Seminário preparatório12.09.2024EIXO 3:

Quando tudo é normal, o que se analisa? (Eixo 3)

por Simone Souto (EBP/AMP)

Cartel: Bernardo Micheriff, Cristiana Pittella, Elisa Alvarenga, Fernando Casula, Maria Wilma Faria, Rodrigo Almeida, Simone Souto (mais-um)

“O sujeito normal é essencialmente alguém que se coloca na posição de não levar a sério grande parte de seu discurso interior”

(Lacan, 1955-1956/1985, p. 140)

O normal e o supereu

Podemos verificar, em nossos dias uma forte tendência de a norma substituir a lei ou, melhor dizendo, a norma passa a funcionar cada vez mais como se fosse lei. Com o declínio da interdição paterna e da lei edípica, assistimos a uma crescente normatização dos laços sociais e dos modos de vida. A norma, ao contrário da lei, não designa uma interdição universal, ou seja, já não contamos como antes com a articulação entre a lei e o pecado, entre a lei e sua transgressão, com uma prescrição unívoca que possa nos guiar quanto ao que é proibido ou permitido. Sendo assim, a norma não produz um “para todos”, ela visa o indivíduo, normatiza e, também, normaliza o direito individual de cada um ao gozo. Vivemos, portanto, em um tempo no qual todo gozo, ou quase todo, é considerado normal, isto é, dentro da norma. O que antes, com relação à lei, era considerado anormal tornou-se normal. Ser anormal, hoje, é normal.  Cada vez mais, cada um tem direito de gozar à sua maneira.

Como nos esclarece nosso saudoso Célio Garcia (2001, p. 13), evocando Canguilhem, “norma é a palavra latina para esquadro e normalis significa perpendicular, isto é, o instrumento usado para traçar ângulos retos”. No entanto, atualmente, mesmo que a norma continue “designando uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se distingue, …essa já não se encontra ligada à ideia de retidão; a sua referência não é o esquadro, mas a média” (Garcia, 2001, p. 13). Assim, a referência passa a ser a opinião comum ou mesmo o que convencionamos chamar de politicamente correto. Dessa forma, as normas, hoje em dia, se multiplicam recaindo, por exemplo, sobre a linguagem, sobre como devemos nos dirigir e falar com cada sujeito ou grupo de forma inclusiva, de tal maneira que ele não seja considerado ou designado, por seu gozo, como anormal. Logo, se, por um lado, a norma tornou-se o meio de produzir um direito social mais inclusivo, por outro, ela dá consistência a uma exigência de satisfação cada vez maior.

Nesse contexto, o empuxo ao gozo tornou-se um fator prevalente na clínica da neurose, na qual constatamos que a não interdição do gozo acaba por se transformar em um imperativo de gozo e, assim, o direito ao gozo se converte de maneira generalizada em um dever de gozar, em uma ordem, em uma lei insensata que comanda: goza! Estamos no reino do supereu. Afinal, como nos esclarece Lacan (1972-1973/1985, p. 11), “nada força ninguém a gozar, senão o supereu!”.  Na clínica da neurose, observamos que os pacientes se sentem culpados de não alcançarem esse gozo esperado, prometido, exigido: afinal, “se não há nada que me impeça de gozar por que não estou feliz, por que estou sofrendo, a culpa, então, é minha?”, “Qual é meu erro?”.  Logo, a culpa da não realização de um gozo que seria todo recai sobre o falasser: é uma culpa que não está ligada à interdição, mas à diferença entre o gozo obtido e o gozo esperado, culpa de não ser inteiramente satisfeito e feliz. Nas palavras de Lacan (1972-1973/1985, p. 75), “alguma coisa derrapa no que manifestadamente é visado” e, o que resta é um gozo experimentado sempre como inadequado, um gozo que não conviria à relação sexual… se ela existisse.

Portanto, conforme nos esclarece Lacan (1972-1973/1985, p. 11), é no supereu que encontramos “o ponto giratório”, o que faz o neurótico girar em círculos, dar voltas e mais voltas em torno desse limite do gozo e no qual ele se recusa a reconhecer o impossível, a não existência da relação sexual. Por conseguinte, podemos dizer que o supereu como ponto giratório é o que provoca o atordoamento e esse “efeito de náusea do qual Lacan fala” (Mouillac, 2016-2023, p. 157) e que se manifesta no tédio, na desorientação concernente ao desejo, na falta do que dizer e na desesperança tão presentes nas queixas dos neuróticos hoje.

