Seminário preparatório12.09.2024EIXO 3:

Comentário do relatório Jornada EBP-MG, eixo 3: quando tudo é normal, o que se analisa?

por Cristina Drummond (EBP/AMP)

O relatório feito em torno do terceiro eixo de discussão sobre o tema de nossa próxima jornada trata de um importante aspecto sob o qual as neuroses se apresentam em nossa contemporaneidade: a lei não funciona mais sob o regime do pai, da interdição e, em seu lugar, se apresenta o novo normal que não é mais a norme-mâle, a norma fálica. Esse “novo normal” se desdobra em normas que indicam um direito social mais inclusivo, mas que se derivam em grupos de gozos segregados e que também dão consistência a uma exigência de satisfação cada vez maior. Essas mudanças trazem consequências para nossa clínica, pois elas implicam em novas respostas do real, a um tal ponto que levou Lacan a propor a elas o termo de falasser no lugar de sujeito, que é um termo que se refere à lógica significante. A lógica que podemos construir a partir dessas mudanças traz uma outra maneira de intervir e de abordar a prática da psicanálise e encontramos, nesse relatório, apontamentos teóricos e clínicos para essa elaboração.

Miller nomeou o início do século 21 de era pós-paterna, dando sequência ao que Lacan[1] chamou de evaporação do pai. É essa mudança no discurso, já que a função paterna é uma língua, uma possibilidade de nomear. Essa mudança dá lugar à lei de ferro do social, ao ser nomeado para, consequência de uma função pragmática e, além disso, dá lugar ao direito generalizado ao gozo. Em sua « Nota sobre o pai », de 1968, Lacan retorna ao Édipo com um tom provocador, dizendo: « Todo mundo parece dizer que o mito de Édipo é evidente; eu peço para ver. »[2]  Mais uma vez, ele acentua o caráter não generalizável do mito  edipiano e insiste na relação com o pai: « é notável ver em Freud o polimorfismo daquilo que concerne essa relação com o pai»[3] Ele responde à questão de um jesuíta, filósofo e historiador das religiões, Michel de Certeau, em relação a Freud e à questão do pai. Se o texto de Freud sobre a neurose demoníaca de Haitzman considera as máscaras sucessivas do pai enquanto que degradado, Michel de Certeau pergunta o que acontece quando não há mais pai a quem se devotar. Lacan não evoca o polimorfismo do pai, mas a relação com o pai, dizendo que estamos na época da evaporação do pai. Ele propõe a ideia de uma cicatriz deixada por essa evaporação e que poderíamos colocar sob o título geral de segregação, apesar de acreditarmos que o universalismo, a comunicação, em nossa civilização, homogeneizariam a relação entre os homens. Se o pai do patriarcado evaporou, o sujeito tem que se haver com uma relação com o pai, que continua tendo sua importância.

Lacan não profetiza o desaparecimento total e súbito do pai, mas ,sublinha sua mudança de estatuto, ressaltando suas consequências. A cicatriz da evaporação do pai toma a forma contemporânea da segregação, mas trouxe ainda ao longo do tempo outras consequências, e podemos dizer que o mito de Édipo não é mais do que uma das maneiras de envelopar essa cicatriz, uma maneira de historicizá-la.

O fator prevalente na clínica das neuroses, hoje, é o empuxo ao gozo e o relatório aponta que as neuroses atualmente não se organizam em torno de um sintoma edípico tal como Freud o concebeu, sintoma fundamentalmente histérico, estruturado a partir da identificação e ligado ao sentido. A nova escrita do sintoma na lógica dos sacos e das cordas é resultado de um deslocamento para o conceito de sinthoma, que tem como palco os transtornos causados pelo gozo ao corpo, fora do campo do sentido.[4] O gozo está no singular do sinthoma, enlaçando simbólico, real e imaginário. É o encontro contingente com esse gozo, que está em jogo.

O relatório esclarece-nos que, no supereu, encontramos “o ponto giratório”, o que faz o neurótico girar em círculos, dar voltas e mais voltas em torno desse limite do gozo e no qual ele se recusa a reconhecer o impossível, a não existência da relação sexual. É esse circuito infernal que nos cabe enfrentar nos tratamentos, já que o furo da castração se encontra encoberto pela exigência do supereu, pelo empuxo em dar mais uma volta. Estamos diante da castração não do pai, como denunciava a histérica, mas diante daquela que decorre do furo da não relação sexual. Por isso, o relatório propõe que o trabalho com a neurose na atualidade é um trabalho de análise do supereu, ou seja, um trabalho com o real do gozo que sempre insiste em dar uma volta a mais. E como o gozo não é interpretável, nem todo posto em palavras, o que nos resta é operar com a moterialité a materialidade da palavra, o fora de sentido, o tecido e o corpo.

