Walter Firmo fotografou o amigo Cartola. Numa dessas fotos em P&B, “as rosas não falam”, vemos, à esquerda, um vaso de flores e, à direita, a silhueta de Cartola na janela da sua casa. Porém, nessa fotografia, a luminosidade é intensa. Firmo diz que “nessa configuração não há detalhes”, trata-se de uma plena silhueta, e que era esse o efeito que ele buscava. “Essa foto é, para mim, uma foto que bem idealiza a minha cara autoral de querer pontuar. Sempre que puder, pontuar, como se fosse, na linguagem do boxe, um soco. Acho que toda silhueta é significante em relação a um soco na tua percepção”.[1] Numa configuração em que o excesso de luz ofusca, uma silhueta escura se destaca, tornando-se, ela mesma, o próprio detalhe que captura a percepção como uma pontuação, ao modo de um soco.
Grampo-imagem traz a fotografia “real, 2016”, também em P&B, do fotógrafo mineiro Reginaldo L. Cardoso[2]: uma cena urbana banal, um comboio de bondes numa cidade praiana brasileira e, num dos bondes, um grupo de pessoas sentadas, absortas em seus pensamentos. Porém, um detalhe captura nosso olhar à nossa revelia: um dos passageiros olha para o fotógrafo que está enquadrando a cena. Esse detalhe destoa, diverge, faz furo, captura o olhar para além da “homogeneidade” da cena que temos diante dos olhos.
As duas fotografias – “as rosas não falam” e “real” ‒ remetem aos dois elementos que em A câmara clara[3] fundam o interesse de Roland Barthes pela fotografia, dois elementos que podem coexistir numa fotografia: Studium e Punctum. Studium é “uma espécie de interesse de investimento geral (…), mas sem acuidade particular. É pelo Studium que me interesso por muitas fotografias”. Studium é uma espécie de tema geral da imagem pela qual nos interessamos, “sou eu que vou buscá-lo nas fotografias”, diz Barthes, seja como testemunhos políticos, seja como bons quadros históricos. Quanto ao segundo elemento, o Punctum, Barthes afirma: “dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. É uma ferida, uma picada, uma marca feita por um instrumento pontiagudo”.
Para Barthes, por mais fulgurante que seja o Punctum, ele tem, ao menos virtualmente, uma força de expansão,[4] força que é frequentemente metonímica. Para exemplificá-la, Barthes evoca uma fotografia de Kertész (1921) em que um rabequista cigano, cego, é guiado por um menino. Ora, o que o captura nessa imagem é a rua de terra batida, “o grão dessa rua terrosa me dá a certeza de estar na Europa central (…)”. Barthes diz reconhecer com todo o seu corpo[5] as cidadezinhas que atravessou por ocasião de antigas viagens pela Hungria e Romênia.
Paradoxalmente, mesmo permanecendo um detalhe, o Punctum pode preencher toda a fotografia. E Barthes evoca a foto de Andy Warhol feita por Duane Michals: “retrato provocante, já que Andy Warhol esconde o rosto com as mãos”. Nessa foto, o Punctum, diz Barthes, não é o gesto, mas “a matéria repelente dessas unhas espatuladas, ao mesmo tempo moles e sem cutículas”.
No texto “Por que as psicoses… ainda”,[6] que é também o título da 26ª Jornada da EBP-MG, Sérgio Laia lembra que os tratamentos das psicoses pautados na Orientação Lacaniana dão lugar a alguma pontuação[7] que não essa do ponto de basta e tampouco aquela das nomeações que os sujeitos psicóticos se dão na contemporaneidade. Trata-se de uma pontuação, lembra Sérgio, que faz vacilar, ainda que reiteradamente ‒ tal como as traduções constantes evocadas por E. Laurent[8] ‒ as certezas que consomem esses sujeitos, “uma pontuação conquistada com o seu consentimento com o que poderá se apresentar como um verdadeiro e real furo em suas vidas”.
