Seminário preparatório08.08.2024EIXO 2:

A Tela do Fantasma e a Esfoliação do Imaginário (Eixo 2)

por Lilany Pacheco (EBP – AMP)

Cartel: Jésus Santiago, Kátia Mariás, Laura Rubião, Lilany Pacheco (mais-um), Sérgio de Campos, Sérgio de Mattos, Virgínia Carvalho

O tema deste segundo eixo da 27ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) foi proposto a este Cartel a partir de uma citação de Jacques-Alain Miller, em El Ultimíssimo Lacan, derivada do Seminário 25, O momento de concluir: “Para que o imaginário se esfolie, basta reduzi-lo ao fantasma”.[1] Miller evoca que esfoliar uma planta é fazer cair suas folhas; em medicina, esfoliar implica a queda das partes necrosadas, como as unhas. Outro exemplo comum entre nós: um procedimento estético de retirada das células mortas da pele com finalidades diversas, dentre elas, aquele feito pelas noivas às vésperas do enlace conjugal.

Miller acrescentará que o Seminário O momento de concluir faz uma esfoliação do ensino de Lacan, seu desprendimento em partes, de modo a trazer proveito para o futuro. Nesse sentido, podemos dizer que tomamos a esfoliação como o método de escrita deste relatório. Ou seja, tomamos o ensino de Lacan em partes não necessariamente cronológicas, de modo a traçarmos uma trilha de pensamento que abra caminhos para as discussões que propomos para o segundo seminário preparatório da 27ª Jornada da EBP-MG, sobre o Eixo 2: “A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário”.

Recentemente, na “Liminar” que introduz a coletânea de textos de sua autoria sobre o passe, Miller declara que adiou por muito tempo abordar o último ensino de Lacan por prever os seus efeitos desestruturantes, uma vez que Lacan tomou para si o encargo de fazer viva voz às críticas que escutava sobre o que elaborava na psicanálise e, desse modo, ocupou todos os lugares, dizendo a um só tempo os prós e os contras. Será também Miller, mais uma vez, a dar conta daquilo que Lacan visava provocar: “engajar seus alunos a não se assentarem no saber adquirido, a se depreenderem de todo dogmatismo, a repensarem com novos custos a Coisa Freudiana, a ponto de reinventar a psicanálise, cada um de acordo com seus meios” [2]. Ele também conclui: “O último ensino de Lacan é feito para reavivar nos analistas, em sua prática, a paixão da ignorância, ou seja, o desejo de saber, um saber novo a ser elaborado.”[3]

 

A trilha deixada por Freud

Tomar o texto freudiano sobre o fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, foi uma resposta clínica de Lacan com o intuito de devolver à psicanálise sua lâmina cortante. Esperamos, então, as contribuições dos trabalhos a serem enviados para as simultâneas clínicas, nos quais se possa transmitir de que modo as neuroses se apresentam na prática analítica hoje, quais os impasses, quais as soluções e como foi operada, ou não, a construção do fantasma em cada caso único. Como escreveu Bernardo Micherif no argumento dedicado ao Eixo 2, agora mais desenvolvido neste relatório:

Freud se dedicou à elucidação do que se apresentava como cena fantasmática, uma história que compõe um cenário com suporte simbólico e representações imaginárias. Lacan, por sua vez, pôde destacar, na própria cena fantasmática, o que se configura como uma tela para o real, para o irrepresentável, um anteparo com o qual cada analisante tenta defender-se da incógnita relativa a seu próprio ser. [4]

Muito antes de escrever seu texto clássico dedicado ao fantasma fundamental, “Bate-se em uma criança”, Freud se interessou em investigar como se constituía a maquinaria psíquica que engendrava, para o sujeito, o protótipo de suas primeiras lembranças infantis, qualificadas de “encobridoras”. Em uma de suas cartas a Fliess – a Carta 61 de 2 de maio de 1897 – ao anunciar-lhe que havia adquirido uma noção segura da estrutura da histeria, ele antecipa que tudo remonta a cenas do passado:

A algumas se pode chegar diretamente, e a outras, por meio de fantasmagorias que se erguem à frente delas. O fantasma provém de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas e todo o material delas é claro e verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles, e ao mesmo tempo servem de alívio pessoal.[5]

Em “Bate-se em uma criança”, Freud descreverá os tempos do fantasma.