Por isso, o supereu, com seu imperativo de gozo, é tomado por Lacan como um correlato da castração: ao ordenar algo impossível, ele aponta sempre no sentido de seu fracasso, isto é, para o furo da não relação sexual. Resulta daí um paradoxo no qual constatamos, por um lado, que a castração nunca foi tão evidente e, por outro, que ela nunca foi tão velada porque embora o furo, pela ausência do sentido edípico, torne-se cada vez mais visível no mundo contemporâneo, esse furo é sempre encoberto pela exigência do supereu, isto é, pelo empuxo em dar mais uma volta. Portanto, quando não nos é possível definir claramente a neurose pelo complexo de Édipo, o que nos autoriza a dizer que ainda se trata de uma neurose é, justamente, a presença da castração, não aquela ligada à castração paterna, mas aquela que provém do furo da não relação sexual.  Daí a importância de fazermos esse furo surgir em meio às voltas do gozo em torno do impossível.

Lacan (1972/2003, p. 469), em “O aturdito”, inventou um neologismo para nomear esse supereu que se satisfaz apenas pela metade sem jamais satisfazer-se: surmoitié (“supermeutade”). Trata-se do supereu feminino, articulado ao não-todo e que, portanto, não corresponde a uma consciência universal, à interdição do gozo encontrada do lado masculino. Bem ao contrário, tal supereu revela, reiteradamente, a inadequação do simbólico na abordagem do real e na apreensão do gozo.  Trata-se do supereu como empuxo ao gozo fora do falo, que tende à infinitização, fazendo apelo a um gozo impossível de ser satisfeito. No que diz respeito à análise, essa prevalência de um gozo fora do simbólico, em sua vertente real, funciona, como nos esclarece Miller (2006-2007/2013, p. 238), como um “dissolvente conceitual” do qual encontramos os efeitos no ultimíssimo ensino de Lacan: ao deparar-se com o silêncio do real, com o fato de que “o real não fala” (Miller, 2006-2007/2013, p. 235) – fato que podemos relacionar à lei silenciosa do supereu – o simbólico, sempre privilegiado por Lacan como ferramenta fundamental para analisar, acaba por revelar-se como um instrumento inadequado para fazer frente a esse gozo do supereu. Lacan (1977-1978) também nos adverte que, se uma análise se prende ao simbólico para abordar o real, ela acaba por “consumir-se nela mesma”[1], em suas voltas e, assim, corre o risco de fracassar. Então, retornando à pergunta que dá título ao nosso texto – quando tudo é normal, o que se analisa? –, podemos responder, inicialmente: o supereu. Mas, diante dessa inadequação do simbólico com relação ao real, como analisar o supereu?

 

Interpretação: a manipulação, o corte e o equívoco

Diante da prevalência do gozo, o analista depara-se com um limite da interpretação. O gozo não é interpretável, ele coloca em primeiro plano não o sentido, mas a matéria, o tecido, o corpo e o que pode funcionar como estofo. Por isso, somos advertidos, por Lacan (1977-1978), de que uma análise é uma prática, não uma abstração e, segundo ele, “se fazemos da análise uma abstração, nós a anulamos”[2] porque perdemos o tecido que constitui “o fato” de uma análise (Lacan, 1977-1978)[3], ou seja, o que lhe confere uma existência. Se tentamos ordenar esses fatos a partir do simbólico, articulá-los, encadeá-los, perdemos o tecido, a tela a partir da qual um real pode ser assegurado.

Assim, a inadequação do simbólico para abordar o real leva Lacan a uma promoção do imaginário no que concerne à apreensão do real e na qual a unidade não é mais da ordem do significante, mas da imagem. Miller (2006-2007/2013, p. 246) chega mesmo a dizer que o significante novo, evocado por Lacan no seminário O momento de concluir, não é um significante, mas uma imagem. Então, se o tecido de uma análise é um fato real, será através da imagem que ele ganhará suporte porque, se o real não pode ser formulado, será preciso imaginá-lo, torná-lo visual, mostrá-lo, “apontá-lo com dedo” (Miller, 2006-2007/2013, p. 249). Trata-se de “recorrer ao imaginário para se ter uma ideia do real” (Miller, 2006-2007/2013, p. 258).

