Conclusão (fotos)
Momento de concluir os Seminários preparatórios
Imagens dos seminários: Cecília Batista – fotografia analógica.
ÚLTIMO SEMINÁRIO PREPARATÓRIO: Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?
Seminário preparatório
24.10.2024
CONCLUSÃO
Month: novembro 2024
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Totem e tabu não é mais um mito que nos permite ler o que acontece nos dias de hoje nas relações entre o falasser e o gozo. Essa relação cada vez mais escapa de uma submissão à lei, que é consequência do pacto firmado entre os filhos após o assassinato do Pai, e que estabelece a permanência do lugar paterno como vazio. Em Totem e tabu verificamos que num só tempo há uma renúncia ao gozo, “todos castrados”, e um consentimento de que o desejo sexual seja regulado pela lei. Sob essa lógica, a lei opera pela via da interdição, mas também franqueia o acesso ao gozo, aquele que ela estabelece como “normal”.
Como nos mostra o relatório referente ao Eixo 3 da 27a Jornada da EBP-MG, redigido por Simone Souto, a norma, com o declínio da função paterna, ao se apresentar ao modo da lei simbólica, altera a relação do falasser com o gozo: se, antes, imperava o universal “todos castrados”, com a norma se tem o imperativo “todos têm direito ao gozo”. a norma toma a voz do imperativo do supereu – Goza!. “Todos devem gozar” e, como o gozo que se obtém nunca é o gozo esperado, o falasser fica preso a essa repetição de gozo que não cessa de se escrever.
- O gozo é o limite
Em “O aturdito”,[1] Lacan observa que o supereu empurra o sujeito a um gozo para além do falo, fazendo-o girar em torno da aspiração por um gozo absoluto, imperativo. Esse imperativo sempre fracassa, pois, para o falasser, o gozo é aparelhado na linguagem e, o que subjaz sob esse imperativo é o impossível da relação sexual. Por essa razão, o supereu é correlato da castração. A castração se efetiva não mais pela via da lei paterna, mas pela hiância aberta entre o gozo que se obtém e o gozo que se espera. O gozo que se obtém está submetido a um limite, porque o furo da não relação sexual está estabelecido para o neurótico, embora ele nada queira saber sobre isso.
Sabemos da importância que Freud concede ao pai na relação do sujeito com o gozo. Em O avesso da psicanálise, Lacan ressalta que Freud, em um determinado momento, elege o complexo de Édipo em detrimento da escuta de suas analisantes histéricas, que podiam levá-lo bem mais longe, para além do complexo de Édipo, como Miller nomeia o conjunto de capítulos que apresenta essa observação lacaniana.[2] O curioso é que, em 1905,[3] encontramos uma passagem em Freud que de algum modo aproxima essa discussão sobre a castração não estar vinculada ao pai, mas a um processo interno. Ao discutir as inibições sexuais, observa que, no período de latência se constroem as forças psíquicas que vão funcionar como barreiras para restringir o curso da pulsão sexual no caminho de sua satisfação. O que chama a atenção é que Freud não atribui apenas à educação a responsabilidade da construção dessas barreiras, pois isso “pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxílio da educação”.[4] Para ele, a construção dessas barreiras é organicamente determinada e fixada pela hereditariedade. Embora não saibamos a que exatamente ele está se referindo com as palavras “organicamente” e “hereditariedade”, podemos interpretar essa passagem como a indicação de que o impedimento de uma pulsão se satisfazer livremente não está condicionado nem a um agente externo, nem a uma ameaça externa. Ou seja, há algo no próprio funcionamento psíquico que impulsiona a construção de barreiras e detém o fluxo pulsional em direção à satisfação. Logo, há uma perda da satisfação pulsional que não se vincula à clássica e hoje tão questionada interdição paterna.
Atualmente, como também nos mostrou Simone Souto no relatório já citado, sob a norma inclusiva do gozo, os neuróticos estão cada vez mais enredados em seus loopings de gozo e culpados por não gozarem como deveriam, esperando que, a cada volta, possam alcançar o gozo que conviria à relação sexual, caso ela existisse. A experiência analítica que se orientava pela primazia do simbólico já não é suficiente para lidar com esses sujeitos enredados na prevalência do gozo, pois o simbólico fracassa no acesso ao real. O real não fala, e, portanto, não é possível simbolizá-lo; trata-se, então, de acedê-lo pela imagem – como nos diz Miller: um novo visual para imaginar o real. É justamente o que Lacan propõe em seu ultimíssimo ensino: o imaginário como a via pela qual se pode vislumbrar o real.
Quando é o próprio gozo que engendra a castração, estabelecendo um limite, mesmo que o sujeito se recuse em consentir com o furo da não relação sexual e com a inexistência do gozo absoluto, como podemos, então, reconhecer o funcionamento neurótico, se não é mais o recalque que está no cerne da defesa frente à exigência pulsional?
Encontramos em cada relatório apresentado nos Seminários Preparatórios elementos para elaborarmos uma resposta para essa questão, além de um trabalho clínico exaustivo sobre essa temática. Não será meu objetivo retomar o caminho já percorrido, mas me servir dele para relançar uma ou, talvez, algumas questões que possam continuar nos inquietando até 27ª Jornada da EBP-MG.