A primeira fase desse fantasma pertence a um período mais remoto da infância, alguma coisa nela permanece indefinida como se não envolvesse quem o testemunha. A criança que apanha nunca é aquela que evoca tal fantasma. Quase sempre um irmãozinho ou uma irmãzinha, quando houver algum. Não fica claro no início quem é a pessoa que bate, só se pode comprovar que não é outra criança que bate, e sim um adulto. Essa pessoa que bate mais tarde será reconhecida de maneira inequívoca como sendo o pai. A primeira fase do fantasma pode ser enunciada como “o meu pai está batendo na criança”. Há também a variação: “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, introduzida por Freud como algo que denunciaria grande parte do conteúdo a ser ainda apresentado[6].

Freud acrescenta que entre a primeira e a segunda fase do fantasma acontecem transformações. A pessoa que bate continua sendo o pai, mas a criança que apanha passa a ser a própria criança que produz a fantasia. “Eu estou sendo surrada pelo meu pai”. Para Freud, a segunda fase é a mais importante e significativa, pois nunca teve uma existência real, nunca é lembrada. Ela é uma construção da análise e nem por isso é menos necessária. Essa fase altamente prazerosa tem um caráter indiscutivelmente masoquista.[7] Sua importância será especialmente destacada por Lacan, no Seminário 17: o “você me espanca” aponta que o sujeito é dividido não apenas pelo significante, mas também pelo gozo. Trata-se daquela “metade do sujeito cuja fórmula tem sua ligação com o gozo. Ele recebe, claro, sua mensagem invertida – aqui, isto quer dizer seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro.”[8]

A terceira fase, por sua vez, assemelha-se à primeira. Ela soa conforme a primeira enunciação. A pessoa que bate nunca é o pai: ou ela mesma permanece indefinida, como na primeira fase, ou é substituída. A própria pessoa da criança que é tomada pelo fantasma não aparece mais no contexto da surra. Ao ser interrogada, a resposta é de que “provavelmente estou olhando”, ou de há muitas crianças apanhando, assim como pode haver diversificação das punições, dos castigos e das humilhações. Freud também destaca que o fantasma “Bate-se numa criança” comporta uma intensa excitação sexual, derivada de satisfação masturbatória dotada de matizes masoquistas e sádicos. Derivadas de exigências superegóicas remanescentes das primeiras experiências sexuais infantis.

Destacamos que o título do texto de Freud é “Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais”. Havia, para ele, naquele momento, a necessidade de situar uma sexualidade anterior ao recalque, enfatizar a função estruturante do Édipo e demonstrar as diferenças entra a neurose e a perversão. Diferentemente de Lacan, que toma essa discussão em uma vertente transclínica para destacar o traço de perversão no fantasma dos neuróticos e as suas articulações com o supereu, tal como ele faz no escrito “Kant com Sade”.

Freud formula que, da noção de sexualização do processo do recalcamento, no exemplo do fantasma da surra “bate-se numa criança”, depreende-se uma posição feminina.[9] Lembremos também que esse texto sobre o fantasma pode ser cotejado com o texto de 1924, “O problema econômico do masoquismo”,[10] no qual Freud abordará o masoquismo feminino. Por isso, Lacan vai poder sustentar que o correlativo do recalque não é a repartição entre os sexos, mas a orientação do gozo pelo objeto a face ao gozo feminino.

Isso não é pouco! O leitor do Seminário 14, A lógica do fantasma, certamente se dá conta do enorme número de perguntas que Lacan se faz em sua interlocução constante com os pressupostos freudianos: o falo, o Édipo e a repartição sexual. Ele busca logicizar esses termos a partir do objeto a e sua condição incomensurável. Poderá afirmar, então, a natureza heterógena do fantasma e os impasses do ato sexual determinantes da proposição “não há ato sexual”. Depreende-se daí, também, a problemática do gozo destacada, no Seminário 14, como gozo do corpo.

