo é manejável a partir do sujeito. Para Lacan, no Seminário 14, a resposta nos é dada pelo que a análise descobre como aproximação da relação do sujeito com o gozo no âmbito do ato sexual. O gozo sexual nada tem a ver com a escolha conjugal e, a despeito da esfoliação para o momento de contrair núpcias, todos os inconvenientes estão ligados ao fato de que há um furo aí. O ato sexual interessa a nós psicanalistas apenas nesse nível no qual o gozo está em questão. O gozo é aquilo em que o princípio do prazer marca seus traços e seus limites. É algo substancial, importante de se localizar sob a forma do que Lacan articulou com o nome de um novo princípio: “só há gozo do corpo”. “Só há gozo do corpo” é o princípio que responde à exigência da verdade que habita o freudismo.[16]
3.2) A esfoliação do imaginário
Éric Laurent, em sua apresentação do Seminário 14, chama a atenção para o que Miller escreve na contracapa desse livro: “Temos a surpresa de ver o grande Outro, lugar da fala, novamente definido como ‘o corpo’, lugar primordial da escrita”.[17] Para Laurent, essa báscula só é possível com a condição de definir a escrita como escrita lógica, no sentido de Lacan, aquela que faz furos no tecido subjetivo. Os orifícios erógenos que Freud, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, havia situado como orifícios pulsionais são retomados pela inscrição do corpo como inscrição do furo. Nesse sentido, o orifício pulsional e o furo da letra se juntam. O destino pulsional da sublimação vem ao encontro da letra de gozo em torno da qual gira o funcionamento perverso do fantasma.[18]
Com essa proposição de Laurent, conjugando Miller e Lacan, somos levados ao ultimíssimo ensino de Lacan, cujo centro é o furo e, dentre outras consequências, destacaremos aqui a passagem da lógica matemática à lógica de borracha, das cordas que atam os nós, ao pneu, à câmara de ar, ao toro. Como destacou Miller,[19] no seu ultimíssimo ensino, Lacan elege um novo visual como acesso privilegiado ao real.
Toro → Real
Lacan passa a manipular os toros, que se prestam a serem torcidos e retorcidos de mil maneiras. Com os toros, trata de colocar em evidência modificações de estrutura em função dos cortes praticados aqui e ali, e tudo isso constitui uma unidade que não é mais significante, mas da ordem da imagem. Uma imagem pode validar um real, desde que se enfrente esse fato clínico que domina o ultimíssimo ensino de Lacan: a inibição para imaginar. Miller frisa que a inibição é um assunto de imagens, o que o faz ressaltar uma hiância entre o imaginário e o real, a perspectiva de se recorrer ao imaginário para se fazer uma ideia do real,[20] mas não nos dedicaremos a isso aqui, pois foi o tema da preparação para o Eixo 1 desta 27ª Jornada.[21]
Nesse sentido, fica evidente que o simbólico não tem mais a proeminência de antes, de que o simbólico passa a ter que prosseguir no imaginário, fazendo Lacan colocar em continuidade o sonho, a poesia, a filosofia, o fantasma e o delírio[22] Ainda com Miller, verificamos como certeza antecipada desse momento de concluir de Lacan a primazia do corpo e daí a nossa hipótese de que esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes frente ao que retorna como tangenciável ao gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real e não mais a tela de proteção.
A lógica de borracha e a psicanálise hoje
Mesmo com o enfoque dado por nós psicanalistas à clínica do sinthoma, com o atendimento às urgências de nossa prática no contexto contemporâneo face ao esmaecimento do simbólico e suas consequências como recrudescimento do supereu, constatamos, com as discussões propostas para a nossa próxima Jornada, que o tema do fantasma não foi abandonado por Lacan em seu último ensino. Verificamos seu deslocamento da lógica fálica (vigente até o Seminário 20, Mais ainda) para a “lógica de borracha”, assim denominada por Miller para se haver com o que Lacan faz com o toro para pensar o real.
Em um texto inédito, Anne Colombel-Plouzennec[23] nos apresenta uma excelente formalização do tema do fantasma no ultimíssimo ensino de Lacan e nos brinda com o que ela demonstra ser a vantagem da transição das rodinhas de barbante para o toro. Há essa vantagem porque o tor, por sua estrutura elástica, permite que ele sofra cortes sem se desfazer : “para que haja fantasma, é preciso que haja toro”[24], e como acrescenta Miller, o ato maior do ultimíssimo ensino de Lacan é o ato de cortar[25].
Chama-nos atenção uma negação que Anne Colombel-Plouzennec faz e que nos serve como uma orientação. Segundo ela, a passagem das rodinhas de barbante ao toro não se deu para ressaltar “o inchaço do imaginário”, mas para destacar “o teor real do corpo que goza da existência do furo”[26]. Assim, o imaginário é colocado em evidência para apontar para o real do corpo, detalhe que nos interessa: trata-se de operar com a manifestação do imaginário do corpo na clínica da neurose, inclusive porque verificamos hoje que, em muitos casos, a presença excessiva do gozo do corpo e das imagens trazem dificuldades na decisão pela neurose. Em outros termos, temos o corpo em evidência nas crises de pânico, automutilações, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, adições, hiperatividade, etc e trata-se, portanto, nesses casos, em um primeiro tempo do tratamento, de promover um esvaziamento desse imaginário inflado, de dialetizar a exigência do supereu que comanda o gozo do corpo, de esfoliar o imaginário, a fim de verificarmos se encontramos, ou não, o suporte do fantasma para esses sujeitos, permitindo-nos então localizar, respectivamente, a neurose (pelo recurso ao fantasma) ou a psicose (pela labilidade desse recurso).
Notas do autor:
[1] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. p. 275-276.
[2] MILLER, J.-A. Como terminam as análises: paradoxos do passe. Tradução de Vera Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. p. 22-23.
[3] Idem, p. 22-23.
[4] MICHERIF, B. Eixos de trabalho: Eixo 2 – A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/. Acesso em: 01 jul. 2024.
[5] FREUD, S. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Trabalho original publicado em 1950 [1892-1899]). p. 240 (tradução modificada para manter a referência comum ao termo “fantasma”.
[6] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.130
[7] Ibidem, p.131.
[8] LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992. p. 62.
[9] Ibidem, p. 150.
[10] FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 287-304. (Trabalho original publicado em 1924).
[11] LAURENT, É. Apresentação do Seminário de Lacan “A lógica do fantasma”. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023. p. 71.
[12] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.12
[13] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 02 de fevereiro de 2011. 2011. (Trabalho inédito). Ver, também: SILVA, V. C. C. da. A lógica do fantasma e mais além. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2020.
[14] LACAN. J. A lógica do fantasma (trechos). Opção Lacaniana, n. 58, 2010. p. 29.
[15] MICHERIF, 2024.
[16] LACAN, 2010, p. 29-30.
[17] MILLER, J.-A. apud LAURENT, 2023. p. 71.
[18] LAURENT, 2023.
[19] MILLER, 2012, p. 256-257.
[20] MILLER, 2012, p. 258.
[21] SANTIAGO, A. L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. 2024. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/. Acesso em: 01 jul. 2024.
[22] MILLER, 2012, p. 259.
[23] Texto inédito que aparecerá no número 60 da Ironik!, a ser publicada em setembro de 2024: https://www.lacan-universite.fr
[24] LACAN, J. Le séminaire, livre 25: Le moment de conclure. Paris, 1977-78. (Trabalho inédito). Lição de 20 de dezembro de 1977.
[25] MILLER, 2012.
[26] COLOMBEL-PLOUZENNEC (2004).
Uma Montanha Russa: visual, looping e furo
jornadaebpmg_wf2qne
Fernanda Costa[1]
O cartaz da 27ª Jornada da EBP-MG tem como imagem o detalhe do circuito de uma Montanha Russa. Ele nos remete a um aspecto estrutural das neuroses que se mantêm ainda nos dias de hoje: seus loopings. Laia (2024) em um dos “Textos de Orientação”, enfatiza como, atualmente, somos procurados pelos candidatos à analise menos por uma suposição de saber e mais “pelo incômodo diante do que lhe fixam em certos trajetos e satisfações dos quais não conseguem liberar-se” (p.6). Ou seja, não se trata de um endereçamento a partir do envelope simbólico do sintoma, que comporta um dizer. É, antes, uma demanda provocada pelos circuitos pulsionais, silenciosos e repetitivos.
Para Lacan (1998), o real, não pode ser dito e se caracteriza pelo que não cessa de não se escrever (p. 11). Miller (2014) considera que, diante desse impossível localizado pelo simbólico, Lacan, no seu ultimíssimo ensino, aposta em uma tentativa de imaginar o real. Busca assim, “um novo visual”: o “toro ou a câmera de ar” (p. 255- tradução livre).
Gontijo (2024), no “Argumento” da 27ª Jornada comenta que Lacan se vale do furo interno do toro para caracterizar o “andar em círculos” da neurose : “Lacan nos convida a localizar o que chamaríamos de looping neurótico … muitas vezes como um modo de se defender do real e não ultrapassar a hiância entre real e o imaginário”.
Mas por que abordar a neurose a partir do toro? Um dos aspectos que nos interessa é que o toro apresenta um visual que não se reduz a uma imagem. Tanto que, em topologia, podemos equivaler uma xícara a uma câmera de ar. Ambas têm a mesma estrutura:
Logo, quando Lacan se dirige ao real pela via do imaginário, não se vale de uma imagem por sua forma (como, por exemplo, é o caso da antecipação jubilatória da unidade corporal no estágio do espelho). Ele privilegia a consistência estruturada em torno de um furo (o que também permite um enfoque diferente quanto ao corpo e seu gozo, priorizando o que é opaco e não pode ser especularizado).
Qual orientação poderíamos extrair dessa abordagem do toro e a ênfase que ele parece conferir ao furo? Se o neurótico não pode sair do looping de sua própria neurose, não seria a partir deste circuito de satisfação pulsional que, através da análise, localizaríamos um real e enfrentaríamos sua hiância quanto ao imaginário? Mas como o analista produziria esse efeito? Ou, como propõe Micherif (2024), no que concerne “às neuroses, uma análise, ao franquear outro modo de satisfação com o sintoma, permitir-nos-ia sair dessa inibição [de imaginar o real]”? Isso significaria que os neuróticos poderiam deixar de dar voltas em torno de um furo, sairiam dos loopings? Ou será que encontrariam nesse circuito uma outra forma de satisfação?
Essas perguntas me surgiram a partir do impacto de ver pela primeira vez aquele cartaz. Ao observá-lo sob o efeito da apresentação do Argumento e Eixos da Atividade Preparatória, ficou explicito não apenas os loopings de uma Montanha Russa, mas que estes desenham um abismo. Ou seja, o trajeto fixado pelo emaranhado dos trilhos, com suas voltas, altos e baixos fazem aparecer o furo, o buraco, o abismo. Não poderia ter um visual mais instigante para essa Jornada!
Referências Bibliográficas
Gontijo, M. J. “Argumento” (2024) Em: www.jornadaebpmg.com.br/2024/argumento/
Lacan, J. “Rumo ao significante novo”. Em : Opção Lacaniana no.22 (1998), p. 6-15.
Laia, S. “A escolha da neurose e a escolha de uma análise” (2024) Em:www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-escolha-da-neurose-e-a-escolha-de-uma-analise/
Micherif, B. “Eixos” (2024) Em: www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/
Miller, J-A “Lo visual”. Em: El ‘ultimíssimo’ Lacan, Buenos Aires: Paidós, 2014, p247-260.
Notas
[1] Psicanalista, membro da EBP/ AMP
O quarto de dormir e o “não há relação sexual”
jornadaebpmg_wf2qne
Graciela Bessa[1]
No relatório sobre o Eixo 1: onde estão os neuróticos e de onde eles não saem, Ana Lydia Santiago conclui, com Lacan, considerando o quarto de dormir como um visual nas neuroses para captar o real da inexistência da relação sexual, da impossibilidade em encontrar uma proporção entre os sexos e, por essa razão, tudo que acontece com o neurótico se dá fora do quarto de dormir. Então, Lacan pergunta: “o que há nos quartos de dormir? uma vez que não há ato sexual” e, por esse motivo, “tudo que se passa de neurótico se passa essencialmente” fora desse quarto, por exemplo, no “banheiro”[2]. Essa proposta, ao assinalar como os neuróticos tomam distância do que se passa no quarto de dormir uma vez que na neurose opera o “não há relação sexual”, faz consonância com a nova definição da neurose do Seminário 25: Momento de concluir: “Não há nada mais difícil que imaginar o real (…) seguramente devido a isso que temos a inibição. É a hiância entre o Imaginário e o Real que constitui nossa inibição”[3].
“Não há relação sexual”, mas há sintoma, tomado sob a perspectiva do gozo. Com o sintoma, o neurótico faz sua parceria de gozo. Na teoria freudiana o sintoma é uma satisfação substitutiva, um Ersatz de satisfação. Embora Freud empregue a palavra Ersatz, não o faz com o sentido de que essa satisfação substitutiva teria um valor menor que a original. Não importa o envoltório formal do sintoma, a satisfação, o gozo é sempre o mesmo, “o gozo é o gozo, a pulsão não conhece o ‘semblante de gozar’. A satisfação pulsional é um real”[4].
Na Conferência XVII, Freud analisa o caso de uma jovem de 19 anos cujos sintomas obsessivos consistem em rituais que devem ser cumpridos antes de dormir. Por exemplo, para dormir necessitava de silêncio e devia abolir qualquer fonte de ruído, exigia que a porta entre seu quarto e o quarto de seus pais ficasse entreaberta, desse modo colocava inúmeros objetos no vão da porta que se tornavam fontes de ruídos perturbadores; também devia colocar os travesseiros em determinada posição etc. Com a execução desses rituais, ela atormentava seus pais, pois tudo tinha de ser verificado e repetido, de modo que isso durava muitas horas. Todo esse cerimonial inventado por ela “é a colocação em cena da não relação sexual, sustentada pelo vínculo libidinal com o pai”[5]. Portanto, considero que esse fragmento clínico extraído de Freud nos permite retomar a formulação lacaniana de que no quarto de dormir o ato sexual está foracluído e, assim, o sintoma serve de substituto de uma satisfação que não ocorreu.
[1] Psicanalista, membro EBP AMP
[2] LACAN, J. Le séminaire. Livre XIV: la logique du fantasme. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil et Champ Freudien, 2023, p. 423 (texto proferido originalmente em 1966-1967).
[3] Lacan, j. Momento de Concluir. Lição 09 de maio de 1978. Inédito
[4] Miller, J.-A. Seminário sobre las vías de formación de los sintomas. In: Introducción a la clínica lacaniana. Conferências en España. Barcelona: RBA Libros S.A. 2006, p. 474
[5] [5] Miller, J.-A. Seminário sobre las vías de formación de los sintomas. In: Introducción a la clínica lacaniana. Conferências en España. Barcelona: RBA Libros S.A. 2006, p. 466
O que está em jogo, hoje, na repetição neurótica do gozo?
Seminário preparatório
13.06.2024
EIXO 1:
Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem ?
jornadaebpmg_wf2qne
Comentário a partir do texto de Ana Lydia Santiago sobre o Eixo 1 da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG)
This is a custom heading element.
Gostaria inicialmente de agradecer pelo convite que me foi feito pelos Coordenadores da 27ª Jornada da EBP-MG, Maria José Gontijo Salum e Bernardo Micherif, para estar aqui hoje, juntamente com Ana Lydia Santiago, a fim de tentarmos lançar mais luzes sobre o tema da Jornada.
Ao final do texto de Jacques Alain Miller “Efeito do retorno à psicose ordinária”[1], que já se tornou um pequeno clássico para nós, na seção dedicada às perguntas ao público, Miller falará do Nome-do-Pai como um sol: “Na neurose o Nome-do-Pai está em seu lugar. O Nome-do-Pai tem seu lugar ao sol e o sol é uma representação do Nome-do-Pai”[2]. Ainda que afirmando esse aspecto luminoso do Nome-do-Pai, o que, parece-me, podemos tomar como uma bela metáfora não só do Freud, mas também do Lacan tocado e situando a psicanálise no “debate das luzes”[3], será o próprio Miller, em tal texto, que nos indicará, parece-me, perspectivas mais sombrias. Porque a pergunta que acredito podermos depreender dali, mesmo que Miller não a tenha formulado explicitamente é: será que a luminosidade característica da forte incidência do simbólico sobre o imaginário já não estava, naquele momento, em questão? Afinal, o diagnóstico estrutural neurose-psicose, com a nitidez possível numa clínica estrutural iluminada pela demarcação propiciada pelo Nome-do-Pai em posição solar se mostrava, naquele momento, mais difícil de ser feito, levando Miller a formular a noção de “psicose ordinária”. Ou seja, as elaborações desenvolvidas então por Miller sobre a psicose ordinária já não nos colocariam uma questão sobre as neuroses e sua demarcação nítida a partir da localização simbólico-solar do Nome-do-Pai?
Parece que a partir daí podemos nos aproximar de nosso tema: na lição XIV de O ultimíssimo Lacan, Miller recorrerá a outra metáfora, mas agora bem mais tênue, na medida em que sua própria força de substituição e recalcamento estará amortecida, e que será a da obscuridade. No ultimíssimo Lacan, a partir do Seminário 24, L’insu que sait de l’une-bévue…, segundo Miller, “toda a psicanálise ocorre na obscuridade […]”[4]. Pois se tratará de avançar então entre saberes, mas saberes que não falam, saberes mudos, uma vez que são saberes no real. Se, no simbólico, tais saberes serão sempre mentirosos, eles, no real, serão mudos.
Também toda a topologia dos nós convocada um pouco antes por Lacan tentará se movimentar na obscuridade. Daí a pergunta de Lacan, reproduzida por Miller: “como reconhecer um nó borromeano na obscuridade?”[5]. Pergunta, parece-me, que poderíamos refazer, seguindo esse cotejamento com o tema de hoje: como fazer, na obscuridade, um diagnóstico, seja ele de psicose seja de neurose?