No Seminário O sinthoma,[5] Lacan nos apresenta um outro modo de abordar a subjetividade do falasser. Não há mais a primazia entre os registros Simbólico, Imaginário e Real e sim uma relação de equivalência. Importa saber a relação que cada um tem com o outro e como eles se enodam. Pensar a clínica a partir do enodamento entre R, S e I, as falhas que acontecem nessa amarração e as reparações possíveis para mantê-los juntos a partir do acréscimo da quarta rodinha de barbante, o sinthoma, independente da estrutura clínica em jogo, é sair da lógica do gozo como resto de uma operação simbólica para tomá-lo como acontecimento de corpo, e tomar a constituição do sinthoma como iteração do gozo advindo do impacto do significante, S1 sozinho, no corpo. No sinthoma, há iteração do S1 sozinho, ou seja, ele não é definido como o retorno do recalcado.
Maria José Gontijo apresenta a importância do tema da 27ª Jornada, …e as neuroses continuam existindo, “em um mundo cada vez mais tomado pelas psicoses”,[6] lançando o desafio de cingirmos os referentes teórico-clínicos que nos orientem na diferenciação entre neurose e psicose e qual seria o estatuto da interpretação analítica.
- O fantasma, o objeto a e a inibição
No ultimíssimo ensino de Lacan, localizado por Miller nos Seminários 24 e 25, encontramos uma nova definição da neurose, sem recorrer ao Nome-do-Pai ou ao falo. Na lição “O real não fala”,[7] Miller retoma o esquema, apresentado no capítulo VIII do Seminário 20, que define os lugares de R, S e I a partir de três vetores orientados no sentido horário. Nesse esquema, também trabalhado no relatório do Eixo 1 redigido por Ana Lydia Santiago, o imaginário se dirige ao simbólico, I→S, e nessa imaginarização do simbólico se situa o fantasma; o simbólico se dirige ao real, S→R, e nesse caminho Lacan situa o objeto a. No referido capítulo, Lacan faz o movimento de estabelecer uma disjunção entre o real e o simbólico. Ao acrescentar o semblante no caminho do simbólico para o real, ele indica a inadequação do objeto a na abordagem do real, porque diz respeito ao efeito de sentido: “o simbólico, ao se dirigir para o real, nos demonstra a verdadeira natureza do objeto a”,[8] sua natureza de semblante de ser. E, por fim, o real se dirige para o imaginário, R→I, é a imaginarização do real. No Seminário 25, Lacan situa a inibição nesse vetor.
Frente à hiância que se apresenta, na neurose, entre imaginário e real, há uma dificuldade em se utilizar uma imagem para se ter uma ideia do real. Essa dificuldade é da ordem de uma inibição. Lacan, portanto, situa a inibição como uma defesa que impede o neurótico de imaginar o real.
- A inibição de Freud a Lacan
Em Freud, a inibição se refere a uma detenção do movimento, é o impedimento do exercício de uma função para evitar o desencadeamento da angústia. Ela consiste numa solução mais eficiente para a angústia, podendo, em alguns casos, evitar um conflito com o Isso. Freud apresenta, como exemplos, a inibição em tocar piano, ou escrever, ou andar, e “isso ocorre porque os órgãos físicos postos em ação – os dedos ou as pernas – se tornam erotizados de forma muito acentuada”.[9] Também existem inibições que servem à autopunição, em que o eu inibe a realização de atividades no campo profissional que trariam lucro e sucesso. Essas inibições evitam um conflito com o supereu.
Há estados de depressão que podem decorrer de uma inibição generalizada, quando o eu tem que lidar com uma tarefa psíquica particularmente difícil. Como exemplo, um neurótico obsessivo que era dominado por uma fadiga paralisante, que durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente deveria tê-lo enfurecido.
Lacan se serve das elaborações freudianas em “Inibição, Sintoma e Angústia” em dois momentos de seu ensino. Um deles se encontra no Seminário A angústia,[10] em que ele dispõe essa tríade freudiana em três planos, orientados pelos vetores da dificuldade e do movimento. A inibição ocupa o lugar em que há zero dificuldade e zero movimento. Diametralmente oposto a ela se encontra a angústia, sinalizando que seu lugar está determinado pelo alto grau de dificuldade e de movimento.
Outro momento é no Seminário RSI, logo nas primeiras lições, em que Lacan articula inibição, sintoma e angústia com os registros real, simbólico e imaginário, respectivamente:
[…] no que diz respeito à Angústia, Inibição, Sintoma, que distribuí em três planos
Inibição
Sintoma
Angústia
para poder, justamente, demonstrar, o que é sensível, desde aquela época, a saber, que esses três termos, Inibição, Sintoma e Angústia são heterogêneos entre si como os meus termos Real, Simbólico e Imaginário. (tradução nossa)[11]
No Seminário RSI, Lacan procura demonstrar que o nó borromeano, ou seja, a amarração entre os três registros, é o que constitui a subjetividade, a estrutura do ser falante, sem se valer do mito do Édipo, embora, em algumas passagens, tente articular o mito edipiano com os registros. Seu interesse pelo modo como Freud aborda a constituição do funcionamento psíquico em torno da inibição, do sintoma e da angústia se dá por reconhecer que, no texto em que esses termos aparecem no título, Freud pensa a estrutura neurótica sem colocar o mito de Édipo como central. Para Freud, a angústia é o elemento central das neuroses, e a inibição, por sua capacidade de antecipar-se ao seu surgimento, detendo o movimento, revela-se como a defesa mais eficiente contra ela. O sintoma, por sua vez, é uma resposta ao desencadeamento da angústia.