Por que evocar a perversão nessa abordagem do fantasma? Essa é a pergunta de Éric Laurent[11] em seu comentário sobre A lógica do fantasma. Evocar a perversão responde à ênfase dada por Lacan ao fato de que o gozo em sua relação com o corpo só é abordável através da experiência perversa. Se o desejo é situável a partir da neurose, da insatisfação, do impossível, o fantasma, em contrapartida, tem dificuldade em se alojar na economia da neurose e, assim, o lugar de exceção do fantasma dá a ele um lugar axiomático para a dedução dos discursos inconscientes.

 

O lugar do fantasma na experiência analítica

A apresentação do fantasma “bate-se numa criança” se faz presente com surpreendente frequência entre pessoas que procuram o tratamento analítico por causa de uma histeria ou de uma neurose obsessiva. A admissão desse fantasma se dá com hesitação, a lembrança de seu primeiro aparecimento é incerta, uma inequívoca resistência se opõe à sua abordagem pelo tratamento analítico, vergonha e sentimento de culpa são despertados e uma atividade masturbatória, inicialmente voluntária, mas que posteriormente ganha caráter compulsivo, é revelada.[12] O anúncio da cena fantasmática, como uma frase, será acompanhado de um “não sei mais nada sobre isso”.

Se, do lado do sintoma, o sujeito sempre apresenta um saber a mais, do lado do fantasma, aparece o “não sei mais…”, “era só isso que eu tinha para dizer hoje”, convertendo-se até nas sessões mais curtas que acontecerá em uma análise, tal como testemunhei recentemente na sessão de uma mulher que olhava compulsivamente as redes sociais de seu namorado para constatar, sempre uma vez mais, que ele curtia e comentava fotos de outras mulheres para, mais uma vez, fazer existir a relação sexual nas brigas provocadas por ela ao acusá-lo dessa prática. A análise a levou ao consentimento em ceder do olhar, uma vez que, quando ela olhava, quem gozava de ver outras mulheres era ela própria. Deslocada desse gozo escópico, adveio uma lembrança: certa vez, uma tia contou que, por ocasião de seu nascimento, ela era um bebê franzino e feio e que, ao vê-la, sua mãe havia dito que aquela não era sua filha, que esta havia sido trocada no berçário. A lembrança desse relato da tia permitiu à analisante formular a frase de seu fantasma: “eu tenho medo de ser trocada”. Dito isso, ela se levanta do divã e anuncia: “para hoje, é só isso, não sei mais nada…”.

A ênfase dada pelo último ensino de Lacan à clínica do sinthoma e aos restos sintomáticos na solução do falasser para o fim de uma análise não dispensa a verificação, em nossa experiência, das duas dimensões clínicas, o sintoma e o fantasma, inclusive na entrada da análise.  Assim, verificamos, muitas vezes, o modo como um sujeito esboça já nas primeiras sessões de uma análise a construção incipiente de seu fantasma, seja nas tentativas de recuperar um lugar falicizado junto à mãe, seja no modo como se faz presente e relança o véu sobre o objeto agalmatizado que ele gostaria de ter sido aos olhos dela. A construção do fantasma, numa análise que se inicia, faz ainda cintilar o brilho fálico na demanda dirigida ao Outro materno, pautada na exigência do supereu que obstaculiza a engrenagem do desejo. O caminho da esfoliação do imaginário implica ainda, no início de uma análise, o consentimento com a existência de um furo incontornável do lado do Outro para tangenciar algo do real.