Essa dificuldade com a questão diagnóstica que aparece aqui ligada àquela enfrentada por Lacan, a partir de seu último ensino, de como abordar o real sem ser pela via mentirosa do simbólico coloca novamente o imaginário em cena. Ora, se o imaginário do estágio do espelho, que Miller chamará de “imaginário florido” (quer dizer, marcado por excessos e sinuosidades que, menos que esclarecerem, confundirão) exige recurso ao simbólico para avançar, é com o recurso aos nós que um imaginário “esvaziado” aparece. Esvaziado, já que na perspectiva da mostração, própria a tal recurso, evidencia-se o quanto um caráter metafórico não estará mais num primeiro plano. Será daí que certo tropismo de Lacan em direção ao imaginário deverá ser entendido. Não evidentemente o imaginário florido do estágio do espelho, mas esse imaginário magro e esvaziado que será o próprio corpo tomado, aqui, como a figura topológica do toro. O corpo humano concebido como um toro, com um vazio central e o vazio em torno do qual esse vazio central se destaca, parece ter sido o grande recurso lacaniano nessa reta final de seu ensino.
Aqui, o visual e o imaginário da figura topológica, desenhada por Lacan, indicarão esse tropismo ao imaginário que convocará o real. O recurso de aproximar a psicanálise da magia, evocado no ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller[6], parece-me poder ser esclarecido justamente a partir da hiância intransponível entre a Coisa, esse nome do real lacaniano, e o saber nele inscrito, não acessível ao simbólico.
Essa impossibilidade de fazer a Coisa falar, se levarmos em conta tal referência,em sua conjunção com o que chamaremos também de sinthoma (pois este apontará justamente para algo de um saber inscrito no real), indicará, segundo Miller, a importância que o último escrito de Lacan nos Escritos adquirirá, a saber, “A ciência e a verdade”. Se o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência (sem implicar que a psicanálise deva ser tomada como tal, para apenas aludirmos a um debate presente atualmente entre nós), o falasser, por ser uma categoria que inclui o corpo, forma parte da natureza, quer dizer, da Coisa. Então, o paradigma da magia faria falar a natureza que não fala, exigindo a estafa do xamã, seu suar a camisa por ser, ele também, tanto natureza quanto cultura. A chamada imaginarização do real que tomará o corpo, mas o corpo do falasser, ganhará daqui elementos fundamentais.
Feita essa introdução, creio podermos dizer que, seja na histeria seja na neurose obsessiva, a partir do último e ultimíssimo ensino de Lacan, e em fina sintonia com nosso tempo, visto não se tratar de questões diletantes, somos compelidos a nos movimentar nas sombras, como o próprio título dessa mesa parece aludir. Se o sol da histérica era seu amor ao pai, quer dizer, o complexo de Édipo, o falo, a trama das identificações e, finalmente o simbólico, hoje precisamos nos orientar pelo que do gozo e do acontecimento de corpo estará envolvido ali. E o inconsciente, não mais entendido como discurso do Outro, mas tomado no esp de um laps[7] ou, se prestarmos atenção, no espaço de um lapso, como aprendemos a designar o inconsciente real. Na neurose obsessiva, parece que o declínio do pai não torna tal neurose propriamente inexistente: a captura pelo olhar, num mundo onde as imagens proliferam com uma autonomia inaudita, um superego de vocação interditora e repreensiva (como podemos perceber no caso do Homem dos Ratos, por exemplo) surgirá em sua pura forma de imperativo de gozo, na captura do falasser pela imagem, seja pela pornografia seja por jogos eletrônicos, como observa Bernardo Micherif na apresentação do Eixo I da 27ª Jornada da EBP-MG.
A partir dessas considerações, retomo o texto de Ana Lydia Santiago, que nos apresenta, de forma bastante interessante, não apenas onde as neuroses estariam hoje, mas também onde elas já estiveram através dessa relação da “falta da razão de ser” com a vontade de justificação. Proporia, visando aqui abrir o debate, destacar algumas das questões discutidas e trabalhadas no cartel preparatório a esse encontro.
Se partirmos da psicose ordinária e do sujeito que, nela, está fora do discurso, como pensarmos o neurótico no discurso hoje a partir do que Miller chamou de evaporação do pai? Vale dizer, se o discurso não se sustenta propriamente na metáfora, mas num deslizar metonímico que às vezes não parece encontrar, no próprio discurso, pontos de ancoragem, qual o estatuto do fantasma hoje? Ou, ainda, se o que vemos prevalecer é um “ato de palavra performativo” na afirmação tão em voga hoje do sou o que digo que sou, afirmação essa que descarta a divisão do sujeito pelo objeto-causa, como a presença do analista pode vir a encarnar um ponto de basta a esse puro deslizamento metonímico?
Uma segunda questão diria respeito aos acessos de desrealização das histéricas, mencionados por Ana Lydia. Tais acessos, que levariam as histéricas à montagem de um teatro que convocasse o Outro dada a sensação de não se sentirem suficientemente verdadeiras, não poderiam ser considerados hoje à luz (ou à sombra) da peça teatral de Hélène Cixous, intitulada Retrato de Dora e que merecerá o comentário de Lacan, após assistir a peça, de que “é realizada de um modo real”?[8]. Lacan prossegue esse comentário dizendo-nos que, nessa peça, “temos a histeria […] reduzida a um estado que eu poderia chamar de material”[9]. Será Laurent quem, comentando tal passagem de Lacan no Seminário 23, esclarecerá: “O sintoma histérico é por excelência um sintoma que fala, um sintoma endereçado. Ele é portador de um sentido. O [aspecto] material, daquela histeria referido por Lacan, no fundo, é o sintoma como tal separado do sentido”[10].
Esse “estado material da histeria”, essa estranha expressão que creio podermos aproximar da referência de Lacan na Conferência de Bruxelas, de fevereiro de 1977, quando ele falará da histeria freudiana como uma metafísica[11], nos permitiria perguntar se a dos dias atuais seria uma histeria sem metafísica, quer dizer, sem a transcendência que o Outro poderia ter-lhe proporcionado. Será então, e talvez, que possamos pensar numa histeria onde o sintoma não será “sintoma em segundo grau”[12], ou sintoma do sintoma de um outro, tal como pode-se constatar em Dora que, com sua tosse fazia sintoma do sintoma da impotência de seu pai que mantinha, com a Sra. K, apenas uma prática de sexo oral. É essa transcendente trama de sentido a ser decifrada por via simbólica que não se percebe mais na mostração da peça de Hélène Cixous. E, se não há metafísica, há o Um sozinho. A histeria, hoje, imersa em imagens, procedimentos estéticos, dietas intermináveis e, tantas vezes, repulsa a relações amorosas, tentando afirmar a identidade d’A mulher sem falhas ou equívocos, não teria no amor transferencial também a aposta na possibilidade de introduzir-se a um amor não-todo?
Na neurose obsessiva, como também indica a apresentação do Eixo 1 da 27ª Jornada da EBP-MG, a partir do discurso da ciência e seus desdobramentos técnicos, vemos os sujeitos imersos nessa verdadeira profusão de objetos desejados e revestidos de valor fálico. Ora, se, com a evaporação do pai, distinguir um operador fálico que convoque o falo em seu valor simbólico certamente se tornou mais difícil, podemos dizer que, na atualidade, essa captura mais intensa do falo pela imagem o distanciou ainda mais da função de verificador da inexistência da relação sexual? Ou, ainda, como essa captura pela profusão de objetos imagéticos nos ajudaria a pensar a afirmação de Lacan de que neurose obsessiva é a que certamente ainda existe?
Para concluir, gostaria de retomar a questão do imaginário no último e no ultimíssimo ensino de Lacan, agora a partir do que Ana Lydia desenvolve ao final de seu texto sobre a hiância entre real e imaginário. Se é nessa hiância que se aloja a inibição que aprisiona o neurótico, teríamos também relançada a “função da imagem como ferramenta capaz de mostrar como se comportam as coisas na neurose em sua repetição de gozo”[13]. No Seminário 11, ao duplicar o mito de Édipo aproximando-o do mito de Hamlet, Lacan fará referência a uma topologia freudiana, onde a falha estrutural da cadeia significante remeteria à emergência do real encarnado pelo pecado do pai. Nessa aproximação de Hamlet com Édipo, Lacan se valerá do célebre sonho com o filho morto e queimado, apresentado por Freud no último capítulo de A interpretação de sonhos.
Tem-se ali um sonho de angústia, onde o pai, após permanecer por dias e noites ao lado do leito do filho moribundo, passa para um cômodo contíguo a fim de descansar um pouco. Horas depois, o pai acorda, ao sonhar com o filho, de pé, ao lado da cama em que dormia, a sussurrar-lhe: “Pai, não vês que estou queimando?”. Logo em seguida, o pai vê um clarão no quarto ao lado, já que uma vela, caída sobre o leito onde o filho jazia, queimava parte de suas roupas e um de seus braços. De imediato, Lacan dirá como esse sonho aponta para algo vindo de um “além” da cadeia de representações possíveis para aquele que o sonha, pois se a interpretação de Freud será a de que, ao sonhar com o filho ao seu lado, desvela o desejo paterno de que a vida do filho se prolongasse, uma obscura ambiguidade do pai surge quando consideramos o incêndio do corpo do filho. Lacan descreverá tal ambiguidade dizendo:
“Do que é que ele (filho) queima? – do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-pai, é aquilo que sustenta a estrutura do desejo com a lei – mas a herança do pai é […] seu pecado”[14].
Essa, segundo Lacan, voz imajada – que surge tanto para Hamlet através do fantasma do pai, quanto como tocha ardente no sonho do filho morto e queimado – vem para arrancar o sonhador de seu sonho. Essa visão atroz designaria um mais-além da cadeia significante que se presentificaria, nos diz Lacan, “pela perda imajada (imajeur) ao ponto mais cruel, do objeto”[15].
A questão que lanço aqui, a partir dessa passagem do Seminário 11, é se teríamos através da imagem no sonho uma mostração da matriz, para cada sujeito, do que está em jogo em sua repetição de gozo.
[1] MILLER, J. O efeito de retorno à psicose ordinária. In: A psicose ordinária. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012, p. 399.
[2] Idem, p. 420
[3] LACAN, J. Contra capa dos Escritos. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
[4] MILLER, J.-A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires, Paidós, 2014, p. 234.
[5] Idem, p.230
[6] Ibidem, p.244
[7] LACAN, J. Prefácio a edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 567.
[8] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007, p.102 (Trabalho original proferido 1975-76).
[9] Idem, p. 102
[10] LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Site VI ENAPOL: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/
[11] LACAN, J. Considerações sobre a histeria. In: Opção Lacaniana, n. 50, São Paulo, 2007, p. 20.
[12] MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O Corpo Falante, São Paulo, Escola Brasielria de Psicanálise, 2016, p. 26.
[13] SANTIAGO, A.L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. (Disponível no site da 27ª Jornada da EBP-MG).
[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 41. (Trabalho original proferido 1964).
[15] Idem, p. 63.
Da vontade de justificação à repetição de gozo (Eixo 1)
Seminário preparatório
13.06.2024
EIXO 1:
Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem ?
Cartel: Ana Lydia Santiago (+1), Fernanda Otoni, Graciela Bessa,
Luciana Silviano Brandão, Maria de Fátima Ferreira,
Maria José Gontijo Salum e Ram Mandil
jornadaebpmg_wf2qne
This is a custom heading element.
Introdução
O tema do Eixo 1 de investigação da 27ª Jornada da EBP-MG – Onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem? –, foi tratado em cartel constituído por Fernanda Otoni, Graciela Bessa, Luciana Silviano Brandão, Maria de Fátima Ferreira, Maria José Gontijo Salum, Ram Mandil, e eu mesma como mais-um e, portanto, relatora. Em nossos encontros, tivemos a ocasião de discutir vários pontos para abordar o tema desta Jornada que concerne à existência das neuroses nos dias de hoje e aos desafios para a clínica, tanto no âmbito do diagnóstico quanto do tratamento. As referências ao último ensino de Lacan (a partir do conceito de sinthoma) e à orientação lacaniana (proferida em seminários por Jacques-Alain Miller), foram dadas como ponto de partida pela comissão científica. O seminário preparatório de abertura, sob a responsabilidade dos coordenadores da Jornada Maria José Salum e Bernardo Carneiro, nos introduziu ao tema com clareza, apontando o norte para o aprofundamento das investigações.
Das discussões ocorridas no cartel, posso referir-me a alguns pontos que tiveram por objetivo traçar um caminho, uma via de resposta ao nosso problema, como, por exemplo, o que especifica a neurose a partir da psicose ordinária; o neurótico no discurso, diferentemente do fora do discurso da psicose; o que há de novo na histeria e na neurose obsessiva no mundo do Outro que não existe, tempo do eu e do individualismo; a inibição como fator clínico fundamental na neurose, introduzido por Lacan a partir do uso dos novos visuais, o nó borromeano e a geometria dos sacos e das cordas, que é geometria de tecedura em que algo se impõe como sendo do real, irrepresentável. E ainda, o recurso ao imaginário para se ter uma ideia do real; como superar a hiância entre o imaginário e o real; diante do impossível foracluído no mundo contemporâneo pela obstinação indócil do neurótico de fazer existir a relação sexual, qual a chance do amor de transferência?
Finalmente, no momento de redigir o Relatório, pude me dar conta de que essa pergunta – onde estão os neuróticos e de onde os neuróticos não saem? – exige uma abordagem mais aprofundada da questão do que é o fator capital da existência das neuroses no mundo contemporâneo, principalmente se buscamos concebê-las a partir do ponto de vista do tratamento analítico. Nesse sentido, acabei me vendo às voltas não apenas com a questão de saber qual seria esse fator capital que envolve a localização das neuroses, como também quais recursos o tratamento analítico dispõe para permitir uma saída para esses sujeitos. A leitura de um texto de Jacques-Alain Miller, sugerida por Ram Mandil no cartel, foi decisiva para o equacionamento dessas questões, assim como das outras discutidas no curso de nossos encontros. Esse texto tem como título “A paixão do neurótico”[1]. Baseei-me nele para os apontamentos que se seguem, a respeito de onde estão os neuróticos e de onde eles não saem.
Onde estão os neuróticos?
É possível dizer que os neuróticos estão imersos nas águas da paixão, tal como esta é definida por Jacques-Alain Miller, a partir de uma indicação de Lacan em seu escrito “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Precisamente, Lacan afirma que a paixão do neurótico se exibe naquilo que é o cerne da experiência analítica: exibe-se na “falta-a-ser” própria do sujeito do inconsciente[2]. O neurótico, do ponto de vista da medicina, é um doente mental, mas para a psicanálise, seja em Freud ou em Lacan, ele não o é. Quando se fala da neurose a partir da paixão, o que se quer enfatizar é que o neurótico sofre da falta-a-ser. A paixão, pathos, não se reduz ao sofrimento. Mas o sofrimento torna-se uma paixão quando o desejo se encontra aí misturado. Em função da presença do desejo, Miller observa que não há somente sofrimento da falta-a-ser, mas paixão da falta-a-ser. A expressão da paixão do neurótico se realiza, no caso da histérica, por meio de acessos de desrealização – não sou suficientemente verdadeira – e, no caso do obsessivo, por meio de acessos de dúvida, em que prevalece o gozo do pensamento[3].
Como se pode constatar, é por meio do sofrimento, e mesmo da dor, que se afirma a existência das neuroses. Por esse caminho, se faz necessário, como é de praxe na história da psicanálise, estabelecer uma clínica diferencial entre a paixão do neurótico e a paixão do perverso. A direção escolhida não se restringe a afirmar que a neurose é o negativo da perversão. Tomamos aqui a perversão sob o prisma do direito ao gozo, o que significa que o perverso não questiona a razão de ser do gozo, pois, antes de tudo, ele afirma um direito. Já o neurótico está do lado do “não querer nada saber disto”[4], como propõe Lacan em seu Seminário 20, Mais, ainda. O neurótico se enreda no emaranhado do gozo, de maneira que o desejo varia e, quando ele está a ponto de obter o que quer, desaparece. A paixão do neurótico está do lado da procura, ou, mais precisamente, ele procura para não encontrar. Justo antes de obter o gozo, o sujeito faz um movimento para evitá-lo e, portanto, para não encontrá-lo. É a própria procura que apaga o achado, que o evita. A esse respeito, podemos tomar a célebre frase de Picasso “não procuro, encontro”, como um certo escárnio do artista ao neurótico, que, em sua paixão, procura para não encontrar, defende-se do desejo por intermédio de suas vacilações, evitamentos e quedas bruscas. “Não procuro, encontro” é também a maneira de Lacan proceder em seu ensino: encontra primeiro em um ato de antecipação, e depois explora as consequências[5]. Nada disso com o neurótico, inibido quanto ao seu ato[6].
Enquanto o perverso encontra no direito ao gozo uma orientação para sua existência, o neurótico, quanto ao gozo, não sabe porque está nesse mundo. A formalização que Lacan propõe em relação a essa diferenciação clínica consiste em afirmar que a escolha da perversão está do lado do objeto a, enquanto a da neurose está do lado do $. A partir daí, como veremos mais adiante, Miller coloca o perverso do lado da modalidade lógica do necessário e o neurótico do lado da contingência, justamente por faltar-lhe sua razão de ser. O neurótico, como se afirma em “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, experimenta sua vida como o que há de mais inútil, uma pura falta-a-ser, a ponto de se achar – diz Lacan – um Sem-Nome[7]. É isso que permite Miller, de um modo bastante original, conceber a neurose como o que impõe ao sujeito “o dever de inventar sua razão de ser[8]”. É preciso dar-se conta de que a originalidade, nesse caso, é tomar a neurose para além da função da “falta-a-ser” com o intuito de priorizar o que ele designa como “a falta da razão de ser”[9].
Tudo indica que Miller reinterpreta a tese segundo a qual a neurose consiste num mito individual, à luz do aprofundamento da presença da ciência no mundo, em que o sujeito passa a ser definido pelo princípio da razão suficiente. Segundo ele, trata-se de um princípio que se encontra na filosofia de Leibniz e nos dá o sentido do ser em nossa época, formulado da seguinte maneira: “tudo tem uma razão, nada é sem razão”[10]. Diante do fato de que a civilização passa a ser regida por esse princípio de que tudo tem uma razão, a paixão do neurótico moderno, quanto a esse princípio, se coloca do lado da contingência, ou seja, ele se coloca na posição de inventar razões de ser. A civilização acentua a paixão do neurótico, pois se tudo tem que ter uma razão de ser, sua subjetividade se vê compelida a encontrar suas próprias razões para estar vivo nesse mundo. Em outros termos, desde o momento em que tudo tem uma razão de ser, o neurótico, se vê às voltas com ter que se justificar em seu sofrimento e em sua dor.
