Fazer-se um corpo >

Joyce LOM e sua mulher g(Love)


por Sérgio de Mattos

Lacan se serve da metáfora da luva para pensar a relação entre Joyce e Nora, explicando o que o permite ter um corpo, um amor e fazer existir sua esquisita relação sexual.[1] Esta não é uma luva prête à porter. Ele faz da luva/Nora sua própria obra, na qual pode conter o corpo que lhe escapa. Depreende-se daí a função estabilizadora para seu gozo, na medida em que a operação Ego-sinthoma não é suficiente para sustentar o seu corpo. Nora é a mulher-ajuste. Para esclarecer esta construção, usarei como contraponto uma outra história de amor.

 

Ishmael in love

Em “Ishmael is in love” [2], lemos o amor de um golfinho por Lisabeth, especialista em human-cetaceos-relations. O que é esse amor? A excitação e ânsia de estar próximo. Qual a natureza dessa atração? “É minha necessidade da sua companhia. Acredito que ela me compreende como nenhum membro de minha espécie é capaz de fazer”. O corpo é, entretanto, obstáculo. Ele175 kg e 2.9 m. Ela 1.80m e 52 kg. Ishmael: “Não estou seguro se sinto desejos sexuais, é mais como se um anseio generalizado gerasse uma perturbação generalizada por sua presença, que traduzo em termos sexuais para tornar compreensível para mim […] ela não tem os traços que busco em uma parceira, bico proeminente e elegantes barbatanas. Os traços físicos desejáveis da sua espécie não têm importância para mim e em alguns aspectos tem um valor negativo. É o caso das duas glândulas mamárias na região peitoral que certamente atrapalham seu nado. É certo que Lisabeth lamenta o tamanho e lugar destas glândulas já que cuidadosamente as cobre”.

Todo o conto converge para o desencontro. Arrebatado, deixa escapar “Lisbeth I love you!”, venha viver comigo e ser meu amor”. Ao implorar por sua companhia, ela se desnuda, na piscina, ele treme aquela feiura das glândulas e ainda aquele inesperado pedaço de pelos corporais adicionais”. Na água, esquecido de tudo, corre, aperta-a entre barbatanas, imaginando o abraço humano. Sentiu a mão que lhe batia, signo de reciprocidade, logo percebeu com o cérebro enevoado de paixão que ela não tinha mais ar. Subiu rápido para a superfície, “Minha querida Lisabeth, estava chocada, ofegante, respirou fundo e tentou escapar de mim, exausta seu pálido corpo tremendo. E em uma voz fraca disse: você quase me afogou Ishmael”.

 

O espaço de um abraço.

“A luva virada ao avesso é Nora. É o jeito de ele considerar que ela lhe cai como uma luva.”[3] Não é apenas preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como uma luva … ela não serve absolutamente para nada.

A metáfora da luva baseia-se nas correspondências de Joyce/Nora, e no opúsculo de Kant que defende o espaço real. Num texto escrito sobre a relação de Blake e sua mulher, Joyce expõe a sua própria relação.

Blake não se sentia atraído por mulheres cultas ou refinadas …, preferia … a mulher simples, de mentalidade nebulosa e sensual …desejava que a alma de sua amada fosse uma criação lenta e dolorosa sua…”[4]

Nas cartas[5] ilustra-se a solução joyceana.

“Espero que tenhas recebido bem as luvas que te obsequiei … O par mais bonito é o de pele de raposa, estão forrados de sua própria pele, simplesmente postos ao avesso e devem ser quentes, quase tanto como certas partes do seu corpo Butterfly … “

Lacan, entretanto, discorda do espaço real, localiza-o entre o imaginário e o simbólico, construção verbal e elaboração visual. Se há relação sexual[6], diz Miller, quando há relação, só pode ser em uma alteridade interna à estrutura do falasser, o Sinthoma. Lacan inventa uma geometria pautada na reviravolta da luva, a partir da especial adequação que Joyce sentia em relação à sua esposa.

“Ó acolhe-me na tua alma …Em breve meu corpo vai penetrar no teu … Oxalá que eu pudesse aninhar-me no teu útero como uma criança nascida de tua carne e teu sangue… na quente penumbra secreta de teu corpo.”

Que ela lhe caia como uma luva, o cerre e não sirva para nada são as três condições desta construção: ser uma luva fabricada a sua medida, hand-made, que ela lhe dê consistência (mantenha seu corpo como um), e não sirva para nada, ser uma mulher degradada, tornada puro objeto dejeto produzindo uma localização para seu gozo. [7]

Nora é onde o escritor pode manter-se alojado e delimitado. Nota-se como o artista veste a esposa com vestidos, joias e luvas,enfeita teu corpo para mim, caríssima. Quero-te bonita e feliz e amorosa e provocante …. Lembras dos três adjetivos que usei em “Os mortos” falando sobre seu corpo. São estes: musical e estranho e perfumado.

Lom tem um corpo

Fazer um corpo é poder tê-lo, dele gozar de maneira vivível. Assim para LOM o ter precede o ser. Tenho um corpo! Parece a primeira ideia que temos de nós mesmos. O que não ocorre sem que haja uma instauração do significante na carne pela via do gozo do significante. Não se trata então da incorporação mecânica da informação, mas de que a sonorização das palavras, acentos, tons, inflexões musicais, vibrações, configurem um gozo necessário para a instauração/grampeamento do simbólico, LOM.

Joyce se arranja, há uma compatibilidade espacial entre ele e Nora-ajuste, quando revirando a luva, reveste-se deste espaço. Ishmael não será capaz de ter o corpo de Lisabeth como superfície ajustável, apesar do simbólico adquirido, não terá o corpo da mulher mesmo virando-a ao avesso, o imaginário como registro constitutivo desta geometria da relação sexual não lhe é topologicamente compatível.

Joyce é um LOM/Luva, mas para Ishmael não há soutien[8].

 

 

[1] Lacan Jacques. O seminário. O sinthoma. livro 23. Zahar.p.81.

[2] Siverberg Robert. Ishmael in love. The Future I. Edited Isaac Asimov Fawcett Crest. New York.1980. p.95

[3] Lacan Jacques. Idem acima.

[4] Mendes de Lima, Cristiano. James Joyce e Nora: há relação sexual. Opção Lacaniana online nova série. Ano 6. Número 18. novembro 2015.

[5] Cartas de amor a Nora Barnacle – James Joyce. Ed elaleph.com. 2000

[6] Miller J-A. Perspectivas do seminário 23. O sinthoma. Zahar. RJ 2010.

[7] Idem. Cartas de amor a Nora, op. cit., p. 38

[8] A palavra soutien usado para referir-se ao feminino, vem do francês sustentação

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