Desse modo, nossa questão inicial – “o que se analisa?” –, desloca-se para a pergunta: “Como operar?” (Lacan, 1977-1978)[4]. Em outros termos, como intervir nessa matéria, como transformá-la? É nessa mesma medida que o Sujeito Suposto Saber será redefinido por Lacan (1977-1978) como Sujeito Suposto Saber como operar[5]. Encontramos, no ultimíssimo ensino de Lacan, um apelo feito a outro modo de interpretação, a partir do qual ele buscava a renovação de sua prática: a interpretação é reduzida à manipulação e ao corte. Não se trata mais da palavra que faz existir a coisa, mas do corte que muda a estrutura dos objetos representados, assim como faz Lacan com os objetos topológicos. O real torna-se matéria, um tecido a ser cortado, manipulado, deformado, para que se possa extrair dele o efeito de furo, isto é, um dizer que faça escutar que a relação sexual não existe.

É importante sublinhar que dizer é diferente de falar. O analisante fala, e o analista corta. O analisante faz poesia, mas o que o analista diz não é poesia, mas corte, participa da escritura, segundo Lacan (1977-1978)[6], faz parte do equívoco que passa pela escrita, pela subversão da ortografia, por outro jeito de escrever o mesmo, de maneira a fazer ressoar outra coisa diferente do que foi dito. O equívoco recorta a palavra da mesma maneira que recortamos um objeto topológico, de tal forma que o mesmo objeto, a mesma palavra, passa a se comportar de maneira diferente. O manejo da sessão analítica torna-se, então, um saber fazer que pode dar forma, a partir de cortes praticados aqui e ali, a cada sessão e a cada vez, ao real de um gozo do qual não se sai. Assim, pela fala, no decorrer da experiência analítica o real, que não é comunicável, ganha corpo.

O ato de cortar, de acordo com Miller (2006-2007), reenvia ao que uma psicanálise tem de estofo, é através do corte que se encontra o tecido, é também o que possibilita o momento de concluir. Podemos dizer, então, que a interpretação assim concebida se aproximaria, cada vez mais, do ato analítico, que não passa pelo pensamento, mas pelo gesto cirúrgico de cortar, que seria a “salvaguarda da psicanálise” (Miller, 2006-2007/2013, p. 195). Na neurose, conforme demonstrou Ana Lydia Santiago em nosso Primeiro Seminário Preparatório, há um real do qual não se sai, mas, se não nos é possível sair disso, podemos fazê-lo se comportar de um outro jeito. Conforme esclarece Lacan (1972/2003, p. 480), em “O aturdito”, trata-se de produzir “uma outra fixão do real”.

Portanto, em seu ultimíssimo ensino, Lacan se esforçará para fazer, com a topologia, uma geometria que tem um corpo, uma geometria do tecido. Imaginar o real, passará, então, por essa estranha manipulação dos objetos topológicos. As figuras topológicas às quais Lacan recorre são figurações do fato de que o analista corta, figurações obtidas pelo corte, na medida em que este tem o poder de mudar a estrutura das coisas, seu modo de se comportar. Quando se faz um corte, o real responde com uma nova forma.

 

“Recreação topológica”[7] e prática analítica

Lacan (1972/2003, p. 487) designa o toro como sendo a estrutura da neurose, com suas voltas em torno do furo.

Referindo-se a esse mesmo toro, mostra-nos que o verdadeiro corte da interpretação é um corte duplo. Trata-se de um corte feito ao longo da borda do toro, em sentido longitudinal, mas, para que esse corte conclua seu giro e retorne ao ponto de partida, é preciso que se faça duas voltas, ou seja, um duplo giro. Então, o corte duplo no toro modifica sua estrutura, interrompendo suas voltas e produzindo, ao mesmo tempo, um ponto de estofo, de amarração, em volta do furo:  o nó borromeano de três.

 

Dois fragmentos da prática analítica nos mostram essa operação topológica pela qual uma nova figura, uma figura inesperada, surge do duplo corte.