O primeiro ponto a ser destacado quanto à inibição é o fato de que ela própria resolve o que não pode ser satisfeito no corpo, ou seja, a satisfação é posta fora de ação pela detenção do movimento. Já o sintoma, enquanto retorno do recalcado, é definido como “um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente”,[12] e demonstra que a defesa do recalque falha. A presença do sintoma no eu é sempre a de um corpo estranho, de algo que não lhe pertence.
Quando Lacan, em seu ultimíssimo ensino, define a neurose a partir da inibição – inibição em produzir um visual sobre o real, porque entre o real e o imaginário não existe continuidade, e sim hiância –, ele segue a orientação freudiana de que na inibição há uma eficácia, pois há uma detenção do movimento. Isso vai na mesma direção da seguinte afirmação de Miller: “é certo que o que ele chama angústia é o que conota a passagem da realidade ao real, a travessia da realidade no sentido do real e que, com isso, é correlativa de uma falha do significante”.[13] O que estanca esse movimento, o que o detém, com a finalidade em evitar a angústia, é a inibição. A inibição, portanto, é uma defesa frente ao real.
- Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?
Sabemos que, na neurose, a hiância entre I e R não se desfaz. E quanto à inibição? É possível transpô-la? Transpor a inibição comporta consentir com o “não há relação sexual”? Ou o que acontece não seria da ordem de uma transposição, e sim de uma supressão, da Unterdrückung, tal como sugere Lacan em relação ao tropeço de memória de Freud, o esquecimento da palavra Signorelli? No caso, a “palavra Signor, Herr, passa por baixo – o senhor absoluto, a morte, para dizer tudo, desaparece ali”.[14] Isso quer dizer que o Signor é mantido no circuito sem poder entrar nele por algum tempo. Podemos pensar que a inibição pode ser suprimida, mas ela se mantém, sem interferir no processo em que se produz um visual para aceder o real? A inibição fica fora do circuito apenas por um tempo?
Durante a discussão do primeiro relatório, Jésus Santiago perguntou se o sonho poderia ser um visual proposto pelo imaginário para se ter uma ideia do real. No relatório do Eixo 3, Simone Souto propõe o sonho como uma via para apresentar esse visual, porque apresenta uma imagem “para enfrentar o silêncio do real”.[15] Traz como exemplo o sonho de Freud da Injeção de Irma.
Ao analisar seu sonho, Freud aponta para o momento em que surge uma imagem aterradora e angustiante, que é a imagem do fundo da garganta de Irma. Lacan reconhece nessa imagem a revelação do real. Freud não desperta e seu sonho vai mais adiante, conduzindo-o a uma outra imagem, que é a fórmula da trimetilamina. Nesse sonho, surge um visual para se aceder ao real, de dois modos diferentes. Num primeiro momento, só a imagem aterradora; como Freud vai além e não acorda, para continuar sonhando, chega a uma segunda imagem, a fórmula da trimetilamina, que não conduz ao sentido, mas a uma sequência de letras, que Lacan aborda como sendo o real cifrado em letras. O percurso desse sonho poderia ser reduzido do seguinte modo: da imagem aterradora – um visual do real – que causa angústia, à imagem de um real cifrado em letras. É possível dizer que a fórmula da trimetilamina, esse segundo visual, foi a solução encontrada por Freud ao horror ao feminino? Embora em suas elaborações o enigma do feminino persista com a questão O que quer uma mulher?, ele não alcança teoricamente o triunfo alcançado em seu sonho: o feminino fora do sentido.
Se, nesse sonho, uma imagem se produz capaz de revelar o real que não fala, o que aconteceu com a inibição? Ela foi suprimida por um tempo, permitindo que esse visual que revela o real passasse por baixo?
Eu lanço a hipótese de que, ao menos nos sonhos, quando eles produzem um visual que acessa o real, a Unterdrückung, a supressão da inibição, é sempre contingente. A inibição em imaginar o real, nesses casos, não é abolida. A inibição sofre a ação da Unterdrückung. Esse visual que surge no sonho não significa necessariamente que o sonhador vislumbre o furo da não relação sexual e extraia disso todas as consequências. Produzir, conforme indica o relatório do Eixo 3 escrito por Simone Souto, uma outra “fixão do real” só é possível através da experiência analítica, em que o analista interpreta com o corte de sentido, fazendo surgir uma significação vazia.
Trago um sonho extraído do testemunho de passe de Jésus Santiago, no qual é possível extrair um visual do real a partir do equívoco homofônico entre duas línguas diferentes. O sonho é o seguinte:
Estou numa comemoração na Escola, aproximo-me de um de meus colegas que participava do grupo de discussão sobre o tema de um relatório e digo-lhe que encontrei a fórmula para a solução do problema do masculino. Convido-o para ir até a biblioteca e, no instante de mostrar-lhe minha descoberta, vejo folhas em branco, onde está escrito apenas o título: “fórmula Q”. Fico desapontado: onde teria escrito a solução, deparo-me com o vazio.[16]
Ao relatar esse sonho na língua francesa, o que fica é a fonação “formule cul”. Essa palavra, cuja significação é vazia, é uma imagem que captura o gozo traumático do sujeito. Embora não seja um sonho de final de análise, é a demonstração de que o final já estava em perspectiva.