Podemos pensar essa alguma pontuação, referida por Sérgio, primeiramente como uma pontuação possível e, num segundo momento, como uma pontuação singular. Vale lembrar que, segundo as lições de Barthes, o Punctum destoa ao romper a uniformidade e a concisão, ao quebrar a homogeneidade do que está sendo retratado; a força de expansão do Punctum faz com que o detalhe, sempre desviante, seja capaz de se impor e preencher a totalidade da cena. Ora, não é disso que se trata nas soluções encontradas pelos psicóticos na construção de seu sinthoma? É assim que cada sujeito pode se haver, ao seu modo, e sob tratamento, com o furo no simbólico relativo à foraclusão do Nome-do-pai.
Yolanda Vilela
[1] Walter FIRMO. Mostra: “Walter Firmo: No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito”. CCBB/ Belo Horizonte, julho a outubro 2023. As frases de Walter Firmo citadas acima foram extraídas dos vídeos exibidos na Mostra.
[2]Reginaldo Luiz CARDOSO. “real /2016”. Nossos agradecimentos ao Reginaldo L. Cardoso (@reginaldocardosophotos) por ceder amavelmente a fotografia para este Grampo-imagem.
[3] Roland BARTHES. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
[4] Grifo nosso.
[5] Grifo nosso.
[6] Sergio LAIA. Por que as psicoses… ainda? Esse texto, que dá o tom, a orientação da 26ª Jornada da EBP-MG pode ser acessado em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2023/
[7] Grifo nosso.
[8] E. Laurent. Os tratamentos psicanalíticos das psicoses. In: Papeis de psicanálise. As pequenas invenções psicóticas. Belo Horizonte: IPSMMG, ano 2, n. 2 maio 2006 (Tradução: Yolanda Vilela).
Algo de novo no Falatório
No Seminário 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, Lacan afirma que o analista deve se inspirar na poesia, atentando-se para a ressonância da linguagem, mais além do sentido. Ele nos convoca a aprender com a poesia lições de modulação, tonalidade e musicalidade: “Que vocês sejam inspirados eventualmente por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é exatamente na direção do que vocês devem se voltar“ (Lição do dia 19 de abril de 1977).
Voltemo-nos então para um material que, embora não se defina necessariamente como poema ou poesia, aproxima-se, definitivamente, de alguma coisa dessa ordem. Trata-se do Falatório de Stella do Patrocínio, gravado entre os anos de 1986 e 1988 na Colônia Juliano Moreira. Negando-se a escrever ou desenhar nos ateliês de arte, Stella se fazia presente pela fala. Falatório é o nome dado por ela mesma para se referir à sua produção vocal, que pode ser entendida como uma forma de composição que diz respeito à dimensão do escrito na voz, forma de tratamento da linguagem que perturba o corpo.
Buscando apreender a dimensão corpórea da criação de Stella, a poeta Bruna Beber (2022) realiza uma “transcrição acústico-topográfica” do Falatório, em torno de uma geografia da voz, estudando e mapeando suas diferentes entonações, silêncios e respirações. O Falatório apresenta-se então como um canto, e Beber propõe partituras que seriam um modo de decantação da “linha melódica de composição da fala” (p.206). Trata-se de um exercício de escuta que compreende o ritmo como o movimento da fala na escritura, compreendendo que a poética de Stella reside na maneira como o corpo, por meio da respiração, modula e pontua o que é dito. Desse modo, é buscando transmitir a pronúncia, as ênfases, exaltações, hesitações e, principalmente, os silêncios que marcam o falatório de Stella que Beber propõe algumas quebras de linha, espaços e recuos da mancha gráfica para realizar suas transcrições, a fim de transmitir, desse modo, também “as quebras do pensamento no ato da fala” (p.206):
Como podemos perceber na partitura que constitui o Grampo-imagem acima, as quebras nos permitem apreender uma ressonância, para além do texto, de uma certa entonação da voz de Stella – a ênfase no “de ferro”, por exemplo. Evidenciam-se, assim, versos que se estabelecem como refrões e que ganham movimento. Além disso, a presença quase fantasmagórica da fala da interlocutora de Stella nos permite ler de diferentes maneiras seu falatório, destacando o endereçamento de suas palavras, sua escolha pelo “falatório”, por seu querer dizer e não por outras atividades dos ateliês de arte.