O primeiro fragmento é de um caso clínico de nossa colega da École de la Cause Freudienne (ECF), Rose-Paule Vinciguerra (2001, p. 162-169), traduzido e publicado na Curinga, n. 17, com o título: “A intemperante”. Trata-se de uma mulher de meia idade, bulímica, que há 25 anos provoca vômitos todas as noites com a justificativa de que, se não o fizer, ficará gorda. Diz que não quer mais ter relações com seu marido, homem bonito, mais jovem que ela, mas para o qual não liga nem um pouco. Segundo Rose- Paule, o que virá a luz como ponto extremo do seu não querer (principalmente quanto ao sexo) é que essa paciente é como o pai – um pai que ingurgita, escarra, e que ela odeia. É nesse contexto que um ato falho dá lugar a uma interpretação que joga com o equívoco homofônico do significante.  A paciente diz: “mes parents ne supportaient pas mon intérêt corpèrel”. Ela queria dizer “meus pais não suportavam meu interesse corporal”, mas diz “corpèrel” no lugar de “corporel”. A analista corta:  corps – père – elle, corpo – pai – ela

Essa interpretação, ao jogar com o equívoco homofônico, intervém diretamente sobre o gozo do sintoma como um corte, esvaziando o sentido sexual de um gozo que unia o corpo, o pai e ela, gozo que, a partir dessa interpretação, a paciente poderá definir como “alimento e sexo”. A confusão entre alimento e sexo revela sua identificação ao pai que ingurgita e escarra, mas também seu lugar de objeto de gozo desse pai, assim como a natureza incestuosa desse laço que ela recusa querendo-se magra e andrógina, ao contrário da mãe que o pai deseja como uma mulher que “tem o que deve lá onde é preciso”.

Podemos dizer que a interpretação corta o sentido do sintoma – “alimento e sexo” – introduzindo em seu lugar uma significação vazia e sem sentido: corpspèreelle, que tem como efeito separar o corpo, o pai e ela.

Esse corte, através do equívoco, realiza o nó a três no toro, enlaçando real, simbólico e imaginário.

Dessa forma, a interpretação não é simplesmente um equívoco de sentido a sentido, mas um forçamento que introduz, no lugar do sentido até então opaco do sintoma, uma significação vazia que anula o sentido, reduzindo-o à dimensão de um isso não quer dizer nada. O duplo corte (corpo / pai / ela) esvazia e amarra, intervindo sobre o toro, sobre o “dar voltas” da paciente, sobre o encher-se e o esvaziar-se da sua bulimia, modificando o desenho de seu sintoma.

Essa nova figuração só pode surgir a partir de uma operação do analista sobre o gozo, tomado como matéria. Sua analista nos faz saber que, depois dessa interpretação, os sintomas se atenuaram, diminuíram de intensidade e frequência, embora não tenham cedido totalmente:  os “ditos do sintoma” mudaram com variações e traços que o diferenciam do que aparecia antes (Vinciguerra, 2001, p. 164). É uma análise que, ao menos por ocasião da publicação desse fragmento clínico, ainda estava em curso.

O segundo fragmento, retiro do testemunho de passe de outra colega da ECF, Sonia Chiriaco (2010, p. 9-14). O sonho do final de sua análise nos mostra ainda mais claramente a estrutura de duplo corte da interpretação como equívoco, pelo qual o poder de subversão topológica só poderá operar concretamente a partir de duas voltas. Nesse sonho, ela deveria submeter-se a uma operação que consistiria em abrir a cobertura de seu crânio para extrair alguma coisa, “a última palavra”, ela pensa, “mas qual seria?” (Chiriaco, 2010, p. 12). Lembra-se de que, na noite anterior, colheu mariscos e, entre eles, aqueles chamados “ormeaux”, para expô-los sem as conchas, sob a forma de um quadro, ao público da Escola.

O aparecimento desse significante incongruente, ormeau, em sua face repulsiva – molusco que se apresenta desnudado, sem concha, e repugnante, imagem do real que deveria ser mostrado ao público da Escola – vai se declinar em or-mot, “palavra de ouro”, palavra preciosa onde também encontramos, de forma anagramática, a palavra mort (“morte”) e, ainda, como hors-mot, o “fora da palavra”. Assim, localizamos também, nesse equívoco, três pontos que formam, segundo Mouillac (2016/2023) um trajeto de duplo giro (dois cortes):

     

   1ormeau – (molusco)

2-or-mot (palavra de ouro – morte)

         3– hors-mot (fora da palavra)

ormeau / or-mot / hors mot

 

Temos, aqui, o mesmo movimento que assistimos no vídeo do corte no toro. Nesse exemplo clínico, notamos claramente que, com o corte simples, de apenas uma volta, o primeiro corte, entre ormeau e or-mot, permanecemos ainda no sentido. Somente no segundo giro, no segundo corte, entre or-mot e hors-mot, que um real será apreendido, mostrando-nos que, aqui, a interpretação não visa ao sujeito, mas ao que está fora do sentido.  Hors-mot (“fora da palavra”) é uma palavra fora da palavra, uma palavra que faz explodir todas as palavras, uma palavra que é uma palavra e, ao mesmo tempo, sua dissolução pelo equívoco imediato, um dizer que designa uma ex-sistência, que retorna ao S1 inicial modificando-o, perfurando-o, fazendo cair todos os significantes mestres e precipitando o final da análise.