Até o momento, arrisco dizer que, através dos sonhos, é possível suprimir a inibição de se imaginar o real e, com isso, produzir uma imagem que dê certa ideia do real. Nos sonhos, isso acontece de modo contingente, o real cessa de não se escrever, ao menos naquele momento. Outra via para que se possa aceder ao real pelo imaginário é a experiência analítica orientada pela interpretação como corte, que esvazia o sentido, cuja visada é o gozo do sinthoma.
O que acontece com a inibição que se aloja na hiância entre imaginário e real, dificultando ao neurótico imaginar o real numa experiência analítica? Haveria outra possibilidade, para o neurótico, de aceder ao real pela via de um novo visual, apesar da inibição? A esfoliação do imaginário, que acarreta a redução do fantasma, é capaz de vencer a inibição e permitir ao neurótico aceder ao real pela via da imagem? Foram essas questões que me surgiram ao ler o relatório do Eixo 2, escrito por Lilany Pacheco. Esse relatório formula a seguinte hipótese, partindo do lugar de primazia do corpo no ultimíssimo Lacan:
esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes no que retornam como algo tangenciável como gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real, e não mais a tela de proteção.[17]
Lacan, ao formular que o fantasma não é apenas tela para o real, mas também funciona como janela para o real, propõe duas funções para ele. Uma delas seria a de proteção, de anteparo, mantendo o falasser a uma boa distância do real – aqui a inibição em imaginar o real se apresenta. A outra, como janela para o real, seria de abertura ao real. O fantasma, nessa função de janela para o real, seria ele próprio um visual do real?
Por um bom tempo, as análises eram conduzidas para a construção do fantasma reduzindo-o a uma frase axiomática, tal como “Bate-se numa criança”. A travessia do fantasma, ou seja, sua redução a uma frase axiomática, possibilitar-nos-ia ter acesso ao real. Lacan, no entanto, observou que sempre há restos que não foram modificados pela travessia do fantasma. São esses restos que iteram no sinthoma.
Sérgio de Mattos, em seu texto “O que se passa no que não anda na neurose”, apresentado recentemente na Conferência dos Analistas da Escola, nos dá uma orientação do que acontece quando, ao esfoliar o imaginário, reduz-se o fantasma a uma frase axiomática, permitindo ao sujeito, com isso, cingir o objeto a que está em jogo. O longo trajeto de análise e os cortes do analista permitiram-lhe uma transformação em sua relação com o fantasma fundamental como programa de gozo. Ou seja, já não estava tão submetido ao enquadre fantasmático. Foi um período da análise em que houve “o enfraquecimento da tela defensiva do fantasma e ao mesmo tempo totalmente tragado pelo gozo do apagamento”, gozo de seu sinthoma. Nesse momento, sonha estar caminhando em um deserto, quando tropeça em um toco. O trabalho analítico lhe possibilita encontrar uma solução pragmática para essa imagem do sonho em que o toco marca uma orientação: “tocar adiante”. Por outro lado, o (t)oco lhe remete ao nada que se conecta à imagem do deserto. Sem o enquadre fantasmático, ao cingir o nada através do sonho pôde desvelar a “situação de devastação que vivia como um radical apagamento”. Com isso, é levado à lembrança infantil de um acontecimento de corpo, permitindo-lhe discernir o objeto a em jogo em seu fantasma: o objeto nada. A análise continua, ultrapassa o deserto, e “transforma o nada em um lugar que situa um vazio”. Isso se verifica em um sonho em que há, entre outras coisas, “uma moldura que envolve um vazio de azul maravilhoso” e uma outra moldura que contém no seu interior uma mandíbula de osso, representando a morte; mas a vida também se faz presente alí através da imagem da trepadeira florida, que se enrosca na moldura da morte. Esse sonho produz o visual em que o nada se transforma em vazio vivificante. Com esse testemunho, observamos a passagem do fantasma como tela para o real, e, portanto, em sua função de defesa, de anteparo para o real, para o fantasma enquanto janela para o real. Essa passagem só é possível quando há esfoliação do imaginário.
É possível dizer que a redução do fantasma em uma frase axiomática – uma frase, portanto, sem sentido – é um visual, uma vez que ele se apresenta como janela para o real? Essas duas molduras que aparecem no sonho – uma que envolve um vazio de azul maravilhoso e a outra em que a mandíbula de osso, que representa a morte, se entrelaça à vida pela presença da trepadeira florida – seriam a exemplificação de que houve uma Unterdrückung da inibição e, com isso, a produção de um visual para se ter uma ideia do real que não fala?
Após esse percurso, lanço minha hipótese: da mesma forma que a hiância entre o imaginário e o real, na neurose, não se desfaz, o mesmo aconteceria com a inibição. Ou seja, não há transposição, tampouco desaparecimento da inibição em imaginar o real. Acredito que há Unterdrückung da inibição, e ao ser suprimida, uma imagem passa por baixo revelando o real através dela para o falasser.
Notas do autor:
[1] LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972).
[2] LACAN, J. O mestre castrado. In: O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
[3] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1969. (Trabalho original publicado em 1905).
[4] Idem, ibidem, p. 181.
[5] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
[6] GONTIJO, M. J. Argumento. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Argumento, eixos e citações. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/argumento/. Acesso em: 01 out. 2024.
[7] MILLER, J.-A. O real não fala. In: El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Stéphane Verley. Buenos Aires: Paidós, 2013.
[8] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
[9] FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926). p. 110.
[10] LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final de Angelina Harari e preparação de texto de André Telles; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63). p. 22.
[11] LACAN, J. Le Séminaire, livre XXII: R.S.I. Leçon du 17 décembre 1974. (Trabalho original publicado em 1974-75).