Uma interpretação sempre tem um efeito de corte se considerarmos o corte como a interrupção da sessão ou o devir do discurso. Mas quando buscamos a incidência da interpretação sobre o real do gozo, ela é reduzida à manipulação e ao corte que muda a estrutura dos objetos representados, assim como Lacan faz com os objetos topológicos. O real torna-se matéria, um tecido a ser cortado, manipulado, deformado, para que se possa extrair dele o efeito de furo, isto é, um dizer que faça escutar que a relação sexual não existe. Tomamos então um estatuto distinto daquele da palavra que se apresenta como significante fazendo cadeia, para extrair dele o equívoco, o mal entendido, o fora de sentido que fez acontecimento de corpo. O drama do ser falante é que seu corpo, do qual ele goza, lhe foi dado através de uma operação que toca o incorporal. E isso para cada um, de maneira singular. Por isso temos muito menos que nos ocupar com as histórias de família do que com o seu real.

Como disse Laurent, Lacan precisou “dar um passo a mais para generalizar e passar do sintoma que fala, ao sintoma que se escreve em silêncio, que não é mais comunicação, mas escrita.” Uma vez que o sintoma não se desvanece, há restos sintomáticos que revelam “uma forma lógica fundamental do sintoma como o que se escreve sobre o corpo e não fala, não passa pela experiência da fala, pois deixa de se interessar pelo sentido.”[5] Trata-se do que Miller chamou, em seu curso O ser e o Um, de desentologização: “a heresia lacaniana não consiste em deixar o campo da linguagem, mas em permanecer nele se regulando por sua parte material, ou seja, pela letra no lugar do ser”.

O recurso à topologia é um recurso à palavra como escrita, aquela que permite deformar e inventar. O relatório trabalha a figura topológica do toro que Lacan designa em “O aturdito” como sendo a estrutura da neurose. O toro, além de não ter bordas, tem duas faces, e diante das voltas em torno da alma ou espaço interior e do furo, mostra-nos que o verdadeiro corte da interpretação é um corte duplo e que a banda de Moebius é o próprio corte. Assim, é mesmo preciso um processo que traga efeitos de mudança topológica. A topologia nos apresenta figuras cujos cortes produzem efeitos de subversão[6] , as também traz figuras onde temos a continuidade entre duas dimensões distintas que, mesmo não sendo cortadas, se transformam. É uma lógica presente na deformação das figuras. O testemunho de passe de Raquel Cors nos traz um trabalho no qual a intervenção do analista consistiu muito menos em interpretar do que em nomear. O sujeito chega depois da perda de várias pessoas queridas e diante dessa depressão o caminho foi o de encontrar distintas maneiras de nomear sua posição. Seu nascimento foi marcado por uma luxação congênita e ela recebeu das enfermeiras o vaticínio de que era uma criança linda, mas que iria morrer. O uso de ferros nos quadris a faz formular que era pesada para seu Outro, fixando-se numa posição de isolamento, inibição e com dificuldades para articular palavras e falar em público. Impotente para se fazer escutar e fazer-se olhar. Em certa ocasião a analista lhe diz: “Raquel, uma sobrevivente”. Em outro momento, escondendo seu próprio olhar sob os cabelos, a analista lhe aponta o significante “desgraçada”, que ela usava para nomear a si mesma, e lhe diz para soltar a menina, posição que ela carregara a vida toda. O trabalho dessa análise girou em torno de uma separação da posição de objeto de menina desgraçada colada em seu Outro e a separação com a analista foi um processo difícil e fundamental. Ao comentar esse passe, Marie-Hélène Brousse[7] afirma que essa análise está incluída no inconsciente do sujeito e que a topologia para pensar suas mudanças não seria aquela da vizinhança e dos cortes apresentada pelo toro, mas aquela apresentada pelo cross-cap. Ela aponta que há nesse caso um tratamento feito muito mais através de nomeações do que de interpretações que cortam o sentido para dar lugar ao fora de sentido do equívoco. Isso me fez pensar que a topologia é um recurso para pensarmos a lógica da operação clínica e dos efeitos que ela produz.

Voltando ao toro, o relatório nos traz exemplos clínicos para nos ensinar como esse recurso nos permite compreender melhor o trabalho com o mal entendido, com a materialidade da palavra e com o gozo do corpo. Agora fica claro que não há relação entre um significante e a falta no simbólico. No que Lacan chamou de lalíngua, há somente significantes sozinhos, sem nenhuma relação binária, cada um trazendo uma vertente de gozo mortificante e sem significação, onde encontramos um simbólico enlouquecedor em seus efeitos traumáticos de ruptura da consistência corporal. A primazia do Outro dá lugar à contingência de lalíngua, que concerne ao corpo.