Trata-se de uma transformação importante operada pela análise porque, conforme nos esclarece Chiriaco (2010, p. 13), sua vida sempre havia sido ordenada por palavras sábias, bem colocadas e com as quais tentava obter o amor de seu pai servindo-se delas como um esconderijo para seu fantasma de “‘morrer para ser desejada’”. A partir do equívoco derivado do sonho, as palavras não lhe servem mais de refúgio e passam a designar-lhe o fora de sentido. Chiriaco (2011, p. 128) também nos esclarece que, “contrariamente ao que parecia anunciar o sonho… não é a última palavra, nenhum significante que possa nomear definitivamente o sujeito de uma vez por todas, nenhum significante que diz toda verdade, nem todo gozo”. Não é algo ao qual se chega por uma dedução lógica, tampouco é uma proposição, mas o que só pode vir à luz através do forçamento de uma nova forma, de uma nova imagem, de uma nova escrita.

Podemos dizer que se trata do equívoco incurável, onde o mesmo ormeau” (molusco) se apresenta de outra forma, hors-mot (“fora da palavra”), possibilitando ao falasser servir-se de seu modo de gozo de outro jeito. Inventa-se, com o equívoco e através do corte que ele produz, outra forma de fixão do gozo, que leva o real a se comportar de outra maneira, fazendo aparecer o furo no qual o falasser sustenta sua existência. Constatamos, aqui, a meu ver, como o equívoco depende da imagem, isto é, da escrita, uma vez que uma escrita não deixa de ser, ela mesma, uma imagem. Nesse contexto, podemos dizer que o equívoco trata a palavra como imagem, como matéria, como coisa.

 

 Um outro retorno a Freud? 

Essa captura do real pela imagem, através da qual, por um momento, pelo modo do contingente, o real para de não se escrever, já pode ser, a meu ver, localizado nos primórdios da psicanálise, no sonho considerado por Freud (1900/1972, p. 113-130)       como inaugural, marca da descoberta da psicanálise: o sonho da injeção de Irma. Quando fez esse sonho, em 1895, Freud estava envolvido na experiência angustiante que marca o momento de suas principais descobertas, momento decisivo em que a função do inconsciente lhe era revelada. Esse sonho ganha seu valor exemplar por fazer parte do processo dessa descoberta referente ao tratamento da neurose.

Da mesma maneira como o sonho de Sonia Chiriaco marca sua passagem de analisante a analista, o sonho da injeção de Irma marca a descoberta da psicanálise e o advento do desejo do analista de seu criador, do desejo com relação ao que Freud então descobria. Assim, ambos os sonhos não podem ser separados de sua interpretação, sonho e interpretação devem ser considerados conjuntamente, isto é, como palavras que nos são endereçadas, como imagens que nos são mostradas.

Freud, segundo Lacan (1954-1955/1985, p. 187-217), considera um grande sucesso ter podido explicar esse sonho pelo desejo de desculpabilizar-se do fracasso do tratamento de Irma. É verdade que, na noite anterior ao sonho, depois de ter recebido uma visita de seu amigo Otto trazendo-lhe notícias não muito boas dessa paciente, em um tom que lhe parece ser o de uma reprovação pelo fracasso desse tratamento, Freud se dedica a escrever o caso a fim de justificar-se. Mas uma questão essencial é levantada por Lacan (1954-1955/1985, p. 193): “como é que Freud, ele que irá mais adiante desenvolver a função do desejo inconsciente, contenta-se aqui em apresentar um sonho totalmente explicado pela satisfação de um desejo que não se pode chamar de outro modo a não ser de um desejo pré-consciente ou até mesmo consciente?”. Podemos pensar, então, que o passo essencial no que concerne a interpretação do sonho não foi dado.