Por sua vez, no contexto de uma análise que dura, de uma análise que é levada adiante, verificamos que a frase do fantasma, ao ser isolada em análise, faz com que o “sei mais” da repetição do sintoma dê lugar ao “não sei mais” do fantasma, relançando o sujeito ao seu desaparecimento no momento mesmo em que se constituiu como objeto, tal como descrevemos aqui anteriormente. Nessa direção, tem lugar a esfoliação do imaginário e o corte operado de modo que o gozo do corpo dê lugar à frase do fantasma, conforme discutiremos a seguir.

 

A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário

No Curso de Orientação Lacaniana de 2011, Miller[13] colocará em destaque duas expressões aparentemente distintas de Lacan sobre o fantasma. A primeira delas é “o fantasma é o que faz tela diante do real”; na segunda, o fantasma não é apenas tela para o real, mas é também, ao mesmo tempo, “janela sobre o real”. O fantasma é, portanto, conjunção e disjunção com o real, nesse movimento de abertura e fechamento, para o sujeito, do acesso ao real. O fantasma é uma função do real, uma função subjetivada, singularizada, do real. Ele é o real para cada um.

A suposição de que uma travessia da tela do fantasma implicaria ter acesso ao real, ter um “acordo” com o real, o que não era viável para o sujeito até então. Essa tela opacifica o “quem sou eu” para o sujeito, o que o levaria a sustentar-se como uma incógnita. Ou seja, o fantasma faz tela não apenas para o real, mas também para o ser do sujeito, e, pode-se dizer, que o que precipita um sujeito para a análise é uma busca de saber sobre seu ser. Nesse contexto, uma análise se define menos como cura, ou formação, e mais como revelação ontológica.

Para Lacan, o que estaria em questão no atravessamento do fantasma, travessia por um longo tempo foi tomada como critério para o fim de uma análise, refere-se a seu saldo epistêmico. Seja pela inquietação diante do emborcamento do lugar fixo do sujeito frente ao real oferecido pelo fantasma, seja pela deflação do desejo e pelo des-ser, acontece um desinvestimento libidinal diante do qual é dissipada a significação que envelopava o que o sujeito se apropriava como “seu gozo”. Por fim, o efeito de desatar o laço com o analista enquanto sujeito suposto saber dá lugar ao desejo de saber, que antes era aplastado pela ignorância proporcionada pelo fantasma, como já explicitado anteriormente. Desse modo, haveria final de análise quando o desejo se tornasse saber.

Entretanto, Lacan constatou, a partir de um longo tempo de experiência e por ter inventado o passe, que haveria um mais além da conversão do desejo em saber, um mais além que não é modificado pelo atravessamento do fantasma. Trata-se do ser de gozo, destacado com o nome de sinthoma e que, segundo Miller, não se deixa transformar em saber. Os impasses sobre as relações entre o gozo e o sentido, disso que não se atravessa, nos deixa às voltas com o que já discutimos nas preparações anteriores sobre a hiância entre o imaginário e o real e o que não muda – a satisfação pulsional, ou seja, o gozo.

 

3.1) O gozo do corpo

Como aludimos anteriormente, a fórmula do fantasma $ à a inclui elementos heterogêneos, o sujeito barrado que é efeito do significante e o objeto a oriundo do corpo, concentrando o mais intenso do gozo.

Na lição de 31 de maio de 1967 do Seminário A lógica do fantasma,[14] face aos impasses para formalizar a trama da sexuação, Lacan irá interrogar: só há gozo do corpo? Sua resposta procura afirmar que o efeito da introdução do sujeito, sendo ele próprio um efeito de significância, implica em colocar o gozo e o corpo na relação que definida como sendo a de alienação. Nesse contexto, Lacan também se pergunta sobre o fundamento primeiro da subjetividade do corpo. O sujeito se funda de uma marca no corpo que o privilegia e faz com que essa marca domine tudo o que importará para esse corpo. E o gozo, onde é que ele fica nisso tudo? Ele é o que cai na dependência dessa subjetivação do corpo. É o que também se apaga na renúncia ao gozo e, assim, o corpo se torna outro, um corpo estranho que não encontra abrigo nem na imagem de si referente ao próprio eu, nem no que se localizou como o objeto do fantasma.[15]