O primeiro exemplo tomado no relatório é o de um caso de bulimia atendido por Rose-Paule Vincinguera. O trabalho com a materialidade da palavra veio através de um ato falho da paciente. O caminho aqui não foi o de decifrar o sentido dessa formação do inconsciente, mas o de escandir o significante que surge – corperel – em corps-père-elle, fazendo aparecer dentro do corpo da palavra uma operação que permite desembaraçar o direito do avesso que funcionava como uma banda de Moebius entre o alimento e o sexual. Essa interpretação é corte porque aponta uma brecha entre esses significantes que aparecem colados e separa o que parecia estar articulado. Dessa separação, surge o silêncio, o ab-senso se ouve nesse próprio silêncio, tal como Lacan nos ensina em “O aturdito” [8]. A interpretação corta o sentido do sintoma, introduzindo em seu lugar uma significação vazia e sem sentido, que tem como efeito separar o corpo, o pai e ela. Ao mesmo tempo que revela o que está por trás desse tecido entre verso e anverso, sua identificação ao pai que ingurgita e escarra, mas mostra também seu lugar de objeto de gozo desse pai, assim como a natureza incestuosa desse laço que ela recusa querendo-se magra e andrógina, ao contrário da mãe que o pai deseja como uma mulher que “tem o que deve lá onde é preciso”.

O segundo exemplo é o do passe de Sonia Chiriaco. Ela relata distintas interpretações de seus analistas. Uma delas se remete ao seu duplo prenome Sonia/Dominique, “você é uma mentira ambulante”, proferida como um insulto, modo de apresentação do real da palavra. Estava aqui presente a palavra do pai que debochava dela no lugar de lhe transmitir seu saber enigmático. Em seguida, ela se refere a um sonho onde o analista lhe diz que vai ensiná-la a olhar nos olhos. Na sessão em que relata esse sonho, seu analista lhe diz que agora ele entendia por que a recebia frente a frente, e Eric Laurent comenta que analista e analisante estão do mesmo lado. E nesse trabalho de tessitura, surge o sonho de final de análise com o significante ormeau que, sendo uma criação da análise, é imediatamente dissolvido pelo equívoco. Ele faz cair os significantes mestres. O relatório nos diz que entre ormeaux e or-mot, permanecemos ainda no sentido. Somente no segundo giro, no segundo corte, entre or-mot e hors-mot, um real será apreendido. Quando Sonia diz que gostaria de terminar sua análise não tão bestamente, o analista lhe diz para escrever sobre seu medo de ser besta. Aqui a escrita conectada às interpretações anteriores que já haviam operado sobre as identificações e o fantasma de desaparecer para ser desejada é o que permite ao sujeito sair definitivamente de seu esconderijo, deixando aparecer a verdadeira amarração borromeana. A escrita é o que faz aparecer o equívoco da palavra fora de sentido e a separação de seu sintoma de se esconder. Temos, então, uma transmissão da passagem de analisante a analista, uma mudança topológica de lugar e de como ensinar o que não se ensina. A lógica, como diz Lacan em seu seminário 14[9], é o manejo de uma escrita, o que podemos ver se apresentar nesse relato.

Quanto à queda do patriarcado, Eric Laurent nos diz que, diante da recusa do laço mítico mantido por Freud entre o pai e o todo, do pai como universal, Lacan nos abre a via de uma nova lógica. Pareceu-me importante o que Sonia nos transmite sobre esse ponto. Se quando menina ela havia sentido medo e vergonha por não entender a palavra de uma canção e ao ser gozada pelo pai, ela compreende finalmente que este lhe havia transmitido o desejo de saber. Uma transmissão de um pai. Retornando à análise depois da morte do pai, ela sonha que havia encontrado a mala de viagem de sua infância, e com ela o gosto de viver.

O terceiro exemplo trazido no relatório é o do sonho de Irma, em suas duas vertentes, a imagem da garganta e a fórmula da trimetilamina. Imagem e escrita da fórmula. O trabalho de construção dessas distintas bordas da formação do inconsciente é o que dá lugar a uma nova invenção da qual todos continuamos a nos ocupar de fazer existir: a psicanálise e seus efeitos sobre o real.

Notas do autor:

[1] Lacan J., Note sur le père, 1968, in: La cause du désir, n. 89, Paris: Navarin Ed., 2015, p.8.

[2]  Lacan J., Note sur le père, 1968, in: La cause du désir, n. 89, Paris: Navarin Ed., 2015, p.8.

[3] Idem.

[4] Laurent, E. O Avesso da Biopolítica. Uma escrita para o gozo. Contra Capa: Rio de janeiro. 2016. Pg 43.

[5] Idem, pg 46

[6] LACAN, J. O aturdito (1972). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 474.

[7] BROUSSE M-H, Interlocución de Marie-Hélène Brousse, Bitácora Lacaniana, Número Extraórdinário, Que madres hoy?, NEL, Abril 2019

[8] LACAN , J. idem, p.459.

[9] LACAN, J. Le séminaire. Livre 14: La logique du fantasme (1966-1967) , Paris: Seuil, 2023, p.23.

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