[12] FREUD, 1926/1996, p. 112
[13] MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário 10 da angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 43, p. 7-91, mai. 2005. p. 17.
[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979. (Trabalho original proferido em 1964). p. 31.
[15] SOUTO, S. Quanto tudo é normal, o que se analisa? In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/quando-tudo-e-normal-o-que-se-analisa-eixo-3/. Acesso em: 01 out. 2024.
[16] SANTIAGO, J. O nome, o oco e a fonação. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 67, p. 89-96, 2013. p. 93.
[17] PACHECO, L. A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-tela-do-fantasma-e-a-esfoliacao-do-imaginario/. Acesso em: 01 out. 2024.
ÚLTIMO SEMINÁRIO PREPARATÓRIO: Para ainda (não) concluir
Seminário preparatório
24.10.2024
CONCLUSÃO
Month: novembro 2024
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O tema de nossa Jornada, …e as neuroses continuam existindo, leva-nos a interrogar como as neuroses se apresentam no contemporâneo. Quais desafios o sofrimento dos neuróticos expõe, quando aparentemente tudo é normal? Que invenções e arranjos criam para lidar com o mal-estar generalizado? Quais as estratégias para recobrir a inexistência da relação sexual? E, também, quais as dificuldades que se colocam aos analistas no que se refere aos impasses, na transferência, à questão do diagnóstico, à condução do tratamento, à interpretação, uma vez que as normas fálicas e edípicas se distanciam, o Nome-do-Pai encontra-se evaporado e o romance familiar não tem a mesma consistência de outrora? Enfim, como “ler” as neuroses contemporâneas? O que mudou na clínica?
O convite feito por Maria José Gontijo e Bernardo Micherif, assim como a orientação da Comissão Científica, me instigaram a retomar, neste último encontro, como os seminários anteriores conversam entre si, de modo que pudéssemos extrair pontos que ficassem como vetores do percurso realizado ao longo do ano, bem como para a Jornada que se aproxima.
Assim, proponho, à luz de algumas pontuações clínicas que foram trabalhadas, localizar como se dá a prática analítica contemporânea. O desafio lançado por Bernardo[1] em seu argumento foi o de darmos um passo a mais, tendo como bússola o conceito de sinthoma desenvolvido no Seminário 23 e adentrar nas pistas dos Seminários 24 (L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre) e 25 (Le moment de conclure), ambos inéditos, nos quais Lacan recorre aos nós e aos toros, literalmente manejando-os, recorrendo pouco às palavras e privilegiando o fato de que “o Real não fala”,[2] que “o inconsciente tem a ver com o escrito”[3] e “de recorrer ao Imaginário para se ter uma ideia do Real”.[4]
Um ponto importante levantado nos relatórios foi de como, hoje, o Simbólico encontra-se “inadequado e rebaixado”.[5] Miller chega a falar de eclipse da ordem simbólica, e, com isso, contamos com o recurso do Real e do Imaginário com igual valor e peso na lógica do nó borromeano, desenvolvido no Seminário 23.
Temos o corpo enquanto imaginário, lugar onde o gozo se manifesta por excelência, através da ruminação obsessiva e dos devaneios da histérica. Tomando como referência o eixo de trabalho intitulado “Onde estão os neuróticos e de onde eles não saem”, foi possível pinçar dois breves relatos de pacientes. Um obsessivo me diz: “Parece que sofro da Síndrome de Estocolmo, aquela em que a pessoa sequestrada gosta do sequestrador… Sou fascinado pelo próximo erro que vou cometer – fascinado, é essa a palavra que melhor encontro! Sou fascinado com o que pode acontecer de ruim, estou sempre esperando o pior. É como se eu gostasse disso! Fico cortando o meu barato; se vivo algo bom, só penso que vai acabar… Minha vida é um eterno domingo à tarde!”. A palavra fascinado alude ao termo “facínora”, atributo do supereu, evocado por Freud em seu texto “Arruinados pelo êxito”.[6] Esse recorte demonstra como o pensamento e a recriminação foram a via utilizada por esse falasser para não se haver com o enorme prazer que tinha com a pintura, da qual se privava, em detrimento dos cuidados com a família.
Em contrapartida, no discurso de uma mulher, conseguimos entrever a infindável justificativa quanto à sua solidão: “Os homens de BH são muito gays; na minha faixa etária é difícil encontrar alguém disponível, eles não se interessam e só querem as menininhas; ou, então, só aparece homem casado em minha vida e eu tenho sempre que ser a outra, nunca a oficial…”. O ponto de gozo desse sujeito está justamente em se colocar em uma procura infindável de um homem perfeito, exatamente para não o encontrar.
Enquanto analistas, estamos advertidos por Miller de que a “razão real de ser” de cada um é o gozo, como nos lembra Ana Lydia Santiago[7] em seu relatório. Temos, assim, o gozo em sua dimensão de repetição e até mesmo de iteração e reiteração: aquilo que retorna ao mesmo lugar, em uma espécie de ritornelo, o “não quero saber nada disso”.[8]
Um outro aspecto que podemos extrair dos relatórios é o lugar que ocupa a inibição nos três registros. Em seu Seminário 25, Lacan nos fornece uma pista:
um tecido, seu suporte, é o que eu chamei de o Imaginário. E o que é surpreendente é justamente isso, a saber, que o tecido, isso se imagina somente. […] É preciso dizer que o tecido não é fácil de imaginar, pois que aí isso se encontra somente no corte. Se eu falei de Simbólico, Imaginário e de Real, é bem porque o Real é tecido. Então como imaginar esse tecido? Pois bem, é precisamente aí que está a hiância entre o Imaginário e o Real. E o que há entre eles é a inibição… precisamente em imaginar. Mas o que é essa inibição, pois que, também, temos dela aí um exemplo, não há nada mais difícil que imaginar o Real; e aí parece que giramos em círculo e que, nesse negócio de tecido, o Real é bem isso que nos escapa e é por isso que nós temos a inibição. É a hiância entre o Imaginário e o Real que faz nossa inibição[9].