A vontade de justificação convoca o Outro
Parece-me que toda essa releitura da neurose está a serviço da demonstração de que a existência atual das neuroses se circunscreve, sobretudo, nos excessos do imaginário em que sobressai a vontade de justificar-se. Para Miller, a neurose merece esse qualificativo de vontade: uma vontade que valoriza a justificação em detrimento do gozo. Porém, mesmo que a vontade de justificação do neurótico se relacione com a função da falta-a-ser, ou seja, com o desejo, é preciso destacar também que o imaginário do corpo aparece aí por uma via indireta, que é a pregnância do pensamento enquanto gozo, a exemplo da ruminação no obsessivo ou do devaneio na histérica. A posição subjetiva do neurótico, em sua busca obstinada de uma razão de ser, aparece e se exerce nesse funcionamento do imaginário que é a justificação. Ao falar de paixão, se aponta para a força do imaginário na neurose, sem desconhecer, contudo, que a paixão não acontece sem relação com o Outro. Nesse ponto, Outro da justificação, Outro, face ao qual o neurótico quer e requer a sua razão de ser. Esse aspecto do Outro enquanto testemunha não é sem consequências para o manejo da transferência no curso do tratamento analítico, sabendo que o analista conta com o fato de que a única “razão real de ser” de cada um é o gozo[11]. Nota-se que o encontro do neurótico com o gozo não é nada agradável. É o encontro com a verdade, na experiência da análise, que nada tem a ver com uma contemplação mística da realidade sublime da verdade, mas com as chances de entrever a face real do gozo. Ainda que esse real do gozo seja estritamente impensável, pode-se considerar que, por um breve instante, é entrevisto ou visualisável[12].
Se antes falamos da contingência no nível da posição subjetiva do neurótico, no tocante ao Outro do testemunho nos deparamos, em contrapartida, com a necessidade. O neurótico tem necessidade de testemunhar, necessita do Outro enquanto testemunha. É o que a ordem médica não reconhece quando se depara com o aspecto singular da histeria, ao reduzi-la a teatro. Tudo isso com o objetivo de convencer-nos de que os sintomas histéricos são destituídos de autenticidade. O teatro na histeria significa igualmente a necessidade de testemunhar. A paixão da histérica é um sofrimento que não existe sem o Outro, ela testemunha sua dor sob o olhar do Outro, olhar encarnado que é necessário. Não se trata apenas de se mostrar, mas mostrando-se o sujeito testemunha. A esse respeito, Miller faz inclusive um paralelo entre a paixão de Cristo e a da histérica. É como se o testemunho da paixão do Cristo – Pai, por que me abandonaste? – ressoasse na histérica de uma maneira que se acredita um pouco menos eloquente.
Quanto à obsessão, esta é solidão. É uma solidão que tem lugar sob a vigilância do Outro. É com paixão que o obsessivo dá existência a essa vigilância. Quando o obsessivo, em análise, convoca o analista para ocupar esse lugar de testemunha encarnada, pode haver uma chance de se produzir algum alívio nesse ponto. Sem isso é bem provável que o obsessivo vá se acomodar no Outro desencarnado e morto.
Se a clínica da neurose se sustenta na falta-a-ser, é essa clínica que convoca de modo irrefutável a função do Outro. A própria manifestação da paixão pela falta-a-ser traz em si a presença do Outro, mesmo que o Outro, no mundo atual, se evidencie em seu próprio declínio. No caso da histeria, fazer existir esse Outro acontece sob a modalidade do amor ou mesmo de sua insatisfação para com ele, coisa que nem sempre é fácil de distinguir. E na obsessão? De que modo se dá essa reivindicação do Outro como avalista de sua falta-a-ser? Ao considerar a concepção freudiana da neurose, essa função do Outro aparece, segundo a caracterização de Miller, nas chamadas “duas mamas” da paixão da neurose: amor e trabalho. Assim, somos conduzidos a admitir que a função do Outro no obsessivo se faz por meio da modalidade de sua devoção ao trabalho, inclusive, ao trabalho dirigido ao Outro.
Da falta-a-ser à repetição de gozo
De que modo o tratamento analítico vislumbra as chances de gerar uma existência desembaraçada da vontade de justificação própria do neurótico? A resposta a esse problema implica encarar a relação entre a vontade de justificação – situada no terreno do narcisismo e das exigências dos ideais – e o gozo. No âmbito das neuroses, a transcrição da libido em termos do desejo não esgota as propriedades que o próprio Freud propõe para a sua concepção de libido. Se o desejo, com toda a sua agilidade, desliza por toda parte e impõe efeitos de loopings variados e bizarros, como é o caso da vontade de justificação, esse desejo é por definição uma função que se deduz do inconsciente enquanto produto do recalque: desejo morto. Porém, nem tudo que constitui as propriedades da libido se assimila ao caráter indestrutível do desejo: resta o gozo. É o gozo como impossível, como resistente ao trabalho de simbolização, gozo este que Lacan tentou, inicialmente, recuperar sob o modo do grande Φ (grande phi). Por meio desse resto, desse excedente do trabalho de simbolização do inconsciente, Lacan introduz o objeto a como mais-gozar, concebido como suplemento da perda de gozo.
O gozo como propõe Lacan, em seu último ensino, particularmente no Seminário 20, mais, ainda, deixa de ser a transgressão de um limite, como é o caso do das Ding e passa a ser ele próprio um limite[13]. O gozo como limite da ordem simbólica, o gozo como litoral, na neurose, consiste na repetição, repetição do gozo. No último ensino de Lacan a repetição deixa de ser repetição significante e se transforma em repetição de gozo. Antes, nas lições do Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, a repetição compareceu como repetição significante, na medida em que era tratada pela representação significante e pela divisão do sujeito que sempre deixa no sujeito algo irrepresentável[14]. É somente em O avesso da psicanálise que a repetição se sustenta e é causada pelo gozo. Como propõe Lacan, “a repetição está fundada sobre um retorno do gozo, a repetição visa o gozo”[15]. Portanto, nesse Seminário, o acento é colocado sobre o significante como marca de gozo, tanto é que ele pôde dizer que o significante-mestre é aquele que comemora a irrupção de gozo e, ao mesmo tempo, introduz uma perda de gozo, gerando um gozo suplementar[16].
Como se sabe, Lacan toma de empréstimo à termodinâmica o termo de entropia, e nos diz que é “a entropia que faz o mais-gozar tomar corpo e recuperar”[17] a libra de carne perdida. Mais adiante, afirma que “o mais-gozar toma corpo por uma perda”[18]. Assim, o gozo enquanto limite com relação à simbolização vinda do inconsciente, emerge pela via da entropia e da perda produzida pelo significante. Isso nos interessa porque é nesses termos que Lacan formula a questão fundamental para a discussão da neurose, isto é, “o saber é meio de gozo”[19]. Para Miller, a tese do saber como meio de gozo é um primeiro capítulo do abandono da autonomia e supremacia do simbólico. É o mesmo que dizer que o significante, a ordem simbólica e o grande Outro, toda essa dimensão essencial da neurose é impensável sem uma conexão com o gozo.
A partir daí temos uma clínica que valoriza a metonímia, a perda de gozo e, principalmente, o corpo em detrimento do sujeito do inconsciente. Valoriza-se, portanto, toda uma lógica cuja elaboração se sustenta e é motivada pela relação com o corpo. A direção do tratamento das neuroses concerne, assim, à relação do sujeito com o gozo e às mudanças que decorrem desta relação preferencial. É preciso distinguir, ainda, se essa relação com o gozo se dá sob a forma do fantasma ou sob a forma da repetição.
Pensar a relação com o gozo sob o modo da repetição conduzirá Lacan a dar um novo valor ao sintoma, que é o que passamos a conhecer em seu último ensino como sinthoma. O fato da invenção do sinthoma ter surgido a partir de casos de psicoses não-desencadeadas não significa que uma tal ferramenta clínica não seja aplicável à neurose. Considerando que a defesa compreendida por intermédio do recalque deixa de ser o único fator de abordagem das neuroses, e sobretudo considerando a importância que assume a repetição de gozo, é inegável que o trabalho do analista deverá contar com meios que permitam abrir para o sujeito acesso ao real do gozo.
Fig. 1
(Miller, J.-A. Os seis paradigmas do gozo, p. 34)
Admitir que o sinthoma passa a ter um lugar preponderante para o acesso ao real na clínica das neuroses exige não prescindir da relação do neurótico com o gozo sob a forma do fantasma. Este, o fantasma, aparece como uma espécie de obstáculo sob a forma de uma tela que se trata de atravessar para cingir o real. Se a travessia do fantasma é um convite para ir mais além do plano das identificações em direção ao vazio, à destituição do sujeito, à queda do sujeito-suposto-saber, ela traz como consequência inexorável o sujeito do gozo em que jaz a repetição. Em suma, o sinthoma entra em jogo na prática lacaniana porque a travessia do fantasma deixa um resto, cujo protagonista principal é a repetição do gozo.
Apesar da distinção entre tratar a relação ao gozo sob o modo do fantasma e sob o modo da repetição, não se pode dizer que não há uma imbricação entre um e outro. Para Miller, a repetição é de alguma maneira a forma desenvolvida do fantasma, ao mesmo tempo que o fantasma é a forma concentrada da repetição.
Fig.2
Dessa forma, se a repetição possui um parentesco com o sinthoma é porque presentifica a repetição de gozo e, por essa via, adquire uma consistência que não se confunde com a do fantasma fundamental. Ainda segundo Miller, trata-se de “uma constância que se estende e dura”[20]. A repetição de gozo não é algo que se colhe diretamente no fantasma, pois o que está em questão na visada do sinthoma, em casos de neurose, é reduzir e atingir os restos sintomáticos sem que com isso se possa eliminá-los. Por isso mesmo, o sinthoma que emerge – como redução da satisfação pulsional que envolve a repetição –, comporta um desenvolvimento temporal que, justamente, não se presta à decifração de sua verdade recalcada, mas, sim, a um saber-fazer com isso que é resto. Como se disse antes, não se trata de uma parada ou evacuação da repetição, mas de preferência um novo uso da repetição de gozo.
Sob a mira do sinthoma que traz consigo esse novo uso da repetição de gozo, afirma-se que somente a diferença pode amparar, para o neurótico, uma existência desembaraçada da vontade de justificação. Porém, que diferença é essa? Talvez a diferença seja um termo insuficiente para traduzir aquilo que somente o sinthoma enquanto índice do acesso bem sucedido à singularidade do gozo encerra como solução à vontade de justificação. É evidente que essa singularidade do gozo se constitui para além da falta-a-ser visto que nesse ponto de redução próprio dos restos sintomáticos se condensa o segredo da paixão do neurótico. Enquanto injustificável, a singularidade que o neurótico pode extrair dos restos intratáveis de seus sintomas lhe fornece uma resposta que, no fundo, surge do instante de abertura, em que o falasser consente com a falta de qualquer pergunta relativa à sua razão de ser no mundo.
A inibição para se separar da repetição de gozo
O mesmo acontece com o tratamento analítico das neuroses quando Lacan abre mão do privilégio e supremacia da ordem simbólica, ou seja, relativiza a falta de algo irrepresentável como aquilo que causa a insistência da cadeia significante, em proveito do gozo. Com que recursos o tratamento analítico pode contar, quando o seu objetivo é atingir a repetição de gozo, considerando que essa dimensão do real não é abordável, nem por meio da função significante, nem pelo objeto a do fantasma? É preciso considerar que o objeto a, que se decanta do fantasma, é parte integrante da insistência do simbólico em vedar o acesso ao gozo, tornando-se um protagonista das produções de sentido. Logo, o objeto a, que se isola na construção do fantasma, não sustenta a abordagem do real porque ele próprio se define como efeito de sentido e, por essa via, somos conduzidos à cisão entre o objeto a como efeito de sentido e o real. Portanto, o objeto a deixa de ser um fator sob o qual se capta a consistência do real e torna-se um objeto que ocupa o lugar do semblante[21].
Fig. 3
(Lacan, J. Seminário 20, p. 96)
O ensino de Lacan, para dar conta desses obstáculos e impasses que sobrevêm na prática do analista, faz uso de uma esquema que prioriza a vetorização das três consistências RSI, muito mais que a homogeneização delas.
Fig. 4
(Miller, J.-A. Le tout dernier Lacan, 23/05/2007)
Não se desconhece que a homogeneização, com seu efeito de gerar uma hiância entre os três registros, seja um aspecto fundamental da perspectiva borromeana. Porém, a meu ver, tratar o enlaçamento borromeano RSI pela via dos três vetores no sentido giratório é o meio mais eficaz para se dar conta de onde os neuróticos não saem. Não é à toa que Miller, na lição de O ultimíssimo Lacan, intitulada “O real não fala”, detém-se longamente na forma simplificada desse esquema, chamando nossa atenção para a vetorização: o simbólico se dirige ao real, o real ao imaginário, e o imaginário ao simbólico[22]. Vejamos o modo como se toma esse esquema com os vetores assim orientados, para restituir os elementos que obstruem o avanço da experiência analítica. Em primeiro lugar, quando o imaginário se dirige ao simbólico [I→S], gera o que se tem insistido aqui, que é a imaginarização do simbólico, cuja expressão maior é a vertente imaginária do fantasma. Em segundo lugar temos o vetor [S→R], que foi alvo do nosso comentário anterior, onde se localiza o objeto a entendido como semblante.
O destaque concernente às dificuldades que se apresentam no curso do tratamento é dado por Miller ao vetor que se coloca entre o imaginário e o real [R→I]. A importância clínica desse vetor é a descontinuidade entre o imaginário e o real. É exatamente o contrário do que acontece no vetor do imaginário ao simbólico [I→S] que tem lugar de maneira quase espontânea no momento em que o sujeito fala e elucubra, ao longo do tratamento, sobre suas razões de ser.
Fig. 5
(Miller, J.-A. Le tout dernier Lacan, 23/05/2007)
É por isso que Miller, em sua leitura do ultimíssimo Lacan, preconiza que o fator clínico maior das neuroses é a hiância, que se encontra, como uma pedra, no caminho entre o imaginário e o real. Pode-se dizer que os três vetores que conectam as três consistências não são iguais entre si, pois aquele que vai do real ao imaginário de destaca pela presença de uma hiância na qual se aloja a inibição[23]. Como se vê, nesse último trajeto o simbólico está fora da jogada, na medida em que suas manifestações desaguam inexoravelmente no imaginário, e essa é a prisão da qual o neurótico não pode sair. É por isso que Lacan recorre à função da imagem como uma ferramenta capaz de mostrar como se comportam as coisas das quais se trata em sua repetição de gozo.
De onde os neuróticos não saem
Jacques-Alain Miller, em uma pronunciamento publicado com o título Quando o tratamento para[24], declina várias situações em que a experiência analítica com pacientes neuróticos não avança nem termina. Ele observa que os tratamentos que não terminam são aqueles que não levam a parte alguma. Primeiramente, menciona algumas situações típicas de pacientes que se conectam ao analista para dar um sentido à sua vida. É o caso do neurótico que dá expressão à sua vontade de justificação nas sessões, tomando o analista como testemunha para realizar uma limpeza subjetiva. Nessa ocorrência, o sujeito não pode encarar o que lhe é dito, porque suspeita demais dos significantes alusivos. Tudo é pesado demais para ele, que resta submerso no próprio monólogo e na narração de sua vida, o que o impede de fazer o que tem a fazer. Há também o neurótico que se apega ao amor de transferência como uma tábua de salvação. Para alguns acontece, mesmo, de ser a única relação de amor na vida deles e, então, eles se nutrem do laço transferencial e ao mesmo tempo o alimentam. Há ainda aquelas análises em que a sessão é fonte de prazer e de gozo, para o analisante. Estes podem até trocar de analista, mas não se cansam da análise. Uma análise pode também estancar sob a formação de um tampão, o que acontece quando o sujeito se satisfaz de uma identificação, de uma fórmula de seu ser, que funciona como um significante final. “Eu sou isso… Ok!”.
Mas a dificuldade fundamental em relação ao ponto de onde os neuróticos não saem concerne sempre, como referido antes, ao “fantasma reduzido a um fantasma fundamental particular, cujo núcleo é o gozo”[25]. Mais precisamente, se trata de uma unidade libidinal, denominada “objeto a“. Essa unidade de gozo fundamental para o sujeito constitui um obstáculo porque não se dilui. Lacan considerou, inicialmente, que diluir essa unidade seria uma via de saída para o impasse freudiano no tocante ao final da análise. Depois, admite que esse impasse é constitutivo do ser de gozo do sujeito, o que se enuncia sob o modo do aforisma “não há relação sexual”. O insolúvel, o impossível, é a inexistência de fórmulas sexuais capazes de dar conta do desencontro entre os sexos. Esse impossível é uma coisa que se deve admitir. “Se você é totalmente desmunido para ser inteiramente homem ou mulher, em contrapartida é impossível ser convenientemente um homem para uma mulher ou uma mulher para um homem. Aceite isso, então!”[26] É um fim por consentimento. Consentir com o impossível supõe uma abertura a acontecimentos imprevistos, a encontros, enfim, com a contingência. Encontros que podem ser frutíferos na vida e em relação à verdade não-sabida.