Corpo e gozo são dois termos que só subsistem um pelo outro. Se sua separação for por onde se introduz o sujeito como efeito de sua significância, então, como analistas, temos que nos perguntar como o gozo é manejável a partir do sujeito. Para Lacan, no Seminário 14, a resposta nos é dada pelo que a análise descobre como aproximação da relação do sujeito com o gozo no âmbito do ato sexual. O gozo sexual nada tem a ver com a escolha conjugal e, a despeito da esfoliação para o momento de contrair núpcias, todos os inconvenientes estão ligados ao fato de que há um furo aí. O ato sexual interessa a nós psicanalistas apenas nesse nível no qual o gozo está em questão. O gozo é aquilo em que o princípio do prazer marca seus traços e seus limites. É algo substancial, importante de se localizar sob a forma do que Lacan articulou com o nome de um novo princípio: “só há gozo do corpo”. “Só há gozo do corpo” é o princípio que responde à exigência da verdade que habita o freudismo.[16]

 

3.2) A esfoliação do imaginário

 Éric Laurent, em sua apresentação do Seminário 14, chama a atenção para o que Miller escreve na contracapa desse livro: “Temos a surpresa de ver o grande Outro, lugar da fala, novamente definido como ‘o corpo’, lugar primordial da escrita”.[17] Para Laurent, essa báscula só é possível com a condição de definir a escrita como escrita lógica, no sentido de Lacan, aquela que faz furos no tecido subjetivo. Os orifícios erógenos que Freud, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, havia situado como orifícios pulsionais são retomados pela inscrição do corpo como inscrição do furo. Nesse sentido, o orifício pulsional e o furo da letra se juntam. O destino pulsional da sublimação vem ao encontro da letra de gozo em torno da qual gira o funcionamento perverso do fantasma.[18]

Com essa proposição de Laurent, conjugando Miller e Lacan, somos levados ao ultimíssimo ensino de Lacan, cujo centro é o furo e, dentre outras consequências, destacaremos aqui a passagem da lógica matemática à lógica de borracha, das cordas que atam os nós, ao pneu, à câmara de ar, ao toro. Como destacou Miller,[19] no seu ultimíssimo ensino, Lacan elege um novo visual como acesso privilegiado ao real.

Toro → Real

Lacan passa a manipular os toros, que se prestam a serem torcidos e retorcidos de mil maneiras. Com os toros, trata de colocar em evidência modificações de estrutura em função dos cortes praticados aqui e ali, e tudo isso constitui uma unidade que não é mais significante, mas da ordem da imagem. Uma imagem pode validar um real, desde que se enfrente esse fato clínico que domina o ultimíssimo ensino de Lacan: a inibição para imaginar. Miller frisa que a inibição é um assunto de imagens, o que o faz ressaltar uma hiância entre o imaginário e o real, a perspectiva de se recorrer ao imaginário para se fazer uma ideia do real,[20] mas não nos dedicaremos a isso aqui, pois foi o tema da preparação para o Eixo 1 desta 27ª Jornada.[21]

Nesse sentido, fica evidente que o simbólico não tem mais a proeminência de antes,  de que  o simbólico passa a ter que prosseguir no imaginário, fazendo Lacan colocar em continuidade o sonho, a poesia, a filosofia, o fantasma e o delírio[22] Ainda com Miller, verificamos como certeza antecipada desse momento de concluir de Lacan a primazia do corpo e daí a nossa hipótese de que esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes frente ao que retorna como tangenciável ao gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real e não mais a tela de proteção.

 

A lógica de borracha e a psicanálise hoje

Mesmo com o enfoque dado por nós psicanalistas à clínica do sinthoma, com o atendimento às urgências de nossa prática no contexto contemporâneo face ao esmaecimento do simbólico e suas consequências como recrudescimento do supereu, constatamos, com as discussões propostas para a nossa próxima Jornada, que o tema do fantasma não foi abandonado por Lacan em seu último ensino. Verificamos seu deslocamento da lógica fálica (vigente até o Seminário 20, Mais ainda) para a “lógica de borracha”, assim denominada por Miller para se haver com o  que Lacan faz com o toro para pensar o real.