Essa assertiva de Lacan nos conduz a outra indagação: o que ele queria dizer com “o Real é tecido”? Haveria um tecer em jogo na esfoliação do Imaginário para se aproximar do Real? O exemplo clínico trazido por Ana Lydia[10] no Seminário de Orientação Lacaniana, “A mulher-borboleta”,[11] extraído da Conversação Clínica ocorrida em Montpellier, ilustra a maneira da tessitura do Real. Resta-nos imaginar o Real quando não contamos com o Simbólico e, ainda, como “a inquietante estranheza (o infamiliar / Unheimlich) que provém do Imaginário” causa uma inibição, tal como descrito por Lacan no Seminário 23.[12]
Interessou à analista da paciente (Marie-Hélène Blancard) trabalhar o momento em que a imagem se destaca como algo de infamiliar, admitindo que essa imagem aponta para o real em jogo nos impasses de sua vida amorosa. Trata-se de uma atriz que estava fazendo um filme que se passa no campo, quando subitamente é capturada pela imagem de uma borboleta que pousa a seu lado. Tomada por extrema angústia, fica tão desconcertada que a cena que estava sendo filmada precisou ser interrompida – algo de uma estranheza a perturba, e a todos à sua volta. Tal cena a remete às lembranças da infância, ao olhar imóvel do avô inválido sobre ela, às brincadeiras com o filho do vizinho e ao pai deste, que a levava para passear em seu trator. Esse homem, em uma cena de abuso, provoca-lhe um prazer perturbador e, depois, muita vergonha. A analista da paciente afirma que essa mulher tinha certa inibição intelectual, não habitava o próprio corpo, vivia como uma borboleta, passando por cima dos acontecimentos da vida com “leveza”, como se nada a afetasse, ou como se nada estivesse acontecendo em uma posição de bela indiferença.
Assim, a introdução no campo visual da borboleta irrompeu algo que refere ao trauma do gozo, à cena sexual e, ao mesmo tempo, ao significante borboleta, sua forma de viver. É como se a borboleta se afirmasse, diante da paciente, em sua imobilidade – aí está o ponto da angústia –, bem como o olhar parado de seu avô sobre ela, que a leva a fugir para a casa do vizinho. Toda essa moldura está sob o regime do olhar, não esquecendo o enquadramento da câmera, a imagem através do filme rodado, acompanhado de palavra alguma: “não há discurso”, afirma Miller na referida Conversação. Parece que o cinema não deixou de ser uma forma encontrada por ela para lidar com o objeto olhar. A borboleta que a olha parada remete a um traço do gozo desse sujeito, do qual não se desvencilha, e que, segundo sua analista, aparece igualmente na transferência (entre o ir e faltar nas sessões) e em sua relação com o parceiro amoroso (ao também se colocar como ausente na relação sexual, inibida frente ao sexual).
Isso nos interessa porque, tal como Ana Lydia esclarece, podemos tomar a emergência do fenômeno do infamiliar como o aparecimento, no campo visual, das marcas próprias do gozo feminino. Ela ainda lança a pergunta sobre como o infamiliar, através da imagem da borboleta, pôde favorecer a responsabilização desse falasser por seu modo de gozo. Acho que seria um ponto interessante para conversarmos!
Seguindo os passos de Bernardo Micherif em seu argumento sobre o eixo de trabalho “A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário”, podemos ainda pensar, com o exemplo clínico da “mulher-borboleta”, que temos no Unheimlich aquilo que o fantasma recobre, ou seja,
uma imagem do Real na qual certo modo de gozo se fixou e que os neuróticos tentam expulsar como um corpo estranho, intrusivo, um excesso que extrapola o enquadre fantasmático, desagrega a imagem do corpo próprio e não encontra seu devido lugar quando se fala.[13]
Sabemos que Freud colocou o fantasma como algo construído no percurso de uma análise, como um aforismo sobre o ser de cada analisante; podemos dizer que é certa montagem simbólica com representações imaginárias. Miller nos elucida, ao indagar:
O que é a fantasia? Numa primeira abordagem, diria que é essencialmente o que, para o sujeito, faz tela diante do Real. A travessia dessa tela é suposta lhe permitir ter acesso ao Real, ter uma entente com o Real, da qual o sujeito, até então, estava cerceado, era incapaz. Essa fantasia faz tela não apenas para o Real, mas também para o seu ser de sujeito, porquanto aquilo que precipita um sujeito para a análise é a busca desse ser, é a pergunta: quem sou eu? […] A fantasia, porém, não é apenas tela, tela do Real, ela também é, a um só tempo, janela sobre o Real.[14]
Nesse mesmo seminário, Miller afirma que havia uma segurança do sujeito proporcionada pela fantasia que fixava seu lugar no Real, como um anteparo. Porém, é preciso ir além, transpor o que se localizou como uma identificação ao objeto da fantasia. Em que pese uma análise permitir ultrapassar essa janela e até mesmo revelar algo de uma verdade, há sempre um resto ineliminável, há a repetição do gozo em sua vertente de iteração.