Quando Lacan visualiza o real das neuroses
É Lacan que nos dá uma ideia do real nas neuroses, em A lógica do fantasma, a partir do ponto fundamental ao qual chega nesse seminário ao afirmar que “o ato sexual não pode ser colocado em fórmula”[27]. Como se sabe, isso quer dizer que, no nível do real e do inconsciente, nenhuma norma é prescrita quanto ao sexo; cada sujeito tem que se mensurar pois não há medida, e a maneira como a articula vai lhe levar ao seu fantasma fundamental. A dificuldade do neurótico, sinaliza Lacan, é justamente a de imaginar a distância que há entre a função do fantasma no nível dito perverso – que como assinalamos, o perverso sabe sobre o gozo –, e a sua função no registro neurótico – daquele que não quer nada saber. Lacan propõe um visual para captar o real nas neuroses, que é “o quarto de dormir”![28]
O quarto de dormir existe em teoria, diferentemente do ato sexual. Lacan insiste para prestarmos muita atenção no fato de que tudo que acontece com o neurótico, acontece essencialmente longe do quarto de dormir. Na fobia pode acontecer no guarda roupas, no corredor ou na cozinha. A histeria acontece em qualquer ante-sala, aquém do quarto de dormir. A obsessão nos banheiros. Isso é muito importante, diz Lacan. São as estratégias do neurótico para evitar chegar ao quarto de dormir. E o que os impede de chegar ao quarto de dormir? O núcleo do fantasma, como vimos. Mas também podemos investigar, na clínica atual, por qual justificativa passa a determinação apaixonada dos neuróticos em não querer nada saber do “não há ato sexual”? Ou como justificam a paixão de querer fazer existir o homem e a mulher enquanto tal, o que se contrapõe à procrastinação em relação ao encontro com o Outro sexo. Estas questões concernem igualmente ao desejo do qual os neuróticos se defendem com o fantasma, em função do próprio papel do fantasma que é o dever de sempre se inscrever: desejo prevenido para a fobia, o desejo insatisfeito para a histérica, e para o obsessivo, o registro do desejo impossível. Deixamos em aberto estas questões para as investigações clínicas que terão lugar na 27ª Jornada da EBP-MG, sabendo que no quarto de dormir onde não acontece nada, onde o ato sexual se apresenta como foracluído, é o consultório do analista.
[1] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. In La Cause du désir, out 2016, nº 93. p. 112-122.
[2] LACAN, Jacques. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 619.
[3] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. Op. Cit. p. 113.
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, mais, ainda (1972-1973). 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p.9.
[5] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2003. p. 271.
[6] Idem.
[7] LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In Escritos. Op. Cit., p. 841. A falta-a-ser (-φ), no neurótico, se insinua sobre o sujeto barrado favorecendo a imaginação que lhe é própria, a imaginação do eu. É porque ele sofre a castração imaginária logo de saída, que a imaginação vai estar a serviço de sustentar seu eu, fortalecer o eu de uma maneira tão forte que seu nome próprio, marca do desejo do Outro, o importuna. Enfim, o neurótico é um Sem-Nome porque esconde a castração que ele nega, mas, ao mesmo tempo, se apega demais a ela, mergulha na sua falta-a-ser.
[8] MILLER, Jacques-Alain. “La passion du névrosé”. In La Cause du désir., Op. cit., p. 114.
[9] Ibidem, p. 115.
[10] Idem.
[11] MILLER, Jacques-Alain. La passión del neurótico. In Introducción a la Clínica Lacaniana. Conferencias en España. Barcelona: RBA Libros, 2006. p. 83.
[12] LACAN, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan, texte établie par Jacques-Alain Miller, R.S.I., leçons du 10 et 17 déc., 1974. In Ornicar, nº 2.p. 96.
[13] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, mais, ainda (1972-1973). 3ª ed. Op. Cit., p. 99.
[14] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2, o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 129-132.
[15] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 45. Citado por MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Ano 3, nº7, março 2012. p. 32. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br.
[16] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.73.
[17] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Ano 3, nº7, março 2012. p. 32. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br.
[18] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.73. Citado por MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line, Op. Cit. p. 32.
[19] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Op. Cit. p.74.
[20] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. In Opção lacaniana on-line. Op. Cit. p. 35.
[21] LACAN, Jacques, O Seminário, livro 20, mais, ainda. Op. Cit. p. 102.
[22] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Op. Cit. p. 240.
[23] MILLER, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Op. Cit. p. 195.
[24] MILLER, Jacques-Alain. Quand la cure s’arrête (11/05/2009). In Quarto, 96, octobre 2009. p.10-15.
[25] Ibidem, p.11.
[26] Idem.
[27] MILLER, Jacques-Alain,. Propos sur La logique du fantasme. In La cause du désir, nº 114, juillet 2013. p.70.
[28] LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre XIV, La logique du fantasme. Paris: Seuil, 2023. p. 423.
Eixo 1 (fotos)
Eixo 1 – Onde estão os neuróticos e de onde não saem
Imagens dos seminários: Cecília Batista – fotografia analógica.
Fantasma e neurose, hoje
jornadaebpmg_wf2qne
Paula Duarte Félix [1]
Na atualidade, é possível perceber que as neuroses ainda existem, mas elas nem sempre se apresentam na clínica como há algumas décadas. A partir dessa constatação, surge a pergunta: qual o estatuto do fantasma, hoje, em relação às neuroses que continuam a existir?
Patrício Alvarez Bayón (2019) aponta que, na prática analítica, é possível localizar as mutações do fantasma através de algumas rupturas. Há casos em que o fantasma não guia, não funciona como articulador entre desejo e gozo. Por exemplo, na passagem ao ato, o marco fantasmático se rompe e o sujeito atravessa o que se apresenta como tela, anteparo, caindo como objeto, resto. Também nas toxicomanias, temos a ruptura da articulação entre o fantasma e o falo. Por sua vez, no silêncio que marca certos atos violentos, verificamos que o fantasma não conseguiu produzir a distância necessária entre sujeito e objeto assim como, em muitas anorexias e bulimias, o objeto oral pode se apresentar desconectado do fantasma.
Nesse contexto, indagamos se, nos casos de sujeitos neuróticos esmagados pelo objeto a, tal como constatamos em vários sintomas que temos chamado de “contemporâneos”, não encontraríamos uma ilegibilidade que, conforme nos indica Naparstek (2018) em sua releitura de Miller (2018), torna muito mais difícil uma interpretação, uma elaboração e mesmo uma construção do fantasma. Será que, hoje em dia, o fantasma também tem a mesma dimensão axiomática, norteadora, de outrora? Ou será que o esmagamento pelo objeto a, detectável na ilegibilidade apresentada em muitos casos, perturba o funcionamento de certo modo de gozo que, ao longo de uma análise, encontrávamos no fantasma? Poderíamos, por fim, levantar mais uma questão a ser investigada: em nossa prática, hoje, haveria cada vez mais, nas neuroses, rupturas com a dimensão fantasmática?
Referências bibliográficas
BAÝON, Alvarez Patricio. 11 formas de estar loco. Cuando el fantasma no funciona. In: CAMALY, G.; GLAZE, A. (Orgs.). La locura de cada uno. Olivos: Grama Ediciones, 2019.
MILLER, J. A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Ciudad Autonóma de Buenos Aires: Paidós, 2018.
NAPARSTEK, Fabián. Vociferar: Joyce el sintoma – Sade el fantasma. In: El fantasma, aún. Olivos: Grama Ediciones, 2018.
Notas
[1] Psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos/UFMG, autora do livro Variantes da neurose tipo ou a defesa na atualidade da clínica psicanalítica. Belo Horizonte, Editora Scriptum, 2021.
Seminário de Abertura (fotos)
9 de maio – Seminário de Abertura (fotos)
Imagens dos seminários: Cecília Batista – fotografia analógica.
O Imaginário na clínica do sinthoma
jornadaebpmg_wf2qne
This is a custom heading element.
O imaginário no Seminário 23, O sinthoma, é definido como uma das três consistências do nó borromeano, e não apenas como imaginação, tampouco como o gosto pelas imagens e muito menos por sua redução à imagem especular. Ainda que todas essas versões possam estar presentes na apreensão lacaniana do sinthoma em James Joyce, chama a atenção que, ao defini-lo como tendo uma consistência própria, o imaginário seja reduzido ao corpo. A respeito desta equivalência entre o corpo e o imaginário, Lacan afirma, nos Estados Unidos, que, “do corpo, a experiência da análise apreende o que nele há de mais imaginário”, ou seja, que “um corpo se reproduz por uma forma”[1]. Completa ainda: “nós o apreendemos sempre como uma forma”, e como vamos ver mais adiante, essa “forma se manifesta no fato de que este corpo se reproduz, subsiste e funciona sozinho”[2].
É sabido que, ao longo de seu ensino, o corpo é tratado via função da imagem que, apesar de suas variações e distinções, aparece sempre como uma forma ou modelo integrado ao corpo. [VER: Fig.1]
IMAGINÁRIO CORPO ENQUANTO FORMA
Isso se confirma com o Estádio do Espelho, em que a imagem especular se constitui como a forma do corpo próprio, imagem concebida como o primeiro objeto de investimento libidinal e, portanto, como campo apto a produzir uma identificação, tornando possível ao infans obter, pela primeira vez, um reconhecimento de si.
A função inercial da imagem especular
Evidentemente que não se trata da última identificação, porém, resulta dela o chamado gozo jubilitário, ou seja, o gozo que se faz com sua imagem do corpo e que nele contém um embrião de seu Eu (moi). Essa ancoragem do Eu (moi) na imagem do corpo tem sua fonte na pressuposição de que a libido assume um valor imaginário, pois o gozo enquanto júbilo com a imagem do corpo não procede diretamente do simbólico. Em suma, o gozo jubilatório não provém do sujeito propriamente dito, está relacionado com a experiência do se ver e é dela que emerge o Eu (moi) como instância narcísica e imaginária.
SE VER (CORPO)☰ EU (INSTÂNCIA IMAGINÁRIA)
Essa experiência do se ver é também aquela que preside a relação imaginária ao Outro no seio da qual predomina a rivalidade, a agressividade e o ódio. Ao permanecer fixado nesse gozo intra-imaginário – gozo do júbilo – por meio do qual o sujeito apenas vê no Outro seu duplo imaginário, seu alter ego, seu rival, isso conduz a
um desconhecimento do ser, da falta-a-ser e do desejo. Se o Estádio do Espelho é qualificado como uma identificação, no sentido pleno que a psicanálise confere a esse termo, é a força da assunção jubilitória da imagem do corpo que promove essa primeira metamorfose no ser de gozo da criança[3].
Ao reconhecer que a imagem especular desempenha um papel fundamental nessa transformação do ser do infans, deve-se levar em conta que a função da imagem já é concebida, nesse início de seu ensino, segundo sua falta de autonomia e, por consequência, sua dependência ao que o próprio Lacan designa como a “matriz simbólica”[4]. Algum depois do Estádio do Espelho, essa dependência do imaginário ao simbólico se aprofunda e torna-se, no interior de seu ensino, mais presente e sistemática. Isso quer dizer que não se capta a importância da função inercial e estagnante própria das fixações imaginárias, sem considerar o quanto as tais manifestações se vêem submetidas às determinações do simbólico. Enquanto reduzido à imagem especular, o imaginário assume, em boa parte do ensino de Lacan, o valor de uma resistência desfavorável ao avanço da experiência da análise. Com a clínica do sinthoma, ter-se-á um outro uso do imaginário, que se destaca, por exemplo, na Conversação, Parlamento de Montpelier, pois este evento é uma prova a mais do quanto o último ensino de Lacan devolve toda a dignidade clínica ao imaginário. Tal dignidade adquire seu ápice com a perspectiva tardia do enodamento borromeano de RSI, visto que, a partir daí, o chamado novo imaginário passa a ser um fator que favorece a experiência analítica.
O corpo nos é estranho…
O nó borromeano, com seus três aros de barbantes, homogeniza os três registros e desfaz qualquer tipo de hierarquia entre eles que, antes de tudo, se expressa pela derrocada do império das determinações simbólicas, alçando assim, no horizonte da prática lacaniana, a fecundidade clínica da consistência dos três registros RSI. Considera-se, com isso, que “a essência do nó borromeano” é essa homogeneização que traz também como consequência uma hiância entre esses três registros, uma vez que se apresentam como radicalmente separados e dotados de uma autonomia própria[5]. Se faz necessário insistir, portanto, que afirmar o caráter homogêneo das três consistências borromeanas implica admitir uma hiância, uma separação fundamental entre elas.
Uma das consequências da adoção da perspectiva borromeana, em que prevalece a consistência de RSI como horizonte da clínica lacaniana, é a subversão do imaginário, antes reduzido à imagem especular, e agora passa a ter como marco essencial sua equivalência com o corpo[6].
Antes mesmo dessa mutação de paradigma própria da perspectiva borromeana, e ainda no bojo do enfoque inédito da angústia, nos anos 60, o corpo que se recebe e que se carrega consigo é problematizado por intermédio do Unheimlich – infamiliar – fenômeno concebido para além da produção da imagem especular. Como atesta a experiência da angústia, a recepção do corpo pelo sujeito excede ao que se institui como imagem produzida pelo espelho, uma vez que a imagem do corpo que se acredita ser se faz por meio de uma pertubação da imagem que, no caso do infamiliar, se verifica de modo flagrante. Cabe inclusive perguntar se sob o ponto de vista dessa perturbação da imagem do corpo, com toda a conotação de perplexidade que a envolve, o evento corporal da inquientante estranheza pode ser considerado como um fenômento elementar?
No entanto, a tese de que a imagem integra o corpo sofre uma mudança substancial com a teoria dos nós borromeanos, pois o seu ponto de partida é, como se disse antes, tomar o corpo como uma consistência que funciona sozinha e sem a menor informação desse funcionamento para o próprio sujeito da linguagem. Tudo o que Lacan formula sobre o corpo a partir da clínica do sinthoma busca constituí-lo como consistência isolada e separada dos dois outros registros: Simbólico e Real. Diante disso, sua argumentação gravita em torno da formulação freudiana de que o inconsciente apoia-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo e, portanto, o corpo nos é estranho[7].
O homem tem o corpo, não o é…
Tanto é que quando Lacan redige sua Conferência “Joyce, o sintoma”, a estranheza é o acento que se retém quando afirma que o homem tem um corpo que ele não o é …[8]. É nítido que tal formulação do corpo aponta para uma disjunção entre o corpo e o ser. Essa disjunção é fundamental porque, segundo Miller, a concepção do corpo que a antecede, aquela que se faz presente no Seminário 20, Mais ainda, é de que “o ser é um corpo, que o corpo é a primeira abordagem do ser”[9]. Isso se exemplifica pela demonstração de que o corpo do monge é o hábito, ou seja: o hábito é mais do que um invólucro, o hábito constitui-se no próprio índice de que o corpo do monge se confunde com o seu próprio modo de gozo. O hábito é a “forma separada de todo formalismo”[10], na medida em que o hábito é homogêneo, ao objeto causa de desejo do monge.
Ao contrário disso, se a perspectiva borromeana introduz o ter, o faz para desunir o ser e o corpo, de tal maneira que essa doutrina desfaz o que Lacan chamava de sua hipótese de que o corpo afetado pelo inconsciente estruturado como linguagem equivale ao mistério do corpo falante[11]. A perspectiva borromeana desune o corpo e o simbólico, de modo tal que essa disjunção torna-se o grande problema da clínica do sinthoma e não apenas um mistério.
Com efeito, a nomeação do falasser (parlêtre) como um substituto do sujeito do inconsciente está para além do mistério do corpo falante. O falasser nada tem a ver com o “cântico aristotélico” sobre o ser que se apresenta dependente do corpo[12]. O falasser (parlêtre) não depende de um corpo, não recebe o seu ser do corpo que ele seria, ele o recebe da palavra, isto é, do simbólico. O falasser tem um corpo, não o é, por isso, pode deixá-lo cair, como veremos mais adiante no episódio da surra relatado por Joyce em “O retrato de um artista quando jovem”.
Da cadeia significante à cadeia borromeana
Assim, para o falasser, uma vez que o simbólico, segundo a perspectiva borromeana, se apresenta como separado do real e do imaginário, ele deixa de ser uma instância, ou seja, uma ordem estruturada pelo significante. Antes disto, ao definir o simbólico enquanto ordem ou estrutura é, no fundo, dizer que a tendência do significante é fazer cadeia. Isso se deduz da própria doutrina estruturalista de que o significante apenas existe ao se associar a outro significante e, assim, concebe-se o significante por sua condição de produzir cadeia. Se de um lado, a invenção do nó borromeano já denota um eclipse do simbólico, uma desvalorização da palavra, de outro, sua implicação maior é por em questão o princípio de que todo significante faz cadeia com outro significante.
A imagem do enodamento borromeano fascina e cativa porque, com desvanecimento do simbólico, emerge a ideia de uma nova ordem cuja característica marcante é a de um espaço conectivo composto por pelo menos três aros ou rodas de barbantes concebidas como peças avulsas. O pressuposto motivador da clínica do sinthoma é colocar em suspensão a ideia de que um significante faz cadeia com outro significante no intuito de postular o princípio de que os três aros ou rodas de barbante RSI são consistências tomadas como peças soltas e avulsas.
O que enfim surpreende o próprio Lacan é que ele vai tomar “o nó como o que suporta cada consistência e que, por isso, não se pode jamais deduzir esse nó de uma cadeia” do tipo cadeia simbólica[13]. Com o enodamento borromeano, propõe-se uma outra modalidade de cadeia – cadeia borromeana –, que exige uma outra linguagem, a saber: a da amarração e a do encontro entre, pelo menos, três rodas de barbante e três furos. Sem entrar em maiores aprofundamentos, é suficiente dizer que, sem os furos, não seria pensável que algo pudesse enodar as rodas de barbante. Logo, nesse espaço conectivo a três, em que as consistências se enlaçam e se enodam, não existe nenhuma chance de constituírem uma cadeia simbólica nos moldes da articulação S1-S2.
Em vez de fazer cadeia no simbólico, o significante enquanto unidade da consistência própria do simbólico passa, nese caso, a fazer nó. Por isso Lacan inventa o termo de cadeinó [chaînoued], porque, no âmbito da cadeia borromeana, o significante deixa de ser o fonema, como era no caso da linguística, e, como nó, ele produz furo. Ao passar da cadeia significante para a cadeia borromeana, o furo passa a ser inerente ao simbólico, assim como, a consistência corporal torna-se o imaginário e a ex-sistência própria do real é o que se acrescenta às duas outras consistências. Enquanto ex-sistência, o real como terceira roda de barbante é o que mantém unidos o imaginário e o simbólico. Assim, a postulação desse espaço de conectividade das três consistências, concebidas como independentes umas das outras, é vista como a referência basal da prática lacaniana em que prevalece a orientação de ir mais longe do que a decifração do inconsciente. Salienta-se, ainda, que ao dar a mão a Joyce, a prática lacaniana dá um lugar primordial à consistência do corpo, portanto, ao imaginário como peça avulsa em substituição à operação interpretativa por meio do simbólico.