Podemos pensar que nos aproximamos assim de uma “topologia da poética” (Laurent, 2020, p.169), entendida como a possibilidade de destacar a matéria que une som e sentido, desvelando o motérialisme, a materialidade da palavra. A partir desse gesto artístico que propõe a retomada de um material já conhecido e trabalhado de outras maneiras, podemos pensar que, se nos inspirarmos em alguma coisa da ordem da poesia, há sempre algo de novo a ser lido e escutado nas psicoses.
Olívia Viana
Referências bibliográficas
Beber, Bruna. Uma encarnação encarnada em mim: cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio. Rio de Janeiro: José Olympio, 2022.
Lacan, Jacques. Le séminaire, XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito. 1976-1977.
Laurent, Éric. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Revista Curinga, n. 50. Belo Horizonte, EBP-MG, jul./dez. 2020, p. 168-188.
Participe dos Seminários Preparatórios de 26ª Jornada da EBP-MG!Confira a seguir algumas fotos de nossas atividades, dedicadas aos eixos temáticos que serão trabalhados em nossa Jornada.
Participe dos Seminários Preparatórios de 26ª Jornada da EBP-MG!Confira a seguir algumas fotos de nossas atividades, dedicadas aos eixos temáticos que serão trabalhados em nossa Jornada.
Nesse grampo-imagem, Henri Kaufmanner trabalha a ideia de um novo estatuto do imaginário no último ensino de Lacan. Ele o faz a partir de uma imagem disponibilizada pela artista plástica Noemi Assumpção. Agradecemos à artista e a Henri por essa postagem no site de nossa Jornada.
Noemi Assumpção (1973) é artista plástica, performer e integrante do Grupo Indigestão. Vive e trabalha em Belo Horizonte. Realizou exposições individuais e participou de coletivas, festivais de arte, mostra de performance e residências artísticas no Brasil e no exterior. Acesse o site da artista: www.noemiassumpcao.com
Barbenheimer
Ao avançar para além de sua teoria do espelho, reposicionando-se sobre o estatuto do olhar, Lacan nos oferece um importante instrumento para pensar nossos tempos. Afinal, partimos da crença inicial que poderíamos ser a imagem reconhecida no espelho do Outro. Tal crença sustentava-se no esquecimento de que tal imagem é alcançada assintoticamente. Basta nos remetermos ao texto do “Estádio do Espelho”[1] e mesmo ao Esquema Ótico[2] para conferirmos isso. Em seu texto sobre a “Questão preliminar ao tratamento das psicoses”[3] Lacan precisou acrescentar uma nota de rodapé para alertar sobre esse engano. Já no “Seminário, livro 11[4]: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, ele fará um importante deslocamento. O olhar está no mundo e o mundo nos olha. Fazermo-nos presentes na cena do mundo vai depender das sombras, do anteparo que formos capazes de colocar diante da luminosidade desse olhar. É assim que nos inserimos na cena a partir da esquise entre o olho e o olhar. Existimos entre claro e escuro.
No mundo ordenado em torno da crença no Outro, o mundo ideal, o imaginário é pensado como articulado ao suporte simbólico. O imaginário, dessa maneira, pode funcionar como janela que nos alivia desse encontro angustiante com a luz. O delirio de cada um nessa lógica mantém-se então nos ideais produzidos, ou que chegam como ofertas do mundo. O assintótico aqui revela ainda mais seu valor. O mundo do consumo em seus primórdios na modernidade conseguiu fazer bom uso disso.