Assim, pensando na esfoliação necessária a ser feita em relação ao Imaginário, e ao corte operado para que o gozo do corpo dê lugar à frase do fantasma, tomemos um caso trabalhado no Eixo 2. Após a separação dos pais, a criança, em idade tenra, procura a mãe pela casa e se depara com a porta do quarto dela fechada. Escuta barulhos advindos dali. Depois, só o silêncio. Perplexo, o menino foge, mas, à distância, vê a porta se entreabrir e a mãe sair furtivamente do quarto de dormir, onde estava com o namorado, tentando não se fazer vista. Tal cena fixa a posição deste falasser, é uma cena que se repete ao longo de sua vida amorosa, uma vez que ele, extremamente ciumento nas relações, se coloca sempre como um terceiro excluído. Tratando-se de alguém que está em análise, foi possível fraturar essa cena quando, após um rompante em um bar, ele briga com a esposa ao acusá-la de estar sendo sedutora com um amigo próximo. Porém, após o rompimento com ela, algo se desmonta ao se recordar da cena infantil. Foi preciso esfoliar esse Imaginário, passar de um Real como impossível para um Real contingente. No consultório, o sujeito pôde se confrontar com a inexistência da relação sexual, algo impossível de eliminar, como bem sabemos. O objeto olhar estava também colocado, uma vez que esse falasser recorre à fotografia como seu modo de vida.
Para os neuróticos, aquilo do qual nunca se sai é o não querer saber da relação sexual que não existe. A esfoliação tem efeitos sobre o corpo. O tecido é o corpo; esfoliar esse “não quero saber” faz-se necessário! Aqui poderíamos perguntar: o que se passa no quarto de dormir? O neurótico não sabe o que se passa no quarto de dormir, “em que nada acontece, exceto que o ato sexual se apresenta como foraclusão propriamente dita, Verwerfung”.[15] O impossível de eliminar é a inexistência da relação sexual, aquilo do qual nunca se sai. O furo central é esse tentar velar a inexistência da relação sexual. Ainda com Lacan:
Da função do fantasma […] ao âmbito dito perverso, à sua função no registro neurótico, há exatamente, direi, a distância até o quarto de dormir.
[…] na fobia a coisa pode se passar no guarda-roupa, ou no corredor, na cozinha. Na histeria a coisa se passa no parlatório. […] Na obsessão, na latrina.
[…] Esse quarto de dormir é o que comumente se chama consultório do analista.[16]
De tal forma que poderíamos pensar com Lacan que a prática do analista é aquela que “deve dar conta de que haja cortes do discurso que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente.”[17]
Miller destaca que “se Lacan fala em ‘atravessamento do fantasma’, e não em ‘levantamento do fantasma’, é porque não se trata de forma alguma do seu desaparecimento. Trata-se de ter um vislumbre, logo no início, do que está por trás disso”.[18] Nesse sentido, o relatório de Lilany Pacheco[19] nos convida a pensar que
a ênfase dada pelo último ensino de Lacan à clínica do sinthoma e aos restos sintomáticos na solução do falasser, para o fim de uma análise, não dispensa a verificação das duas dimensões clínicas: o sintoma e o fantasma, desde o início de um tratamento.
Poderíamos pensar que tal localização se aproximaria do que antes chamávamos de localizar o nome de gozo, a marca de gozo de cada paciente?
Ainda com Miller: “O engraçado é que não há nada por trás do fantasma. O fim da análise consiste justamente em caminhar pelo lado do nada”[20]. Oscar Ventura[21] nos ensina, em um breve relato, o sonho que o levou ao Passe. Poderíamos tomar esse sonho como uma via para abordar o Real através da imagem?
No sonho, Oscar Ventura está em uma varanda e uma figura salta por cima dele, caindo no vazio e produzindo um ruído seco, fulminante e fugaz. Depois, há um silêncio; ele sai correndo escadas abaixo, angustiado, não sem a curiosidade de saber quem se atirou – quem havia caído? Tal angústia não lhe causa o despertar, ela habita dentro do sonho, e o acompanha, lado a lado, até a cena na qual, em círculo, pessoas impedem veladamente sua visão, até o grande final de seu sonho, quando indaga: “Quem é? E uma voz anônima lhe responde: É sueco”. Já acordado, surpreso, mas sem angústia alguma, ao decompor o significante sueco em su-eco (“seu eco”), uma grande gargalhada toma conta de seu corpo inteiro. Ele se recorda de que, na infância, quando se deparava com uma palavra sem o menor sentido, sem significação alguma, sendo pronunciada, tinha ataques de risos, ria tanto que ficava com o corpo leve, livre às contingências da vida… Aos poucos, ele vai se despertando, tendo o humor como companhia, largou o estranho sueco entre os lençóis do sonho, bem como o eco (ao qual o pensamento poderia querer dar algum sentido), e pôde constatar que, desde então, algo havia se desprendido, caído, o que o levou a outorgar um valor conclusivo a esse sonho.