A consistência do imaginário enquanto corpo é peça avulsa
A ênfase que Miller concede ao termo peça avulsa é para tornar evidente o que é uma consistência como “o que mantém junto”[14]. O corpo é o que melhor explicita o que é a consistência própria do imaginário, pois “nós o sentimos como pele retendo em seu saco um monte de órgãos[15]”. É somente pelo corpo concebido como um “monte de peças avulsas”[16] e pelo seu funcionamento autônomo que se pode ter acesso, em Joyce, tanto à separação entre o sintoma e o inconsciente, bem como o deixar cair [lâchage] do corpo. Não cansamos de repetir a expressão segundo a qual Joyce está “desabonado do inconsciente” para buscar dar conta dessa separação entre o inconsciente e o sintoma. É preciso entender as razões que levam o sinthoma a se apresentar, nesse caso, como solto e depreendido do inconsciente. Joyce nos dá a chave para captar essas razões na medida que sua própria obra evidencia o que vem a ser o núcleo do real do sintoma. É na medida que seu trabalho com a escrita encarna a operação lógica de redução do sentido que, tem como fonte o inconsciente, a ponto de fazê-lo com que não tenha mais sede[17]. Desse modo, estar desabonado do inconsciente é tornar sua própria história mera futilidade e, finalmente, é por essa via que se pode extrair e isolar o núcleo real do sintoma.
O sintoma em Joyce é – diz Lacan – “um sintoma que não lhes concerne em nada (…) na medida que não há nenhuma chance de que se assemelhe a algo do inconsciente de vocês”[18]. Notadamente no caso do sintoma neurótico, nem sempre é fácil não recorrer ao sentido para tratar e dar um destino ao seu impossível de suportar que se mostra articulado às defesas provenientes do inconsciente. Nesse caso, interpretar o inconsciente, fazê-lo existir, supõe levar em conta aquilo que resiste no sintoma, a saber, uma verdade, um significado à espera de ser promovido e liberado. Por outro lado, o sintoma com o qual lidamos na prática lacaniana, nos dias de hoje, se apresenta radicalmente separado do símbolo, um sintoma que não se cristaliza em um saber suscetível de ser lido e por isso destituído de algum endereçamento ao psicanalista. Estar desabonado do inconsciente quer dizer que o sintoma concerne o corpo que funciona sozinho, um corpo que se apresenta numa relação de disjunção com o ser, ou seja, como refratário às determinações simbólicas que envolvem o inconsciente.
Para esclarecer o valor clínico do imaginário enquanto peça avulsa, faz-se necessário recorrer ao fenômeno do qual James Joyce é testemunha por meio de seu personagem Stephen Dedalus, um fenômeno considerado raro por Lacan, porém, bastante decisivo com relação ao que promove a experiêcia analítica. Trata-se do episódio da surra recebida pelo personagem de O retrato do artista quando jovem. É inócuo reportar aos comentários da crítica literária universitária sobre a distinção entre o autor e o personagem, pois de onde o autor sustentaria esse fenômeno, senão dele próprio, considerando sua raridade, bem como não ser ele possível de ser produzido via imaginação. Lacan não se coloca na posição dos universitários que se dedicam ao comentário e à resolução do número imenso de enigmas que a obra joycena contém. A relação de Lacan com a obra de Joyce é eminentemente clínica, no sentido de que ela serve de apoio à prática analítica quando esta lida com o falasser desabonado do inconsciente, isto é, com situações em que o sintoma se mostra desatado, desvinculado do inconsciente. Vale dizer que o psicanalista, nesses casos, não encontra meios de operar por intermédio da decifração simbólica do inconsciente.
É o caso do extrato bastante conhecido em que Joyce testemunha que, durante a adolescência, foi espancado por não ceder a uma disputa acerca de coisas referentes a poetas, precisamente entre Tennysson e Byron. O colega que comandava toda a aventura era um tal de Heron, termo que não é indiferente, pois tal nome tem origem no hebraico “Aharon”, que significa “montanhês” ou “exaltado”. Esse Heron e seus cúmplices vão amarrá-lo em uma cerca de arame farpado e, em seguida, espancá-lo. Logo após o acontecimento, ainda naquela noite, “enquanto ia para a casa aos tropeções, pela Jones’s Road, sentia que alguma força estava livrando-o daquela raiva urdida com a mesma facilidade com que uma fruta se desfaz de sua casca mole e madura”[19]. Joyce se interroga acerca de sua reação marcada pela ausência de afeto e pelo fato de que não guardava nenhum rancor do colega que o tinha molestado. Seu questionamento aponta para o lado enigmático da experiência de distanciamento de seu próprio corpo. Para Lacan, é de se esperar uma tal reação por parte de Joyce, pois, diante desse grave acontecimento, somente ele seria capaz de metaforizar sua relação com o corpo ao afirmar “que todo o negócio se esvaiu como uma casca[20].
Quando confrontado com a situação do espancamento, não reage à altura do esperado e experimenta uma espécie de despreendimento e abandono de seu corpo e do afeto. Esse episódio permite a Lacan dizer que, em Joyce, “há alguma coisa que exige apenas sair, ser largada como uma casca”[21]. Joyce testemunha “um deixar cair a relação com o corpo próprio”[22], isto é, uma dissolução da imagem do corpo que promove um discreto fenômento de discordância. Desde então, essa manifestação do deixar-cair o corpo passou a ser captada como um sinal clínico do chamado fenômento de discordância descrito pelo psiquiatra Pierre Chaslin[23]. A clínica do sinthoma, por sua vez, apreende esse fenômeno sob o prisma da desconexão do elemento imaginário do enodamento borremeano do falasser. Lacan é bastante claro a esse respeito ao formular que, em Joyce, “a relação imaginária não acontece”[24] e, por isso, o falasser se constitui por meio da conexão direta do inconsciente com o real, sem a mediação do imaginário.
Se, nesse caso, a relação imaginária se mostra ausente, como se efetua a formação da imagem do corpo que, como se viu antes, é o que alimenta e dá sustentação às funções do eu? Se não há relação imaginária, supõe-se também que não há a imagem do corpo sobre a qual se edificam as funções do eu. É preciso, neste ponto, especificar a função do que Lacan denomina, no contexto do Seminário 23, O sinthoma –, como Ego, e aquela do eu (moi). Antes desse Seminário, as duas noções – o eu (moi) e o Ego – são sinônimas. Como se sabe, o eu (moi) tem sua nascimento no narcisismo infantil e corresponde à instância que permite ao indivíduo se defender contra a realidade psíquica e as pulsões. Trata-se de uma função que se extrai da segunda tópica freudiana.
Imaginário como o Ego corretor do lapsus do nó
É o que se disse antes acerca da ancoragem imaginária dessa instância do eu (moi) e que se confirma nesta frase: “Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem [25]. Diante disso, Lacan encaminha a sua elaboração no sentido de distinguir o eu (moi) daquilo que, nestas circunstâncias, considera-se como sua invenção, a saber, o Ego: “o fato de não haver interesse por essa imagem naquela ocasião [a da surra] não é o que assinala que o Ego tem nele [Joyce] uma função particularíssima?”[26] Conclui-se, portanto, que o eu (moi) sustentado pela imagem do corpo equivale ao exercício de sua função no terreno da neurose, supondo que nela prevaleça a amarração com o nó de três. É o que propõe Jean-Claude Maleval: “Quando a função narcísica opera na presença do enodamento borremeano, o eu (moi) não se distingue do Ego”[27]. A distinção advém, portanto, com Lacan em casos da não-amarração borremeana de R, S e I. Em outros termos, em certas configurações – notadamente quando há um deixar cair do imaginário –, o Ego se define como a “ideia de si como um corpo”[28], e não como um eu (moi) que se suporta pela imagem do corpo.
É dever da clínica do sinthoma considerar que, para certos sujeitos, é preciso recorrer a outras montagens, distintas do nó de três RSI, como nos casos em que se visa preservar algum arranjo das partes do corpo entre elas, uma vez que o horizonte clínico é fazer existir um corpo. O Ego se constitui, por consequência, como um outro porta-voz do imaginário no sentido de que, enquanto peça avulsa, ele é o corpo e, não, uma imagem do corpo. Em Joyce, este Ego assume uma função radicalmente distinta da função narcíssica, pois é quem corrige a falha do nó graças à condição reparadora da escrita.
A especificidade da amarração se situa no plano da conexão existente entre o real e o simbólico – articulação do tipo olímpica que gera o laço inabitualmente estreito entre os dois registros, R e S, e que deixa o imaginário solto.
O que é marcante em Joyce é que, face à situação da surra, há um instante em que nada funciona, deixando-o sem resposta. No entanto, algum tempo depois, algo funciona, ou seja, Joyce testemunha não ter nenhum reconhecimento ou afeto de não importa quem ele tenha recebido essa surra.
Nesse momento, o que acontece com o corpo que funciona sozinho? Admite-se que se trata de um espaço não subjetivado, pois não é subjetivável. Um lapso de tempo é, portanto, necessário a Joyce para dar uma resposta que nos deixa supor entrever que há criação, invenção. Imediatamente após esse tempo, ele testemunha que, com relação ao acontecimento passado, ele não tem nada contra ninguém. Uma falha do afeto consciente a respeito do Outro surge no lugar do vazio. A invenção consiste, nesse caso, no acionamento de um Ego que tem relação com a “escritura da metaforização do corpo”[29], isto é, não mais com a imagem do corpo, com a ideia do corpo como imagem, que corresponderia ao eu (moi), mas com o “enquadramento formal traçado pela escritura”[30]. Com a tese do Ego como grampo, Lacan sugere que Joyce gera o sinthoma, “como alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos”, ainda que haja o lapso ou o erro na cadeia borromeana[31]. O Ego em condições de corrigir o erro “permite ao nó de três se manter como nó de três e conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto de constituir nó de três”, e é isso que se denomina sinthoma[32]. Assim, se a organização psíquica de Joyce confirma a chamada forclusão de fato do Nome-do-Pai, ela atesta também a presença de um conector para reparar o lapsus do nó.
Se virar com a imagem, se virar com o sinthoma
Em contraste com a expectativa de que um significante novo possa cernir o impossível de se nomear próprio do final de análise, o ultimíssimo ensino de Lacan destaca o valor da imagem como fator de mostração desse real impossível. Se o fundamental da experiência do final se circunscreve pela via do núcleo real do sintoma, se o real não fala, é mudo e, se o simbólico se desvanece, o acesso a esse núcleo real poderia acontecer por meio da imagem? Ainda que a resposta possa parecer óbvia, postula-se que tal formulação exija uma subversão do imaginário, pelo menos esse que se confunde com a função inercial da imagem, este que se supõe interceptar o dinamismo próprio dos deslocamentos simbólicos.
É diante do abandono da supremacia da ordem simbólica frente às duas outras que se institui o novo imaginário concebido como peça avulsa e que se apresenta como corpo. A homogeneidade entre o real, o simbólico e o imaginário radicaliza o fato de que o corpo se introduz na economia do gozo por meio da imagem. Em outras palavras, na clínica do sinthoma prevalece uma outra supremacia: a do corpo que, justamente, se tece por meio da imagem.
Face ao silêncio do real e da não operatividade da função significante, resta-nos o recurso do imaginário que agora se pode agregar a ele, o recurso do corpo que, segundo o ultimíssimo ensino, se constitui sob o modo do “tecido do inconsciente”[33]. Desde o momento que a unidade, ou melhor, a micro-unidade do significante é relegada a um segundo plano, é a geometria do tecido – com sua composição de fios, malhas, entrelaçamentos e furos – que aparece como a via para não deixar a experiência da análise cair na mera abstração ou elucubração.
Em primeiro lugar, é evidente que o gozo pulsional – definido pelo acordo entre o significante e o corpo – continua presente na gestação do tecido como um componente essencial, visto que ao expressar o acordo entre o significante e o corpo, ele se presentifica sob o modo da ressonância.
Em segundo lugar, deve-se levar em conta que se o peso do significante se desloca para a imagem, o que não quer dizer que o inconsciente esteja ausente na própria confecção do tecido. Trata-se, portanto, de privilegiar o inconsciente em suas manifestações disruptivas com relação à cadeia associativa, particularmente aquelas que subsistem como tropeços da ordem simbólica como tal: ato falho, chiste e, inclusive, sonho. Tomar como fundamental essa vertente de fenômenos que se caracterizam pela descontinuidade do inconsciente – ou seja, tais manifestações não fazem cadeia – levou Lacan a introduzir uma nova categoria que advém logo após a sua invenção do sinthoma. Assim, durante o livro 24 do Seminário, L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre, propõe-se uma forma inédita de nomear esses fenômenos disruptivos basais do inconsciente por meio da tradução fonética do Unbewusst freudiano, pelo termo francês de une-bévue. Sérgio Laia nos sugere o uso, em português, para a tradução semântica de une-bévue, do termo inadvertência[34]. Enfim, se a operação analítica deixa de ter como móvel a decifração, tornou-se necessário “ir mais longe do que o inconsciente” estruturado como linguagem, em que o vetor deste para além é a produção do tecido do inconsciente. Ao visar o que Lacan denonima como tecido, a experiência da análise passa a operar tendo como referente a micro-unidade do inconsciente enquanto inadvertido e a macro-unidade do sinthoma[35].
Em terceiro lugar, destaca-se o que Miller concebe como o fato clínico maior que Lacan trabalha e põe em evidência no momento conclusivo de seu ensino, ou seja, o se que constitui como uma espécie de patema da clínica do sinthoma que é a inibição para imaginar o real[36]. O chamado fato clínico da inibição não aparece apenas em situações como a da ausência da relação imaginária, como vimos no episódio da surra em Joyce, mas, sim, à postulação de uma hiância entre o imaginário e o real. Importa salientar, como horizonte dessa clínica, o recurso inevitável do imaginário para “imaginar o real”[37]. Porém, é nesse ponto da hiância que a inibição incide e se encorpa. Ainda que articulada às imagens, a inibição se edifica como o principal fator de impedimento para a imaginarização do real.
INIBIÇÃO
IMAGINÁRIO // REAL
Por fim, cabe afinar ainda mais a tese de que o imaginário é o corpo se faz presente no final de análise? Evoca-se aqui o comentário que faz Éric Laurent sobre uma passagem do seminário L’insu que sait de l’une bévue, de que aquilo “que o homem sabe fazer com sua imagem corresponde de alguma forma (…) à maneira de como ele se vira com o sinthoma”[38]. Ao reconhecer a equação entre o ‘se virar com o sintoma’ e o ‘se virar com a imagem’, Lacan leva às últimas consequências sua contribuição de que, para imaginarizar o real, não se dispensa o recurso ao imaginário e que, de modo algum, se escapa da metáfora. O imaginário é o próprio alicerce do tecido do inconsciente e “o tecido isso se imagina somente (…) e tudo o que acontece para imaginar se extrai do próprio Imaginário”[39]. Tudo indica que, no tocante ao enodamento RSI, o final de análise concerne essa hiância entre o Imaginário e o Real na medida em que nela se ergue o muro da inbição.
Por fim, essa reabilitação do imaginário em detrimento do simbólico na clínica do sinthoma, aponta para a insuficiência de toda descrição ou representação autoficcional do real. O acréscimo a ser feito é o de que o sintoma se escreve como inibição, sobretudo quando se trata do homem e de sua fixação no parceiro objeto olhar, nada fácil de ser arrancável. Claro, isso não se escreve em uma escrita objetivável, pois o que está em questão é o tecido do inconsciente que se confecciona em torno da não-relação com o corpo do Outro. Se virar com o parceiro-sinthoma, quando se está diante da inexistência da relação sexual, é se virar com esse tecido que se aguenta por meio dos furos e restos do gozo. Dizer que o ser falante se vira com o parceiro sexual como se vira com a própria imagem é dizer que se vira com a imaginarização do que faz furo no real por meio do gozo pulsional.
Se o gozo do corpo do Outro inexiste, não se toma o narcisismo inerente à escolha amorosa como impedimento, na medida em que o próprio imaginário se coloca como prova do que se sabe fazer com o parceiro-sintoma. O papel do imaginário como tal assume um valor efetivamente decisivo e fundamental. Não se está mais na época do imaginário depreciado e subjugado pelo simbólico, pois o próprio imaginário fornece uma coordenada a mais, para viver em um mundo em que prevalece o império da imagem. Enfim, saber se virar com a imagem é saber se virar com aquilo que no corpo se goza, via sintoma, e é isso que permite o saber se virar com o parceiro-sinthoma.
Figura 1
O imaginário na clinica lacaniana
[1]LACAN, J. Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines, Scilicet, Seuil, Paris, 1976
, n. 6-7, p. 54.
[2]Idem, ibidem.
[3]LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 96-103. (Trabalho original proferido em 1949), p. 97.
[4]Idem, ibidem.
[5]MILLER, J.-A. Piezas sueltas (2004-05). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 57-58.
[6]LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76), p. 135.
[7] “A antiga noção de inconsciente, o Unerkannt, apoiava-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo. O inconsciente de Freud é justamente a relação que há entre um corpo que nos é estranho e alguma coisa que faz círculo, ou mesmo reta infinita […].” (LACAN, 1975-76/2007, p. 145, grifo nosso).
[8]“Coisa em que ele não pensaria, supomos, se esse corpo que tem, ele verdadeiramente o fosse.” Cf.: LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975), p. 565.
[9] MILLER, 2013, p. 65.
[10] LACAN, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69), p. 93.
[11] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73), p. 178.
[12] LACAN, 1975/2003, p. 565.
[13] LACAN, 1975-76/2007, p. 61-62.
[14] Idem, p. 63.
[15] Idem, ibidem.
[16] MILLER, 2013, p.18.