No entanto, Lacan (1954-1955/1985) nos adverte para o fato de que, se Freud confere tamanha importância a esse sonho, é porque tem a impressão de que deu esse passo, e isso realmente se verifica porque, mais de cem anos depois, o sonho da injeção de Irma ainda é capaz de nos guiar quanto ao real em jogo no tratamento da neurose e na formação do analista. Hoje, podemos dizer, com Lacan e com Miller, que esse sonho, assim como sua interpretação, preserva o tecido, a tela através do qual um real pode ser transmitido. Duas imagens do sonho nos mostram isso.

A primeira é a imagem da garganta de Irma. No início do sonho, vemos Freud reprovando Irma por não ter aceitado sua solução, insistindo para que ela abra a boca, pois é disso que se tratava na realidade: ela não abria a boca, não falava. Mas, quando Irma no sonho, finalmente, faz o que ele quer, quando ela abre a boca, o que Freud encontra vai além do que ele esperava encontrar, é algo diante do qual todas as palavras se estancam. Ele se depara com a imagem do fundo da garganta da paciente, “com crostas e placas esbranquiçadas sobre notáveis estruturas crespas” (Freud, 1900/1972?, p. 115): trata-se de uma imagem que ele próprio nomeia de aterradora e angustiante, associando-a ao feminino e à morte. Tudo se mescla e se associa nessa imagem, desde a boca até os órgãos sexuais femininos, é a carne que jamais se vê, o avesso da face, o fundo das coisas. Lacan (1954-1955/1985) designa essa imagem como a revelação do real.

Normalmente, um sonho que chega nesse ponto provoca o despertar do sonhador, mas Freud – tomado por seu desejo de saber – não acorda, e o sonho vai adiante culminando em outra imagem: a fórmula da trimetilamina.  Tal qual um oráculo, essa fórmula que aparece no sonho como uma solução, a derradeira palavra, não fornece resposta alguma ao que quer que seja, à solução da neurose ou ao sentido do sonho, pois não quer dizer mais nada a não ser que é uma palavra, o real cifrado em letras.

Nesse ponto extremo, Freud se liberta de sua culpa não porque se desculpe com relação à Irma, mas porque essa fórmula da trimetilamina, ao abolir todos os sentidos, exclui o falasser de toda a participação trágica na realização da verdade e, por conseguinte, na sua relação com o mundo. Esse momento marca um retorno no qual, onde havia inicialmente a culpa de Freud pelo fracasso do tratamento de Irma, presentifica-se seu desejo como causa do advento da psicanálise.

De todas as formações do inconsciente, o sonho se distingue por apresentar uma particularidade: o aspecto visual, o acesso direto à imagem. Se, como dissemos anteriormente, no ultimíssimo ensino de Lacan não é mais o significante, mas a imagem, que surge como recurso para enfrentar o silêncio do real, podemos considerar, então, que o sonho se torna uma via privilegiada de acesso ao real, sua via régia? Essa nova forma de conceber a interpretação que recai sobre a imagem e a mostração do real, seria um recurso para despertar os neuróticos de hoje de sua normalidade?

Referências bibliográficas

CHIRIACO, S. “La plaisanterie”. La Cause Freudienne, n. 76, Paris, Navarin, 2010, p. 9-14.

CHIRIACO, S. “Les noms, lalangue et le météore”. La Cause Freudienne, n. 78, Paris, Navarin, 2011, p. 127-131.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: ____. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1972 (Trabalho original publicado em 1900).

GARCIA, C. “A lei e a norma”. Curinga. EBP-MG, n. 17, 2001, p. 10-19.

LACAN, J. O seminário. Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (Trabalho proferido em 1954-1955).

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LACAN, J. O seminário. Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (Trabalho proferido em 1972-1973).

LACAN, J. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448-497 (trabalho de 1972).

LACAN, J. Le séminaire. Livre 25: le moment de conclure. (Inédito, 1977-1978).

MOUILLAC, G. “Recreação topológica”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n.89 (edição especial). São Paulo, 2023, p. 133-158. (Trabalho proferido em 2016).

MILLER, J. -A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013 (Trabalho proferido em 2006-2007).

VINCIGUERRA, R.-P. “A intemperante”. Curinga. EBP-MG, n. 17, p. 162-169.

Notas do autor:

[1] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[2] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[3] Lição do dia 21 de março de 1978.

[4] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[5] Lição do dia 15 de novembro de 1977.

[6] Lição do dia 20 de dezembro de 1977.

[7] Ver: Lacan (1972/2003, p. 491).

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