Por que esse sonho foi conclusivo? 1) Porque, com ele, interrompeu-se uma inclinação quase obrigatória que ele se colocava: a de dar sempre significações a seus sonhos. Isso lhe causava efeitos no corpo, de fastio e de tédio, que o invadiam ao despertar, pois, depois de sonhar, tentava saber o que queria dizer o sonho sonhado. 2) Segundo ele, porque talvez os sonhos não tenham nenhum destino que se escreva além do corpo que os sonha, ou seja, talvez os sonhos sejam só sonhos, e talvez o despertar só tenha relação ao efeito que o sonho pode chegar a ter sobre o corpo, quer dizer, o que o faz rir escreve-se como acontecimento. Para Oscar, o que chamamos “acontecimento de corpo” é o índice mais preciso que anuncia a ausência de relação sexual, esse umbigo insondável. 3) Para ele, a vida não sonha, ela simplesmente palpita na borda de um furo, que se afasta de qualquer significação que se possa dar; tal “sonho só pode ser lido sob a égide de uma escrita que desloca o campo do ser ao campo da letra”[22]. E ainda, tal sonho perfura qualquer sentido através de um significante sem sentido que cai: sueco, su-eco (“seu eco”), que paralisa a metonímia infinita a que até então se entregara. Em suas palavras: “Então, nesse litoral, no qual uma letra, por minúscula que seja, tem o efeito de fazer ressoar no corpo uma satisfação, bizarra talvez, mas que converte o sujeito mais em um ‘encontrador’ de letras do que um escravo da metonímia”.[23]
Penso que, com esse sonho, um corte se operou. Temos o aspecto visual, o acesso à imagem de um corpo que cai, que angustia o falasser, mas não o leva a acordar, a cena de todos lhe impedindo de ver quem era, e a voz que ressoa trazendo um significante novo, sem o menor sentido. O despertar traz ressonâncias no corpo, o riso, sua leveza, o humor, a interrupção da interpretação metonímica de seus sonhos. Tal como um toro, uma figura de borracha branda e maleável que permite ser deformada, até mesmo cortada, mas que mantém sua propriedade, pode-se constatar que o falasser passou a “servir-se de seu modo de gozo de outro jeito”,[24] como Simone Souto trabalha em seu relatório. Segundo Lacan,[25] “O final de análise é quando se encontrou aquilo de que se é prisioneiro; […] basta que se veja aquilo de que se está prisioneiro. […] E o inconsciente é a face de Real daquilo em que se está enredado”.
Assim, espero ter levantado pontos a serem desdobrados ao longo da 27ª Jornada da Seção Minas. Ainda temos muito a avançar e a decifrar sobre o chamado “ultimíssimo ensino” de Lacan. Vê-se como Lacan continuou se esforçando por fazer valer não algo de uma “obra”, tampouco uma “teoria”, mas por manter-se fiel a seu ensino. Ele não se pensava como autor, mas permanecia como um ensinador, aquele que fala para alguns, que, em posição de aprendiz, se endereçam à psicanálise. Acompanhamos também o empenho de Miller na labuta de estabelecer, passar o que era audível ao legível e desenhado, para reencontrar o que Lacan quis dizer e não disse, traduzindo uma verdadeira arquitetura organizada como superfícies em torno de um vazio.[26]
Notas do autor:
[1] MICHERIF, B. Eixos de trabalho. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/. Acesso em: 01 out. 2024.
[2] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014. p. 235.
[3] Idem, ibidem, p. 236.
[4] Idem, ibidem, p. 258.
[5] Idem, ibidem, p. 192.
[6] FREUD, S. Arruinados pelo êxito. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIV, 2006. (Trabalho original publicado em 1916).
[7] SANTIAGO, A. L. Da vontade de justificação à repetição de gozo. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/da-vontade-de-justificacao-a-repeticao-de-gozo/. Acesso em: 01 out. 2024.
[8] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73). p. 9.
[9] LACAN, J. Le séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Lição de 8 de maio de 1978. (Trabalho inédito).
[10] SANTIAGO, A. L. A mulher-borboleta: o infamiliar provém do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-mulher-borboleta/. Acesso em: 01 out. 2024.
[11] MILLER, J-A. Parlament de Montpellier. Conversação clínica em torno do Seminário 23. mai. 2011. (Trabalho inédito).
[12] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76). p. 47.
[13] MICHERIF, B. Eixo 2: A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Eixos de trabalho. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/eixos-de-trabalho/#_ftn1. Acesso em: 01 out. 2024.
[14] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 03 de fevereiro de 2011. 2011. (Trabalho inédito).
[15] LACAN, J. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Theresinha N. Meirelles do Padro; versão final de Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2024. (Trabalho original proferido em 1966-67). p. 354.
[16] Idem, ibidem, p. 354.
[17] LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972). p. 479.
[18] MILLER, J.-A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Texto estabelecido por Silvia Elena Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2018. p. 16.
[19] PACHECO, L. A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-tela-do-fantasma-e-a-esfoliacao-do-imaginario/. Acesso em: 01 out. 2024.
[20] MILLER, 2018, p. 16.
[21] VENTURA, O. Sonhar depois do final. Scilicet: o sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2020. p. 205.
[22] Idem, ibidem, p. 206.
[23] Idem, ibidem.
[24] SOUTO, S. Quando tudo é normal, o que se analisa? In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/quando-tudo-e-normal-o-que-se-analisa-eixo-3/. Acesso em: 01 out. 2024.
[25] LACAN, J. Le séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Lição de 10 de janeiro de 1978. (Trabalho inédito).
[26] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Orientação lacaniana III, 13. Curso 2011-2012. (Trabalho inédito).