Em um texto inédito, Anne Colombel-Plouzennec[23] nos apresenta uma excelente formalização do tema do fantasma no ultimíssimo ensino de Lacan e nos brinda com o que ela demonstra ser a vantagem da transição das  rodinhas de barbante para o toro. Há essa vantagem  porque o tor, por  sua estrutura elástica, permite que ele sofra cortes sem se desfazer : “para que haja fantasma, é preciso que haja toro”[24], e como acrescenta Miller, o ato maior do ultimíssimo ensino de Lacan é o ato de cortar[25].

Chama-nos atenção uma negação que Anne Colombel-Plouzennec faz e que nos serve como uma orientação. Segundo ela, a passagem das rodinhas de barbante ao toro não se deu para ressaltar “o inchaço do imaginário”, mas para destacar “o teor real do corpo que goza da existência do furo”[26]. Assim, o imaginário é colocado em evidência para apontar para o real do corpo, detalhe que nos interessa: trata-se de operar com a manifestação do imaginário do corpo na clínica da neurose, inclusive porque verificamos hoje que, em muitos casos, a presença excessiva do gozo do corpo e das imagens trazem dificuldades na decisão pela neurose. Em outros termos, temos o corpo em evidência nas crises de pânico, automutilações, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, adições, hiperatividade, etc e trata-se, portanto, nesses casos, em um primeiro tempo do tratamento, de promover um esvaziamento desse imaginário inflado, de dialetizar a exigência do supereu que comanda o gozo do corpo, de esfoliar o imaginário, a fim de verificarmos se encontramos, ou não, o suporte do fantasma para esses sujeitos, permitindo-nos então localizar, respectivamente, a neurose (pelo recurso ao fantasma) ou a psicose (pela labilidade desse recurso).

Notas do autor:

[1] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. p. 275-276.

[2] MILLER, J.-A. Como terminam as análises: paradoxos do passe. Tradução de Vera Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. p. 22-23.

[3] Idem, p. 22-23.

[4] MICHERIF, B.  Eixos de trabalho: Eixo 2 – A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/. Acesso em: 01 jul. 2024.

[5] FREUD, S. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Trabalho original publicado em 1950 [1892-1899]). p. 240 (tradução modificada para manter a referência comum ao termo “fantasma”.

[6] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.130

[7] Ibidem, p.131.

[8] LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992. p. 62.

 

[9] Ibidem, p. 150.

[10] FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 287-304. (Trabalho original publicado em 1924).

[11] LAURENT, É. Apresentação do Seminário de Lacan “A lógica do fantasma”. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023. p. 71.

[12] FREUD, S. Bate-se numa criança: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 123-156. (Trabalho original publicado em 1919). p.12

[13] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 02 de fevereiro de 2011. 2011. (Trabalho inédito). Ver, também: SILVA, V. C. C. da. A lógica do fantasma e mais além. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2020.

[14] LACAN. J. A lógica do fantasma (trechos). Opção Lacaniana, n. 58, 2010. p. 29.

[15] MICHERIF, 2024.

[16] LACAN, 2010, p. 29-30.

[17] MILLER, J.-A. apud LAURENT, 2023. p. 71.

[18] LAURENT, 2023.

[19] MILLER, 2012, p. 256-257.

[20] MILLER, 2012, p. 258.

[21] SANTIAGO, A. L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. 2024. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/. Acesso em: 01 jul. 2024.

[22] MILLER, 2012, p. 259.

[23] Texto inédito que aparecerá no número 60 da Ironik!, a ser publicada em setembro de 2024: https://www.lacan-universite.fr

[24] LACAN, J. Le séminaire, livre 25: Le moment de conclure. Paris, 1977-78. (Trabalho inédito). Lição de 20 de dezembro de 1977.

[25] MILLER, 2012.

[26] COLOMBEL-PLOUZENNEC (2004).

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