Barbie nasceu no ano de 1959. A ideia de sua existência veio de uma mãe preocupada com o fato de que sua filha não tinha bonecas adultas para brincar. Sendo assim, Barbie se transformou no ideal do que seria uma mulher adulta: loira, corpinho violão, cinturinha fina, amante da cor rosa e sempre com um enorme guarda roupas e demais instalações que qualquer menininha branca de classe média, inicialmente americana e posteriormente do mundo, gostaria de ter. Barbie era a representação dos semblantes fálicos que sustentavam a cultura patriarcal e branca até então
Barbie representava assim os ideais segregadores e universais do Outro, aqueles que Lacan ao alertar para sua inexistência nos permitiu atravessar.
No mundo de hoje, o I-mundo, onde o Outro não existe, no qual assistimos à queda do Patriarcado, os semblantes fálicos, se ainda investidos, não são mais capazes de sustentar a crença no todo. A experiência de corpo e seus acontecimentos transbordam. A imagem atravessou o espelho e o real do corpo se mostra insistentemente como um impossível diante do qual temos que nos arranjar. Há um gozo que se reitera e com o qual nos aventuramos na multiplicidade dos objetos que se oferecem. Um imaginário sem o lastro simbólico. Como “fazer diante de tanta luz? Isso é algo com o qual cada um busca operar, se arranjar. As soluções são singulares, como vimos na obra da artista plástica Noemi Assumpção, que inspira este texto. Esse corpo que goza revela um fazer com o gozo, uma loucura qualquer. Ai as soluções singulares mostram a insuficiência que buscamos por tanto tempo tamponar com o Pai.
Barbie contudo sobrevive. Nesses dias esta sendo mundialmente lançada sua versão cinematográfica, uma explosão rosa. Curiosamente, em paralelo, outro filme vem sendo lançado, “Oppenheimer”, a história de um dos criadores da Bomba Atômica. Tal coincidência gerou inúmeros “memes” e “posts” nas redes sociais. Como consequência, criou-se o neologismo Barbenheimer. A figura rosa da bonequinha idealizada parece não existir mais sem a presença disruptiva da destruição que o avanço da técnica foi capaz de produzir.
Henri Kaufmanner
[1] Lacan, J. (1998) “O estádio do espelho como formador da função do Eu”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
[2] Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[3] Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Lacan, J. Escritos. Jorge Zahar.
[4] Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar.
A seguir, publicamos um breve comentário de Marcelo Bizotto cujo pretexto é a imagem de uma gambiarra encontrada em texto de Antônio Teixeira, o que lhe permitiu pinçar e fazer links com outros textos, alguns deles publicados e indicados nesse site, visando relançar pontos que temos investigado em nossos encontros em direção á 26ª Jornada da EBP-MG.
No texto A aura da gambiarra Antônio Teixeira propõe pensar os desenlaces de uma análise a partir da segunda clínica de Lacan como um arranjo precário que cada um faz com seu sintoma pela “invenção de algo por meio do qual a pulsão se satisfaça”. Esse arranjo poderia ser pensado como um Savoir-y-faire, traduzido como “se virar”. O Savoir-y-faire difere do Savoir-faire por não estar assentado em um conjunto de técnicas ou procedimentos previamente estabelecidos, mas por comportar algo do imprevisível em seu fazer. Trata-se de uma prática que se constitui “no movimento de seu próprio praticar”. A gambiarra estaria articulada ao uso pulsional do sinthome, mas esse uso não seria da ordem de um discurso utilitarista e sim de um modo particular de bricolagem que emerge sob a pressão da urgência. O trabalho do analista, portanto, é o de atualizar “a bricolagem da gambiarra como um escape para a singularidade inventiva”.