[17] Idem, p. 21.
[18] LACAN, 1975-76/2007, p. 161.
[19] JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 78.
[20] LACAN, 1975-76/2007, p. 145.
[21]Idem, p. 146.
[22] Idem, ibidem.
[23] SAUVAGNAT, F. Du détail pictural ‘non significatif’ aux phenomènes elementaires discrets: un brève parcours, 2015. Disponível em: https://www.amp-nls.org/fr/nls-messager/nls-minute-20/. Acesso em: 01 mai. 2024.
[24] LACAN, 1975-76/2007, p. 147.
[25] Idem, p. 146.
[26] Idem, ibidem.
[27] MALEVAL, J.-C. Élements pour une appréhension clinique de la psychose ordinaire, Paris: Navarin, 2003, p. 14.
[28] LACAN, 1975-76/2007, p. 146.
[29]LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, Contracapa, Rio de Janeiro, 2016, p. 131.
[30]MALEVAL, 2003, p. 14-15.
[31]LACAN, 1975-76/2007, p. 91.
[32]Idem, ibidem. (Grifo do autor).
[33]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.
[34]Ver a esse respeito: in: LAURENT, É., 2016, p. 66.
[35]LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre [Aula de 19 de abril], Ornicar?, n. 17–18, Paris.
[36]MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan (2006-07). Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 256.
[37]Idem, p.
[38] LAURENT, É. Hablar con el propio síntoma, hablar con el propio cuerpo. 2013. Disponível em: https://elp.org.es/hablar-con-el-propio-sintoma/. Acesso em: 01 mai. 2024.
[39]Lacan, J.
Eixos de Trabalho
Eixos de Trabalho[*]
This is a custom heading element.
Coordenador da 27ª. Jornada da EBP-MG
Atualmente, a clínica das neuroses tem sido marcada por impasses no diagnóstico e na localização da demanda que dificultam a direção do tratamento. Deparamo-nos com casos nos quais a trama edípica não se evidencia como balizadora, mas que não se configuram como psicoses. Como sustentar uma prática psicanalítica que leve em consideração as novas formas de apresentação das neuroses no século XXI? Como poderíamos localizar e tratar os neuróticos, se temos dificuldades para encontrar em muitos deles a referência ao Nome-do-pai, o consentimento com a castração, a disjunção entre o significante e a pulsão? Como conceber a neurose sem necessariamente nos referirmos ao Outro? São questões que mobilizam a investigação da 27ª Jornada da EBP-MG.
EIXO 1: Onde estão os neuróticos e de onde não saem
Histeria e neurose obsessiva se mantêm ainda como as duas principais neuroses destacadas desde Freud. Mas elas nem sempre se apresentam como antes.
No caso da neurose histérica, classicamente, a recusa do feminino a manteria cativa do corpo do Outro. Seja quando se dirigisse à Outra mulher como aquela que decifraria o enigma da feminilidade, seja quando se entregasse à devastação na parceria amorosa. No entanto, são frequentes, hoje, os casos em que o sujeito histérico parece se recusar a colocar-se como sintoma do corpo do Outro, a consentir que sua satisfação passe pelo Outro. São casos em que o corpo se apresenta como Um sozinho, imerso no império da imagem, assolado por procedimentos estéticos, dietas sem fim ou, ainda, pela repulsa às relações amorosas devido à afirmação de uma identidade d’A mulher que não admite equívocos.
Na neurose obsessiva, por sua vez, o pensamento seria a via privilegiada para regular a satisfação do corpo situando o falo como o valor por excelência ao qual todos os objetos se reduziriam. Contudo, em uma época marcada pela queda do falocentrismo, os obsessivos parecem encontrar grandes dificuldades para lidarem com a satisfação que lhes toma o corpo. Suas ruminações parecem se esvaziar ou lhes remeterem à difundida “síndrome do impostor”. A ascendência do olhar persiste para os obsessivos, mas sob novas condições. Não tanto sob o véu da interdição que os impelia e mortificava, mas muito mais incitada por uma urgência de satisfação, por uma cativação com a imagem à qual cedem sem pensar. É o que encontramos, por exemplo, na profusão em massa da pornografia e na adição ao mundo dos games. Esses modos de satisfação também podem vir acompanhados de um desinteresse sexual difuso, uma desilusão contumaz com os estudos ou com a profissão, um tédio e mau humor incorrigíveis, uma persistente escolha pelo isolamento social e um distanciamento do que poderia conferir mais iniciativa na vida.
Podemos dizer que, nas mutações atuais da histeria ou da neurose obsessiva, o que prevalece é a inibição frente ao sexual? Mesmo quando nelas encontramos uma profusão de referências ao sexo? O que se manifesta como real na vida parece lhes bloquear a existência, não permitindo avançar, mesmo quando se mostram descolado(a)s em suas escolhas, inclusive naquelas concernentes à sexualidade. Quais registros a prática psicanalítica recolhe dessa inibição?
Nesse contexto em que os referenciais simbólicos classicamente norteadores das neuroses não se evidenciam mais tão facilmente, a elucidação que Miller faz do chamado “ultimíssimo Lacan” torna-se decisiva[1]. Trata-se de um ensino marcado pela premissa da inadequação do simbólico para abordar o real, o que nos conduz à proposição de que o imaginário é a única via para essa abordagem.
Nesse “momento de concluir” de seu ensino, Lacan, citado por Miller[2], ressalta que a existência de uma hiância entre o imaginário e o real produz uma inibição, uma inibição em “‘imaginar o real’”. A hiância já se fazia presente nas concepções freudiana e lacaniana das neuroses, seja na demarcação da cisão do eu, seja na apresentação do inconsciente como não realizado, como fenda. Tratava-se de um esforço em abordar o real a partir do simbólico, enquanto o imaginário se impunha como um obstáculo nesse percurso. Porém, situar a hiância entre imaginário e real implica uma torção pela qual é o simbólico que aparece como obstáculo. Há um impedimento ao ultrapassamento dessa hiância, na medida em que o imaginário está subordinado ao simbólico. Contudo, em nosso mundo onde os referenciais simbólicos se calam e as imagens se exibem, essa hiância aparece mais exposta.
Vale, então, investigar se a inibição para se imaginar o real não se constituiria, hoje, como um “fato clínico”[3] determinante para a experiência analítica das neuroses e que precisamos elucidar. No que concerne também às neuroses, uma análise, ao franquear outro modo de experimentar a satisfação do sintoma, permitir-nos-ia sair dessa inibição? Imaginar o real implicaria manipulá-lo a partir da imagem, do visual[4], desembaraçando-se da captura da imagem pelas palavras? O que se fixa como visual nas vidas dos neuróticos, uma vez localizado e tratado em uma análise, conferiria à imagem um novo estatuto?
CITAÇÕES EIXO 1 – Freud, Lacan e Miller
FREUD, S. O ‘estranho’. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996, pp.254-256. (Trabalho original publicado em 1919).
O fator da repetição da mesma coisa não apelará, talvez, para todos como fonte de uma sensação estranha. Daquilo que tenho observado, esse fenômeno, sujeito a determinadas condições e combinado a determinadas circunstâncias, provoca indubitavelmente uma sensação estranha, que, além do mais, evoca a sensação de desamparo experimentada em alguns estados oníricos. Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima ‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
Não é à toa que Freud insiste na dimensão essencial dada pelo campo da ficção a nossa experiência do unheimlich. Na vida real, este é fugidio demais. A ficção o demonstra bem melhor, chega até a produzi-lo como efeito de maneira mais estável, por ser mais bem articulada. Trata-se de uma espécie de ponto ideal, mas sumamente precioso para nós, já que esse efeito nos permite ver a função da fantasia. (Lição de 5 de dezembro de 1962 – Além da angústia de castração, p. 59)
O que quero acentuar hoje é apenas que o horrível, o suspeito, o inquietante, tudo aquilo pelo qual traduzimos para o francês, tal como nos é possível, o magistral unheimlich do alemão, apresenta-se através de claraboias. É enquadrado que se situa o campo da angústia. Assim vocês reencontram aquilo por meio do qual introduzi a discussão, ou seja, a relação da cena com o mundo. “Súbito”, “de repente” – vocês sempre encontrarão essas expressões no momento da entrada do fenômeno do unheimlich. Encontrarão sempre em sua dimensão própria a cena que se propõe, e que permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito. (Lição de 19 de dezembro de 1962 – Introdução à estrutura da angústia, p.86)
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário, e a geometria específica, original, que é a dos nós, tem como efeito exorcizá-la. Mas que haja alguma coisa que permita exorcizá-la é certamente, em si mesma, estranho. (…)
Nesse esquema, o imaginário desdobra-se segundo o modo dos dois círculos, o que pode ser notado com um desenho. Direi que um desenho nada nota, na medida em que, ao ser planificado, fica enigmático. Portanto, indico aqui, na articulação do imaginário do corpo, alguma coisa como uma inibição específica que se caracterizaria especialmente pela inquietante estranheza. Eis onde me permitirei notar, pelo menos provisoriamente, o lugar da tal estranheza. (Lição de 16 de dezembro de 1975 – Do nó como suporte do sujeito, p. 47)
MILLER, J.-A.- Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimísimo Lacan – texto estabelecido por Silvia Tendlarz e traduzido por Stéphane Verley. Buenos Aires : Paidós, 2014, p. 258 e 259:
De hecho, lo simbólico tiende a proseguirse en lo imaginario, por eso Lacan pone en continuidad el sueño, la poesía, la filosofía, el fantasma y el delirio, que son todos modos en los que se ve lo simbólico pasar a lo imaginario. De lo que se trata en el sentido del último Lacan, para captar lo que ocurre en un psicoanálisis, para captar lo que llama la tela de un psicoanálisis, es de superar la hiancia entre lo imaginario y lo real.
Es el sentido que le doy a esta proposición enigmática del seminario “El momento de concluir”, a saber, “Si hacemos una abstracción sobre el análisis, lo anulamos”. ¿Qué es hacer una abstracción sobre el análisis? Es ordenarlo según el orden simbólico. ¿Y qué se pierde en esta abstracción? Lo que se pierde es el tejido, es la tela. Con esta topología del toro en su ultimísima enseñanza, Lacan nos da “una geometría del tejido, del hilo y de la malla”.
De este modo entiendo el tiempo lógico de “El momento de concluir”, que en el fondo está animado por un aserto de certidumbre anticipada que consiste en plantear la primacía del cuerpo. En el silencio de lo real, y mientras que siempre hay que desconfiar de lo simbólico que miente, solo queda el recurso a lo imaginario, es decir, al cuerpo, es decir, al tejido.
MILLER, J.-A.- Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimísimo Lacan – texto estabelecido por Silvia Tendlarz e traduzido por Stéphane Verley. Buenos Aires : Paidós, 2014, p. 194:
Justamente porque lo simbólico no es adecuado a lo real, porque lo simbólico solo está asociado a lo real por el fantasma en tanto sugestión imaginaria, hay que intentar asociar lo real y lo imaginario, intentar imaginar lo real.
Esa es, me parece, la clave de todas estas manipulaciones de Lacan en su ultimísimo enseñanza. Imaginar lo real pasa por esta extraña materialización que constituyen estas figuras, que son figuras de objetos – materialización que es, dice Lacan en un momento, “una materialización del hilo del pensamiento”. Relaciono esto con otra frase: “El análisis es un hecho social que se basa en el pensamiento”.
EIXO 2: A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário
Freud localizou o fantasma como objeto de uma construção em análise. Ou seja, o fantasma implicaria, para o analista, um recurso diferente da interpretação para que se pudesse discernir qual o axioma que se apresenta, em cada analisante, como uma formulação sobre o próprio ser. Por isso, Freud se dedicou à elucidação do que se apresentava como cena fantasmática, uma história que compõe um cenário com suporte simbólico e representações imaginárias. Lacan, por sua vez, pôde destacar, na própria cena fantasmática, o que se configura como uma tela para o real, para o irrepresentável, um anteparo com o qual cada analisante tenta defender-se da incógnita relativa a seu próprio ser. Foi essa concepção da tela que permitiu a Lacan propor-nos uma travessia do fantasma. Tratar-se-ia de ultrapassar o que se localiza, em análise, como uma identificação ao objeto do fantasma. Essa travessia revela uma verdade que tem efeitos de deflação do desejo. Contudo, ultrapassar o impasse quanto ao desejo não resolve o impasse com a satisfação do corpo. Atravessar a inércia imaginária da tela do fantasma não dissipa a reiteração de um gozo opaco.
O ultimíssimo Lacan retoma esse impasse com uma proposta que nos parece problematizar a travessia do fantasma. Como elucida Miller, o fantasma passa a ser apresentado por Lacan como um girar em círculos que não encontra saída. Ou seja, mesmo que se ultrapasse a identificação ao objeto, o fantasma continua existindo. Abordar o fantasma como um girar em círculos sem saída é o que nos aproxima do que Miller destaca, no Seminário 25 de Lacan, quando este diz que “‘o despertar é impensável’”[5]. Nesse sentido, poderíamos indagar se a noção de debilidade mental, destacada por Lacan nesse momento, elucidaria o que se passa com os neuróticos de hoje.
De todo modo, um problema se impõe: como uma análise pode, então, operar e dar provas de sua eficácia? Uma via seria os neuróticos passarem a se virar com um corpo estranho que, embora lhes seja pregnante, não encontra abrigo nem na imagem de si referente ao próprio eu, nem no que se localizou como o objeto do fantasma. A experiência dessa estranheza que ao mesmo tempo atrai e afasta pôde ser localizada por Freud como Unheimlich, o estranhamente familiar, a inquietante estranheza ou, também, como se tem traduzido, o “infamiliar”[6]. Lacan, em seu último ensino, localiza a inquietante estranheza no imaginário do corpo, na medida em que o corpo é impelido por uma satisfação que, por seu efeito perturbador, imprime uma espécie de mancha na imagem ideal do corpo próprio, do eu. O Unheimilich mostraria, então, aquilo que o fantasma recobre: é uma imagem do real na qual certo modo de gozo se fixou e que os neuróticos tentam expulsar como um corpo estranho, intrusivo, um excesso que extrapola o enquadre fantasmático, desagrega a imagem do corpo próprio e não encontra seu devido lugar quando se fala.
Como localizar a manifestação desse corpo estranho na clínica das neuroses? Poderíamos dizer que sua presença está obscurecida no que, hoje em dia se apresentam como crises de pânico, automutilações, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, hiperatividade etc.? Como operar com essa inquietante estranheza que o fantasma fracassa em conter e que se impõe ao neurótico? Qual resposta uma análise pode conferir ao excesso que assola os corpos dos neuróticos sob a forma de urgência de satisfação?
Uma via parece se abrir com o que Miller localiza, no ultimíssimo Lacan, em um termo que pode ser elevado à dignidade de uma orientação clínica: a esfoliação. Trata-se, graças à redução ao fantasma, de esfoliar o imaginário[7], o imaginário do corpo e mesmo a imagem diante da qual os neuróticos experimentam o que lhes parece infamiliar. Trata-se de destacar, na experiência analítica, os modos pelos quais a pele necrosada que mantinha o corpo próprio capturado na imagem do objeto passa por um processo de esfoliação. Por fim, como essa esfoliação do imaginário nos auxiliaria a discernir, na clínica da neurose, o modo como operamos com o gozo do sintoma?
CITAÇÕES EIXO 2 – Lacan e Miller
LACAN, J. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Tradução Cláudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Trad. (Trabalho original proferido em 1958-59).
O sujeito evanescente, que desvanece em certa relação com um objeto eletivo – é essa a relação que lhes designo por meio da fantasia. A fantasia tem sempre essa estrutura. Não é simplesmente relação de objeto. É algo que corta. É certa evanescência, certa síncope significante do sujeito em presença de um objeto. (Lição de 28 de janeiro de 1959 – A imagem da luva pelo avesso, pg.192)
LACAN, J. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Tradução Cláudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Trad. (Trabalho original proferido em 1958-59).
O que foi promovido, primeiramente por Freud, no nível analítico sob o nome do Unheimlich (…) não está ligado, como alguns acreditaram, a irrupções do inconsciente, mas sim a esse tipo de desequilíbrio que se produz na fantasia quando, ultrapassando os limites a ela atribuídos de início, ela se decompõe e vem se juntar à imagem do Outro. (Lição de 15 de abril de 1959 – Sete lições sobre Hamlet, p. 344)
Em ambos os casos, o sujeito é indicado na fantasia pelo que chamamos de “fenda’, de hiância, algo que, no real, é ao mesmo tempo buraco e lampejo, na medida em que o voyeur espia por trás de sua persiana, que o exibicionista entreabre seu anteparo. Aqui, o sujeito é indicado pelo seu lugar no ato. Ele nada mais é que esse lampejo do objeto a que nos referimos e que é vivido, percebido, pelo sujeito como a abertura de uma hiância que, por sua vez, o situa como aberto. Aberto para quê? Para outro desejo que não o seu, estando este seu desejo profundamente afetado, atingido, abalado pelo que é percebido no lampejo. (Lição de 10 de junho de 1959 – A dialética do desejo no neurótico, p.453)
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Trabalho original proferido em 1960-61).
“Ora, é na própria medida em que algo se apresenta como revalorizando o tipo de deslizamento infinito, o elemento dissolutivo trazido ao sujeito, por si mesmo, pela fragmentação significante, que ele assume valor de objeto privilegiado, que estanca esse deslizamento infinito. Um objeto pode assumir também, com relação ao sujeito, esse valor essencial que constitui a fantasia fundamental. O próprio sujeito se reconhece ali como detido, ou, para lembrar-lhes uma noção mais familiar, fixado. Nessa função privilegiada nós o chamamos a. E é na medida em que o sujeito se identifica à fantasia fundamental que o desejo como tal assume consistência, e pode ser designado, que o desejo, também, de que se trata para nós está enraizado, por sua própria posição, na Hörigkeit; isto é, para utilizar a nossa terminologia, que ele se coloca no sujeito como desejo do Outro, grande A.” (Lição de 1º. de março de 1961 – A transferência no presente, p. 214-215)
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
“É o neurótico que, ao mesmo tempo, lhes revela a fantasia em sua estrutura, por causa do que faz com ela, mas que também, pelo que faz com ela, tapeia vocês, como tapeia todo o mundo. De fato, como lhes explicarei, o neurótico se serve de sua fantasia para fins particulares. O que acreditamos perceber como sendo, por baixo da neurose, a perversão, e de que lhes falei em outras ocasiões, é simplesmente o que lhes estou explicando, a saber, que a fantasia do neurótico está inteiramente situada no lugar do Outro. (Lição de 5 de dezembro de 1962 – Além da angústia de castração, p. 60)
É essencial apreender a natureza da realidade do espaço como espaço tridimensional, para definir a forma assumida no estágio escópico pela presença do desejo, a saber, como fantasia. Trata-se de que a função da moldura, da janela, entenda-se, que tentei definir na estrutura da fantasia não é uma metáfora. Se a moldura existe, é porque o espaço é real. (Lição de 12 de junho de 1963 – A torneira de Piaget, p. 309)
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
O real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real. (Lição de 29 de janeiro de 1964 – Do sujeito da certeza, p. 43-44)
O lugar do real, que vai do trauma a fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição – aí está o que precisamos demarcar agora. Aí está, de resto, o que, para nós, explica ao mesmo tempo a ambiguidade da função do despertar e da função do real nesse despertar. (Lição de 12 de fevereiro de 1964 – Tiquê e Autômaton, p.61)
É para além da função do a que a curva se fecha, lá onde ela jamais é dita, concernente à saída da análise. A saber, depois da distinção do sujeito em relação ao a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão. O que se toma então aquele que passou pela experiência dessa relação, opaca na origem, à pulsão? Como, um sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão? Isto é o mais além da análise, e jamais foi abordado. Isto só é, até o presente, abordável, no nível do analista, na medida em que seria exigido dele ter precisamente atravessado em sua totalidade o ciclo da experiência analítica. (Lição de 24 de junho de 1964 – Em ti mais do que tu, p.258)
LACAN, J. (1966-67) El Seminario, libro 14. La lógica del fantasma. Texto establecido por Jacques Alain-Miller. Traducción de Gerardo Arenas. Buenos Aires: Ediciones Paidós,2023.
Entonces, ¿cómo definiremos realidad? Como lo que recién llamé lo listo para usar el fantasma, es decir, lo que constituye su orden. Veremos, pues, que la realidad, toda la realidad humana, no es otra cosa que montaje de lo simbólico y de lo imaginario. El deseo, que está en el centro de este aparato, de este marco que hemos llamado realidad, es también, según lo que articulé desde siempre, lo que cubre aquello que en sentido estricto es lo real. Es importante distinguir entre lo real y la realidad humana. Lo real nunca es más do que vislumbrado, vislumbrado cuando vacila la máscara – la del fantasma. (Aula de 16 de novembro de 1966 – Promesa de una lógica, p. 17)
Otro punto -por ahora, leo a Freud, lo repito-: el fantasma tiene el privilegio de ser más inconfesable que cualquier otra cosa. Cabría detenerse largamente en el término inconfesable, que incluye muchas cosas; para permanecer en el nivel de abordaje impreciso del año 1919 en que esto fue escrito, digamos que el fantasma pende del sentimiento de culpa como una cereza del pedúnculo, y que Freud se detiene allí para relacionarlo con lo que llama una cicatriz: la del complejo de Edipo. Esto nos inclina a decir que, por el modo en que surgió en nuestra experiencia, el fantasma participa del aspecto experimental del cuerpo extraño. (Aula de 14 de junho de 1967 – El sadico y el masoquiata, p. 325)
La distancia entre la función del fantasma – tal como lo imaginamos nosotros, pobres neuróticos- en el nivel llamado perverso, y su función en el registro neurótico, es exactamente – diré- la que va del dormitorio al baño.
Termino en esto para hacer clínica. ¿Acaso hay dormitorios, aun cuando no hay acto sexual? Aparte del de Ulises, donde la cama es un tronco enraizado en el suelo, esto deja serias dudas sobre el tema de los dormitorios, especialmente en nuestra época en que todas las cosas se balancean en la pared. Pero, en fin, es un lugar que, al menos teóricamente, existe. Pese a todo, hay una distancia entre el dormitorio y el baño. Presten atención, que todo lo que sucede con el neurótico pasa esencialmente en el baño o en la antecámara -es lo mismo. (…)
Si quieren precisiones, la fobia puede tener lugar en el armario de la ropa, o en el pasillo, en la cocina. La histeria tiene lugar en el parlatorio- el parlatorio de los conventos de monjas, por supuesto. La obsesión, en el cagadero (…)
Todo esto nos lleva a la puerta que los invitaré a franquear (…) la de un dormitorio en el que no pasa nada, salvo que el acto sexual se presenta en él como forclusión en sentido estricto: verwerfung. Este dormitorio es lo que se suele llamar el consultorio del analista.
(Aula de 21 de junho de 1967 – El axioma del fantasma, p. 351)
LACAN, J. O Seminário, livro 19: … ou pior. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. Trad. (Trabalho original proferido em 1971-72).
Vocês só gozam com suas fantasias. É isso que daria peso ao idealismo, que ninguém, por outro lado, apesar de ele ser incontestável, leva a sério. O importante é que suas fantasias gozam de vocês. (Lição de 8 de março de 1972 – O Outro: da fala à sexualidade, p. 110)
Trata-se, na psicanálise, de elevar a impotência (aquela que dá conta da fantasia) à impossibilidade lógica (aquela que encarna o real). (Anexos. Resumos do Seminário 19. Publicado no Anuário da Escola Prática de Estudos Superiores, 1972-1973, p.235)
MILLER, J.-A. Silet – Os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Trad.: Celso Rennó Lima. Texto estabelecido por Jésus Santiago e Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005, p. 251
“Temos acentuado tudo o que é da ordem simbólica na fantasia. Mas, ao mesmo tempo, não podemos eliminar-lhe o componente imaginário: uma fantasia sem imagem não tem, para nós, significação.”
MILLER, J. -A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2018, p. 16
“Si Lacan habla de “atravesamiento del fantasma”, por el contrario, y no de “levantamiento del fantasma”, es porque no se trata de ninguna manera de su desaparición. Se trata de entrever, en el primerísimo comienzo, lo que hay detrás. Lo divertido es que detrás del fantasma no hay nada. El final de análisis consiste precisamente en ir a dar una vuelta por el lado de la nada.”
MILLER, J. -A. Del Síntoma al fantasma. Y retorno. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller. 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2018, p.28
“El fantasma tiene una estructura temporal estrictamente puntual, absolutamente elemental. El tiempo propio del fantasma es el instante. Por supuesto que puede estar preparado con uno pequeña historia, pero fundamentalmente el corazón del fantasma es un instante, podemos decir incluso ‘un instante de ver’, para respetar lo que el fantasma le debe a la dimensión imaginaria.”
MILLER, J. -A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2018, p. 99.
“El fantasma no suscita la demanda. El fantasma en el sujeto suscita su propio asombro. Incluso el sujeto se siente extraño especialmente en relación con su fantasma. No se siente totalmente extraño a partir de su síntoma, porque hace nacer de él una demanda al Otro, y esa demanda nos humaniza. Por el contrario, a nivel del fantasma el sujeto es más susceptible de sentirse inhumano. Está persuadido de que si se tuviera verdaderamente una idea de su fantasma, solo merecería el estatuto de desecho”.
MILLER, J.-A – Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El lugar y el lazo. Tradução de Gerardo Arenas. Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 115.
“La transgresión del goce y el atravesamiento del fantasma son homólogos. La misma conceptualización sostiene la noción de que hay que atravesar una barrera para tener acceso al goce y la noción de que en el análisis hay que ir más allá del síntoma para tocar y atravesar el fantasma. Son términos que se corresponden mutuamente y con la noción de un hasta el final”.
MILLER, J.-A – Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El lugar y el lazo. Tradução de Gerardo Arenas. Buenos Aires: Paidós, 2020 p. 153.
“Cuando nos situamos en la perspectiva de lo simbólico, es como si el fantasma fuese algo real. Pero como todo el esfuerzo de la última enseñanza de Lacan consiste justamente en desprenderse de esta perspectiva de lo simbólico, bien podría ser que ese objeto a atribuido a lo real no sea más que un semblante, y un semblante que no llega más lejos que el ser. En este punto hay que distinguir seriamente entre el ser y lo real, cuya diferencia vemos transitar por el seminario Aún.”
MILLER, J.-A – Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El lugar y el lazo. Tradução de Gerardo Arenas. Buenos Aires: Paidós, 2020 p. 347.
“La expresión “atravesamiento del fantasma” retorna la expresión “atravesamiento del plano de la identificación” que ya figura en el seminario Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, y significa finalmente la institución de una no relación entre $ y a y el surgimiento de un real.”
MILLER, J.-A.-Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El Otro que no existe y sus comités de ética (con colaboración de Éric Laurent). Traducido por: Nora González. 1a ed., Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 461.
Después del atravesamiento del fantasma, surge de la pulsión el síntoma como algo para manipular o incluso para identificarse o arreglárselas con él. Por un lado, lo que hay que atravesar y por otro, lo que hay que manipular. Por un lado el velo para levantar y por otro, lo que queda y con lo que hay que arreglárselas.
MILLER, J.-A.- Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimísimo Lacan – texto estabelecido por Silvia Tendlarz e traduzido por Stéphane Verley. Buenos Aires : Paidós, 2014, p.193
Entendemos con eso lo que Lacan intenta con la topología. Intenta salir del fantasma geométrico. A este intento no le encontré mejor ilustración que esta frase que suelta al pasar en la última clase de El momento de concluir: “No hay nada más difícil que imaginar lo real”.
MILLER, J.-A.- Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimísimo Lacan – texto estabelecido por Silvia Tendlarz e traduzido por Stéphane Verley. Buenos Aires : Paidós, 2014 p.274.
La cuarta tesis es la primacía de lo imaginario. Primero, es la primacía de lo imaginario de lo simbólico, que nos da lo razonable o la geometría, es decir, en definitiva, un fantasma que Lacan llama lo simbólicamente imaginario. Lo imaginario está incluido en lo simbólico y hace deslizar muy naturalmente nuestras elucubraciones hacia el fantasma, la poesía y el delirio.
Lacan opone a este simbólicamente imaginario -ya lo dije – el imaginar lo real, es decir, lo que podríamos traducir, aunque el término no esté en el seminario, lo realmente imaginario. Allí, lo imaginario está incluido en lo real.
MILLER, J.-A.- Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimísimo Lacan – texto estabelecido por Silvia Tendlarz e traduzido por Stéphane Verley. Buenos Aires : Paidós, 2014 p. 275
Lacan dice lo siguiente: “Para que lo imaginario se exfolie, alcanza con reducirlo al fantasma”. Saben lo que significa exfoliar. Exfoliar una planta es hacer caer sus hojas.
Miller, J.-A – Extimidad – Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por Graciela Brodsky. Traducción y transcripción: Nora A. Gonzalez. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 147:
(…) pero también en este camino de atravesamíento, por cuanto surge de la vacilación, hasta del desvanecimiento de lo simbólico, se deja entrever lo real que el fantasma cubría.
Miller, J.-A – Extimidad – Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por Graciela Brodsky. Traducción y transcripción: Nora A. Gonzalez. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 260:
Ahora debemos distinguir de esta escritura el $ ◇ a propiamente dicho, donde a ya no es la imagen del semejante sino, para utilizar la expresión de Lacan, “apéndice del cuerpo”
De todas maneras, la fórmula del fantasma vincula al sujeto como efecto del significante con un elemento que en todos los casos, ya sea la forma total del cuerpo del Otro o un apéndice del cuerpo, le es heterogéneo porque es imaginario. De aquí en más, en toda la enseñanza de Lacan la problemática del objeto a seguirá siendo esta: ¿cómo un término que depende del significante puede articularse con un elemento que le es heterogéneo?
MILLER, J.-A.: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: la experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. – texto establecido por Graciela Brodsky e transcrito por Nora A. González. 1a ed. 4a. reimp., Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 255
“(…) el atravesamiento del fantasma finalmente es una variante del paradigma de la transgresión, es la transgresión montada en el análisis como fin del análisis, y con la invitación de ir más allá, en la dirección del vacío, de la destitución del sujeto, de la caída del sujeto supuesto saber y de la asunción del ser de goce.”
MILLER, J.-A.: La fuga del sentido. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Silvia Naldini e estabelecimento por Silvia Elena Tendlarz. 1a.ed., Buenos Aires Paidós, 2012, p 298.
La fórmula que Lacan propone del fantasma ($ ◇ a) estaba hecha para indicar que lo que colma la falta en ser simbólica del sujeto es una imagen, algo imaginario. Ese colmar mismo es el fantasma. Evidentemente, Lacan ya había hecho de esta imagen que colma una imagen significante, pero eso continúa siendo una imagen. Entonces, ¿qué es lo que resta como imaginario que no puede ser evacuado de la estructura del sujeto? Si es un resto irreductible, entonces es un real. Por otra parte, esta proposición según la cual lo imaginario es un real la encuentran explícitamente en el seminario “R.S.I.”.
MILLER, J.-A.: La fuga del sentido. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Silvia Naldini e estabelecimento por Silvia Elena Tendlarz. 1a.ed., Buenos Aires Paidós, 2012, p. 313
Por lo tanto, lo que permanece constante en Lacan es esta noción de un sistema con resto. Pero -lo dije la última vez al pasar- ¿qué es ese resto? En un primer tiempo, Lacan dice, conforme a esta articulación ternaria, que es un resto imaginario. Es un elemento imaginario que no llega a ser simbolizado y que encontramos en la fijeza del fantasma.
Lacan hace del fantasma una formación imaginaria. Luego, en la medida en que es un resultado imposible de eliminar, decide llamarlo real, llamar real al resto imposible de eliminar. Sorprende a su auditorio después de su Seminario 11, en el “Seminario 13”, creo, diciendo que el objeto a es real. Sorprende a todo el mundo porque hasta ese momento se empeñaba en mostrar el carácter imaginario del objeto a, y es como si su rasgo de ser imposible de eliminar, de resistir a la operación significante, descubriera una fase más profunda de su estatuto, su estatuto real.
EIXO 3: Quando tudo é normal, o que se analisa?
O complexo de Édipo foi concebido por Freud como fundamento da realidade nas neuroses. Sua tradução, por Lacan, em termos de metáfora paterna, demarcou – sem excluir a psicopatologia da vida cotidiana – as fronteiras do que pode ser tomado como normalidade. Concebia-se como normal o que se mantinha nos trilhos da referência ao pai. Porém, o declínio da função paterna, experimentado como um acontecimento civilizatório, tem incidências diretas sobre a norma edípica, diluindo os limites que estabeleciam o que é conveniente ser e fazer.
Uma palavra de ordem se insurgiu, já há algumas décadas, e compõe, hoje, a ordem do dia: é proibido proibir. Vivemos as consequências de que, em nossa civilização, uma interdição soa como autoritarismo. Nessa perspectiva, tudo é normal, todo modo de satisfação deve ser permitido. Trata-se da insistência de um normal que parece extrapolar a interdição paterna. Um normal para o qual não se localiza um ponto de referência além da própria satisfação. Um normal que não só promete se abrir a toda forma de existência, mas que incita o gozo a se exibir sem limites e sem se deixar afetar pelos equívocos do inconsciente. Podemos indagar se esse normal se pauta no que Lacan nos ensinou a escutar na lei do supereu, que paradoxalmente ordena: “Goza!”.
Não é incomum que, hoje, sejamos procurados por neuróticos que não trazem nenhum mal-estar enredado à trama familiar, que não expõem qualquer questão sobre o que fazer com o furo que lhes apresenta o real do sexo ou mesmo que não sabem o que dizer sobre sua demanda de se tratar e sobre o que lhes faz sofrer. Muitas vezes, os encontros periódicos com o analista se compõem como narrativas de fatos cotidianos e repetitivos, amostras do que se acessou em ambientes virtuais e uma dedicação persistente às obrigações às quais os analisantes se sentem normalmente impelidos. Também não é raro quem vai à análise para expor seu silêncio, para mostrar o que o emudece sem, no entanto, conseguir efetivamente dizer a que veio.
Nessa narração que não comporta lacuna, nesse silêncio das perturbações do inconsciente, nessa proliferação de conteúdos virtuais de texto ou de imagens, seria a voz do supereu que atua como força motriz? Seria essa “‘força demoníaca’”, como ainda diz Lacan no Seminário 25 citado por Miller[8], que ainda se impõe no campo devastado do Outro e se reduziria, sobretudo hoje, a uma satisfação muito mais anônima e silenciosa? Afinal, atualmente, testemunhamos, muitas vezes, uma análise se enredar em um dar voltas sem cessar, no qual, mesmo que os analisantes digam não ter o que dizer, algo os impele a mostrar o que os captura. Nessa incitação a que algo se exiba, estaríamos lidando com a incidência do supereu?
Miller extrai do Seminário 25 uma proposta que nos parece bastante oportuna para a clínica de nossos tempos: a transferência coloca em jogo um “suposto saber como operar”[9]. Essa operação implica um saber fazer com a imagem: onde a palavra se cala, o analista poderá apontar com o dedo, mostrar o equívoco, o que deforma e faz furos na imagem. Trata-se, então, de manipular o imaginário que se exibe desprendido da fala.
Nessa operação que visa abordar o real a partir da imagem, poderíamos ainda sustentar o sonho como uma via régia? Em seu Seminário 11, Lacan havia isolado, em A interpretação dos sonhos, um sonho que, segundo ele, distinguia-se de todos os outros relatados ali por Freud. Lacan ressalta deste sonho a voz que levou ao despertar: “Pai, não vês que estou queimando?”. Mas em vez de abordar essa frase apenas como uma construção significante, ele nos parece dar-lhe o estatuto de uma imagem que incide sobre o real. Teríamos aí uma pista do que, no ultimíssimo Lacan, designa-se como imaginar o real? Seria esse um exemplo de um sonho que vale menos pelo que se lê e mais pelo que se mostra? Como podemos distinguir, nos casos de neuroses, o sonho como via para abordar o real através da imagem? E, mais do que isso, o sonho poderia indicar como o analista opera com a manipulação da imagem?