Esse modo de pensar a gambiarra como uma espécie particular de bricolagem remete ao artigo A invenção psicótica, de Miller (publicado em: Opção Lacaniana nº 36: Eolia/EBP, maio 2003, p. 6-16). Nesse texto, Miller destaca a função da invenção como uma saída para a psicose e diferencia a invenção da descoberta na medida em que, na descoberta, algo que estava lá se revela, ao passo que, na invenção, inventa-se o que não está. A invenção seria uma espécie de criação, mas que se faz a partir de materiais já existentes e, sendo assim, tem valor de bricolagem. Miller discute como a invenção psicótica se dá em diferentes sujeitos e o primeiro caso discutido, descrito por Samyra Assad, é de um esquizofrênico que cria um aparato a partir de objetos como anéis e panos que ficam acoplados em seu corpo e que têm como função ligar o sujeito ao seu próprio corpo, ao mesmo tempo em que cria uma certa blindagem de um Outro invasivo e gozador.
Essa espécie de solução que o psicótico arruma me fez lembrar de uma referência trazida há algum tempo por Henri Kaufmaner para pensar o uso de objetos na contemporaneidade. Trata-se de uma espécie de caranguejo conhecida como Bernardo Eremita. Esse caranguejo utiliza-se de conchas encontradas em seu habitat para serem fixadas na parte posterior de seu corpo e tem como função protegê-lo dos predadores, além de reter água para manter a umidade. Em alguns casos, o Bernardo Eremita encontra outros objetos para fazer a função da concha e muitas vezes são objetos jogados pelos humanos nas praias, como tampa de refrigerante, pedaço de garrafa e até mesmo cabeça de boneca, conforme divulgado nessa reportagem. Isso que para nós humanos é lixo, para esse bicho é uma morada. Eis aí um belo exemplo de invenção pela gambiarra: algo que se constitui como proteção a partir do dejeto.
O lugar de dejeto, de sujeitos que se encontram à deriva, à margem ou sem lugar, aparece como tema da nossa jornada intitulada “há algo de novo na psicose…ainda”. O nosso grupo de trabalho, coordenado por Frederico Feu, tem feito encontros para divulgar os principais pontos dessa discussão que se estenderá ao longo do ano nos seminários preparatórios da jornada. Estamos às voltas com o novo texto de Sérgio Laia que será publicado em breve na Revista Curinga 55, mas que já se encontra disponível nesse site na aba “textos de orientação”. Trata-se de um texto envolvente e elucidativo que propõe ao analista operar com as psicoses de nosso tempo a partir do feminino, pelo furo. O não-todo fálico comporta a dimensão fônica do falo e esse aspecto falacioso é o que permite ao sujeito psicótico vacilar a certeza que lhe é imposta. Dessa maneira, o sujeito psicótico em análise está autorizado e o analista é testemunho da criação de um outro lugar, a partir de uma transmutação, segundo Simone Souto (citado por Laia), “do lugar nenhum, marcado e assolado pela segregação e pelo negativo, em lugar de mais ninguém, eivado do gozo, ou seja, de uma satisfação, não negativizável”.
A construção desse lugar, lugar de mais ninguém, é como “um círculo queimado na mata das pulsões” e pode ser construído em análise, por esse novo modo de amor chamado transferência. Essa construção é feita de pontuações que permite ao sujeito psicótico empenhar-se, como nos diz Laurent, no esforço constante de traduzir a língua.
Para clarear esse ponto, Laia utiliza-se de Joyce, em seu monólogo de Molly Bloom. Inventar com a língua seria também uma espécie de gambiarra? Valho-me do texto “Monólogo da apparola”, também de Miller, para evocar a dimensão de aparelhagem da língua, que mais tem a ver com lalangue. Penso que esse aparelho gambiarra que se faz com a língua é o que permite uma certa inserção do uso de peças soltas que o psicótico faz para se conectar à sua maneira com seu corpo e com o Outro. Lembro-me que, durante o último encontro do nosso grupo grampo, Yolanda Vilela remeteu a um caso de psicose que ela acompanha, que pôde encontrar certa tranquilidade quando incorporou algo desse objeto olhar invasivo do Outro no próprio corpo. Devemos pensar o tratamento da psicose hoje, se tomarmos o não todo fálico como orientador, como um para além do secretariado do gozo do Outro? Ou seja, pela incorporação de algo deixado às margens como um para além do falo?