Essa operação sobre a imagem parece convidar-nos não só a uma revisão do lugar do analista, mas também de seu ato. Nessa perspectiva, o ato analítico não seria apenas um corte que incide sobre a articulação significante, mas um corte que incide sobre a imagem do corpo, que impacta o corpo e o faz experimentar de modo inédito a satisfação. Não é sem razão, portanto, que Lacan aspirou elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia. O que podemos testemunhar, hoje, da operação desse analista-cirurgião, quando tudo parece normal e, ainda assim, os neuróticos procuram-nos para fazer uma análise?
CITAÇÕES EIXO 3 – Freud, Lacan e Miller
Citações em FREUD: SUPEREU
FREUD, S. O ego e o ID. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIX, 1996, p. 49. (Trabalho original publicado em 1923).
“O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’. Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele.
O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa”
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIX, 1996, os. 208-09. (Trabalho original publicado em 1924).
“O superego reteve características essenciais das pessoas introjetadas — a sua força, sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já disse noutro lugar, é facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que ocorre juntamente com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O superego — a consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo.”
FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996, p. 139. (Trabalho original publicado em 1925).
“Podemos ou simplesmente aceitar como um fato que na neurose obsessiva surge um superego severo dessa espécie, ou considerar a regressão da libido como a característica fundamental da afecção e tentar relacionar a severidade do superego com isto. E realmente o superego, originando-se do id, não pode dissociar-se da regressão e desfusão do instinto que ali se verificaram. Não podemos surpreender-nos se ele se tornar mais áspero, mais rude e mais atormentador do que onde o desenvolvimento tem sido normal.”
Citações em Lacan : SUPEREU
LACAN, J. O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Tradução: Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p.123. (Trabalho original proferido em 1953-1954).
Serei certamente levado a examinar a questão do supereu. Direi logo que, se não nos limitamos a um uso cego, mítico, desse termo, a palavra-chave, ídolo, o supereu se situa essencialmente no plano simbólico da palavra, à diferença do ideal do eu. O supereu é um imperativo. Como indicam o bom senso e o uso que se faz dele, é coerente com o registro e com a noção da lei, quer dizer, com o conjunto do sistema da linguagem, na medida em que define a situação do homem enquanto tal, quer dizer, enquanto não somente individuo biológico. Por outro lado, é preciso acentuar também, e ao contrário, o seu caráter insensato, cego, de puro imperativo, de simples tirania.
Em que direção podemos fazer a síntese dessas noções? o supereu tem uma relação com a lei, e ao mesmo tempo, é uma lei insensata, que chega até a ser o desconhecimento da lei.
E sempre assim que vemos agir o supereu no neurótico. Não será porque a moral do neurótico é uma moral insensata, destrutiva, puramente oprimente, quase sempre ilegal, que foi preciso elaborar na análise a função do supereu? o supereu é a um só tempo, a lei e a sua destruição. Nisso, ele é a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não resta mais do que a raiz. A lei se reduz inteiramente a alguma coisa que não se pode nem mesmo exprimir, como o Tu deves, que é uma palavra privada de todos os: seus sentidos. É nesse sentido que o supereu acaba por se identificar aquilo que há somente de mais devastador, de mais fascinante, nas experiências primitivas do sujeito. Acaba por se identificar ao que chamo figura feroz, as figuras que podemos ligar aos traumatismos primitivos, sejam eles quais forem, que a criança sofreu. “
LACAN, J. O Seminário, Livro 2: O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Tradução: Marie Christine Lasnik Penot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.229. (Trabalho original proferido em 1954-1955).
“A tradição e a linguagem diversificam a referência do sujeito. Um enunciado discordante, ignorado na lei, um enunciado promovido ao primeiro plano por um evento traumático, que reduz a lei a uma ponta cujo caráter e inadmissível, integrável – eis o que é essa instância cega, repetitiva, que definimos habitualmente pelo termo supereu.“
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 216. (Trabalho original proferido em 1956-57).
Este supereu tirânico, fundamentalmente paradoxal e contingente, representa por si só, mesmo entre os não neuróticos, o significante que marca, imprime, impõe o selo no homem de sua relação ao significante. Há no homem um significante que marca sua relação ao significante, e a isso se chama o supereu.”
LACAN, J. O Seminário, livro 5: As formações do Inconsciente. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 167. (Trabalho original proferido em 1957-58).
“A ideia da neurose sem Édipo é correlata do conjunto das perguntas formuladas sobre o que se denominou de supereu materno. No momento em que foi levantada a questão da neurose sem Édipo, Freud já havia formulado que o supereu era de origem paterna. Houve então quem se interrogasse: será que o supereu é mesmo unicamente de origem paterna? Não haverá na neurose, por trás do supereu paterno, um supereu materno ainda mais exigente, mais opressivo, mais devastador, mais insistente?”
LACAN, J. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Tradução de Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 415. (Trabalho original proferido em 1958-59).
“Comumente, o sujeito produz a voz. Digo mais, a função da voz sempre faz intervir no discurso o peso do sujeito, seu peso real. A voz grossa, por exemplo, a princípio entra em jogo na formação da instância do supereu, onde ela representa a instância de um Outro se manifestando como real.”
LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 250). (Trabalho originalmente proferido em 1968-1969).
“É rigorosamente impossível conceber o que se passa com a função do supereu, se não compreendermos – o que não é tudo, mas é um dos móveis – o que acontece com a função do objeto a efetivada pela voz como suporte da articulação significante, a voz pura, tal como é ou não instaurada no lugar do Outro, de uma forma que é ou não é perversa. Um certo masoquismo moral só pode basear-se nesse aguilhão da incidência da voz do Outro, não no ouvido do sujeito, mas no nível do Outro que ele instaura como sendo completado pela voz.”
Lacan, J. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 166. (Trabalho originalmente proferido em 1971)
“Qual é a essência do supereu? É com isso que poderei terminar, dando-lhes na palma da mão alguma coisa que vocês possam tentar manipular sozinhos. Qual é a prescrição do supereu? Ela se origina precisamente nesse Pai original mais do que mítico, nesse apelo como tal ao gozo puro, isto é, à não castração. Com efeito, que diz esse pai no declínio do Édipo? Ele diz o que o supereu diz. Não é à toa que ainda não o abordei realmente até agora. O que o supereu diz é: Goza!
LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.11. (Trabalho originalmente proferido em 1972-1973)
“O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada. Aí eu aponto a reserva que implica o campo do direito-ao-gozo. O direito não é o dever. Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza!
É aí mesmo que se acha o ponto giratório que o discurso analítico interroga.”
LACAN, J. (1947). O aturdido In: Outros Escritos, p. 469.
“Tu me satisfizeste, thomenzinho [petithomme]. Compreendeste, e isso é o que era preciso. Vai, de aturdito não há tanto que não te volte depois de meio-di(t)a [l’apres midit]. Graças à mão que te responderá, por a chamares de Antígona, a mesma que pode dilacerar-te, por disso eu esfinja meu nãotoda, saberás ao anoitecer igualar-te a Tirésias e, como ele, por teres bancado o Outro, adivinhar o que eu te disse.”
É essa a super-meutade [surmoitié] que não se supereu-iza [surmoite] tão facilmente quanto a consciência universal.”
Citações em Miller sobre os termos SUPEREU, TEMPO e CORTE, relacionados ao tema do Eixo 3: “Quando tudo é normal, o que se analisa, hoje?”, da XXVII Jornada da EBP-MG.
MILLER, J.A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller. Texto estabelecido por TENDLARS, S. E. Del sintoma al fantasma. Y retorno. Buenos Aires: Paidós, 2018, p. 120
“Lo peor es que no solo el Otro desea sino que fundamentalmente -cómo podría ser de otro modo- desea tu desdicha. Está oculto en todas esas bellas historias que se cuentan, y Lacan lo evoca en su texto sobre el fantasma: el Ser supremo en maldad. En este sentido, no se trata precisamente de una pastoral. El atravesamiento del fantasma es el momento en que se percibe este Ser supremo en maldad, que es otro nombre del superyó”.
MILLER, J.A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller. El Banquete de los analistas. Texto estabelecido por BRODSKY, G. Buenos Aires: Paidós, 2000, p. 303-304
“¿Cómo se estructuran según Freud la vía de la cultura y la del psicoanálisis? La primera, por la ética del superyó (es, si se quiere, un intento de terapéutica dentro de la cultura), cuyo principio podemos traducir como ‘ceder en su deseo’, que es lo que se transmite al sujeto para que pueda vivir en la civilización. Freud nos muestra que en el fondo esta terapéutica de ceder en su deseo y, por ejemplo, acomodarse al grupo, esta terapéutica del malestar, es de hecho el resorte mismo del malestar. Traducimos como ‘ceder en su deseo’ lo que Freud llamaba exactamente Triebverzicht, que es ‘la renuncia al goce de la pulsión’, que lejos de calmar las exigencias del superyó, no hace más que reforzarlas. En otras palabras, Freud aísla una instancia del superyó que se ejerce sobre las pulsiones y las lleva a renunciar a sus exigencias de satisfacción, a separarse de un goce de más, suplementario -que Lacan llamaba plus de gozar y que escribimos a-, a producirlo en el sentido de ‘separarse de’. Ahora bien, el superyó se apropia de inmediato de este goce suplementario, se alimenta de él. No hay ningún obstáculo: el goce al que se renuncia le sirve al superyó para crecer más: del circuito del superyó No hay un obstáculo que le impida a este goce separado volver al superyó. Se entiende, en efecto, cuán fundada es la analogía que Lacan planteó entre este goce excedente y lo que Karl Marx llamaba plusvalía. Recuerden que su principio de análisis de las formaciones sociales era investigar quién se apropia la plusvalía.”
MILLER, J.A. In: El banquete de los analistas, p. 304
“¿Cómo se traduce clínicamente, aunque no es mi objeto central hoy, este circuito del superyó? ¿Cómo se traduce la apropiación de este goce suplementario por el superyó? Se lo puede traducir por la fórmula que calca casi enteramente las fórmulas freudianas de «Inhibición, síntoma y angustia”: gozar de la renuncia al goce. Esta fórmula resulta muy valiosa en el análisis del síntoma, considerado en primera instancia como la encamación de una renuncia al goce (piensen, por ejemplo, en el síntoma de inhibición, con el que Freud empieza su libro). Luego, descubrimos el goce que conlleva el síntoma que parece encamar la renuncia al goce.”
MILLER, J.A. Silet. Os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Tradução: Lima, C.R. Texto estabelecido por HARARI, A.; SANTIAGO,J. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 108.
“Quanto ao supereu, repete-se sempre a frase “figura obscena e
feroz”, que parece totalmente adequada à descrição freudiana. Aqui, o termo importante, porém, é “figura”, que o faz pertencer ao registro do imaginário. E
Lacan relaciona o aparecimento dessa figura, que é a verdadeira significação do
supereu, ao fato de haver, na cadeia simbólica, um elo rompido: uma falha do simbólico. Eis a mola. E nesse intervalo aparece, vinda do imaginário, a figura obscena e feroz.”
MILLER, J.A. Silet. Os paradaoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Tradução: Lima, C.R. Texto estabelecido por HARARI, A.; SANTIAGO,J. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 16
“A escansão temporal: “É o bastante, volte na próxima vez”, é, no fundo, o próprio corte da interpretação, no sentido de Lacan.”
MILLER, J.A. Sutilezas analíticas. Los curos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por TENDLARZ, S. Buenos Aires: Paidós, p.40.
“El acto analítico es como tal un corte, es practicar un corte en el discurso, es
amputado de cualquier censura, al menos virtualmente.”
MILLER, J.A. Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto establecido por TENDLARZ, S. Buenos Aires: Paidós, p.263
“La palabra corte -que Lacan valídará también para la topología,
donde los cortes con tijeras tienen efectos de transformación sobre la
estructura de los objetos matemáticos- no deja de ser completamente
equívoca. Y es que el corte propiamente lingüístico introduce lo negativo, el menos, mientras que los cortes que podemos querer designar
a nivel libidinal no anulan la positividad de conjunto. Por lo tanto, el
término corte es … un amboceptor.”
MILLER, J.A. Todo el mundo es loco. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Texto estabelecido por Silvia Elena Tendlarz. 1ª Ed. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 216.
“Me parecen que si la estructura adecuada al psicoanálisis líquido es el nudo, como lo indicaba Lacan, entonces hay que relativizar, o incluso desechar, el
desciframiento y preferir el corte del redondel de cuerda, ya que, si
el psicoanálisis nodal de Lacan pone en escena la acción de tirar para
mostrar sus aspectos, implica también otra acción, que evoqué el año
pasado, una acción quirúrgica: cortar.”
MILLER, J.A. Lacan elucidado: Palestras no Brasil.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.54.
“A identificação narcísica deixa o sujeito em uma beatitude sem medida, mais oferecido que nunca a essa figura obscena e feroz que o analista chama o supereu, e que é preciso compreender como a falha aberta no imaginário por qualquer rejeição (Verweifung) dos mandamentos da palavra”.
MILLER, J.A. Lacan Elucidado: Palestras no Brasil.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.118.
“Na seqüência do complexo de Édipo, há certa normalização do desejo e imagina-se ser essa a função do supereu; Freud, entretanto, dá-lhe um outro valor relacionando-o com a pulsão, não unicamente para lhe opor barreiras às exigências, mas a cada renúncia à satisfação pulsional, é reforçada a severidade do supereu, que é guloso. Ele diz isso em O mal-estar da civilização. É um paradoxo a frase de Freud. Se o supereu é a interdição do gozo, o aparente paradoxo de Lacan, que consiste em dizer que o supereu impõe o gozo, elimina o paradoxo de Freud. O supereu vai contra o desejo, mas porque o desejo vai contra o gozo, sendo uma defesa contra este último. O gozo não é desejável. É uma das verdades acumuladas da experiência analítica, desconhecidas porque as escondemos colocando-as no baú”.
MILLER. J.A. Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Entre Desejo e Gozo. Tradução: RIBEIRO, V.A. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.34.
“O ato analítico, como sabemos, é distinto de qualquer ação, não consiste em um fazer. O ato analítico consiste em autorizar o fazer do sujeito. É, como tal, um corte, é praticar um corte no discurso, é amputá-lo de qualquer censura, pelo menos virtualmente. O ato analítico é liberar a associação, isto é, a palavra, liberá-la do que a limita, para que ela se desenvolva numa rota livre”.
MILLER, J.A. Perspectivas do seminário 5 de Lacan. As formações do inconsciente. Tradução: FUENTES, M.J. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p.94.
“O supereu indevidamente chamado feminino, quando na teoria aparece como materno, é uma referência à obra de Melanie Klein; um supereu muito mais arcaico que o supereu pós-edipiano freudiano, o do declínio do complexo de Édipo. Melanie Klein, ao contrário, mostra que na primeira infância há um supereu feroz já constituído a partir da mãe, que Lacan reproduz em seu grafo, vinculando o supereu ao Outro primordial da demanda. No estado final do grafo, depois desse Seminário, colocará o supereu nesse pequeno setor terminal, mais além do Outro. Na página 512 pode-se ler:
Na observação … diz-se, não muito bem por que, “supereu feminino “, embora ele seja comumente considerado o supereu materno em todos os outros textos do mesmo registro – anomalia imputável, sem dúvida, ao tema da inveja do pênis que concerne à mulher como tal. O supereu materno, arcaico, aquele a que estão ligados os efeitos do supereu primordial de que fala Melanie Klein, está ligado ao Outro primário como suporte das primeiras demandas, das demandas emergentes – eu quase diria inocentes – do sujeito, no nível das primeiras articulações balbuciantes de sua necessidade, e daquelas primeiras frustrações …
Trata-se de um nível em que a demanda do Outro está separada da demanda ainda sem a complexidade dada pelo desejo – uma localização do supereu que, em Lacan, permanecerá constante antes que ele desenvolva de modo mais sofisticado a conexão entre o supereu e o gozo”.
MILLER, J.-A. – Introducción a la clínica lacaniana – conferencias en España, Barcelona: ed. Gredos, 2006. Ed. digital: RBA Libros, S.A., 2018, www.rbalibros.com , p.395-396.
“El secreto de la imagen, el secreto del campo visual, es la castración”.
MILLER, J.-A.: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. La fuga del sentido – tradução fe Silvia Naldimi e estabelecimento por Silvia Elena Tendlarz. 1a.ed., Buenos Aires Paidós, 2012, p.368-369.
“El final del capítulo IV de “El chiste … ” es verdaderamente un combate, tal como Freud lo presenta, entre el Witz pulsional y el superyó. Freud se plantea la pregunta: ¿Cómo, por qué medio, por qué método, por qué sesgo, el Witz pulsional prevalece sobre el superyó? Yo digo superyó. Freud dice inhibición interior, represión. Me he permitido llamarlo superyó. Digamos que es el superyó en su función de inhibición”.
Referências
FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. (Texto original de 1919).
LACAN, J. O seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
MILLER, J-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014.
Notas
* Além de elaborações pessoais, a redação destes Eixos foi realizada a partir de discussões periódicas com Maria José Gontijo, também coordenadora da 27ª Jornada da EBP-MG, e contou com a revisão de Sérgio Laia, diretor da EBP-MG. Esta produção pôde se valer, também, de conversas realizadas com colegas que compõem os três Cartéis que se dedicam a investigar os Eixos rumo à Jornada, especialmente com Ana Lydia Santiago (Eixo 1), Lilany Pacheco (Eixo 2) e de minha participação no Cartel do Eixo 3, composto também por Simone Souto (Mais-Um), Cristiana Pittella, Elisa Alvarenga, Fernando Casula, Maria Wilma Faria e Rodrigo Almeida.
[1] MILLER, J-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014.
[2] Idem, p. 256. Segundo Miller, essa frase de Lacan se encontra na última lição de “O momento de concluir”, Seminário ainda inédito, proferido por Lacan em 1977-1978.
[3] Idem, p. 258.
[4] Idem , p. 247-259.
[5] Idem, p. 184.
[6] FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. (Texto original de 1919).
[7] Idem, p. 275-276.
[8] MILLER, J-A. Idem. p. 212.
[9] Idem, p. 273.